Empresas também crescem com a inclusão social. O publicitário
Renato Meirelles, do Datapopular, faz dessa descoberta – entender os hábitos do
povão – um bom negócio
Por: Paulo Donizetti de Souza, da Revista do Brasil
Enquanto a reportagem se dirige ao escritório do Instituto
Datapopular, na região da Avenida Paulista, onde entrevistará o publicitário
Renato Meirelles, nota na saída do metrô a propaganda de uma escola de idiomas.
Diz o painel: “O mundo quer falar com o Brasil. Aprenda inglês”. No site da
escola, um filmete musical expandirá o raciocínio: “Os grandes estão chegando/
O Brasil é a bola da vez/ E você, are you ready?/ O que está esperando?/ Venha
aprender inglês...”
Durante anos se acreditou que o classe C queria ser classe A.
Não é verdade. Sua aspiração está mais próxima do sucesso do vizinho que do
ricaço, que para ele é perdulário, joga dinheiro fora e não tem valores
familiares
Pensando em inglês, vem à memória o comercial do uísque que
diz “Keep walking, Brazil”, depois de mostrar a montanha que circunda a Baía de
Guanabara se mover, estremecer o Rio de Janeiro, se levantar e caminhar,
seguida dos dizeres “O gigante não está mais adormecido”. Lembrarei ao
publicitário outros reclames, como o do fabricante de automóvel que ousa dizer
ao espectador que “esta é a melhor fase de sua vida”; ou do grande banco com o
jingle “ser Brazuca é estar na moral, ganhar o seu dindin num trampo legal, na
praia ou na cidade, no morro ou na perifa...” E perguntarei o que eles têm em
comum. Ele dirá: “O mercado está apostando na autoestima em alta dos
brasileiros”.
Exato. Se uma dessas propagandas fosse de empresa pública ou
órgão do governo, algum colunista de jornal ou analista da TV diria que é
ufanismo barato pago com dinheiro público. Mas, como é o mercado que está
dizendo, talvez seja melhor prestar atenção e não brigar com a realidade. Para
entrar na cabeça do público-alvo, a publicidade precisa provocar identificação,
empatia. Ao apostar no momento brasileiro, algumas empresas não intuem nem
chutam. Elas investigam, pesquisam, procuram saber a que pensamentos a cabeça
da massa está aberta.
Esse é um dos trabalhos do Datapopular: investigar a quantas
andam os pensamentos do povão, aquela camada menos endinheirada da população,
as chamadas classes C e D, que vivem com renda média per capita abaixo de R$
1.000, compõem um universo de 104 milhões de pessoas, têm potencial anual de
consumo de R$ 1 trilhão e provocam mal-estar entre o núcleo de jornalismo de
uma emissora e seu núcleo de novelas, já que esse povão se identifica mais com
as meras coincidências entre a ficção e a realidade do que com as notícias do
horário nobre. Trata-se de uma “nação” que ganhou 35 milhões de pessoas nos
últimos dez anos, passando de 35% da população em 2002 para 53% em 2012.
Para entender esse público, Renato Meirelles já fez muitas
imersões de campo – e já levou clientes para isso –, vivendo por uma semana ou
um mês com famílias em comunidades pobres para decifrar seus sentimentos, porque
existe, segundo ele, uma grande diferença entre a teoria da pesquisa de opinião
e a prática da vida cotidiana.
"A nossa classe média são 104 milhões de pessoas que
movimentam R$ 1 trilhão por ano. Se fosse um país, seria a 11ª população do
mundo e o 18º em potencial de consumo"
Não se trata de obra social, tampouco romântica, mas de
business: o Datapopular ganha dinheiro, e não é pouco, dando consultoria a
empresas. Orienta executivos a desenvolver produtos que cairão no gosto desse
consumidor, que está louco para comprar um computador que saiba usar ou para
encontrar com facilidade a passagem para a primeira viagem de avião. E que boa
parte dos tais formadores de opinião ainda não descobriu.
Como você foi parar
nesse negócio de investigar a cabeça da população mais pobre?
O Datapopular surgiu em 2001, uma ideia dos meus sócios. Eles
viram um relatório do (banco norte-americano) Goldman Sachs, que dizia que o
futuro do Brasil estava na Rússia, na Índia e na China, e que ninguém estudava
esse mercado. Então, o Datapopular nasceu dentro de uma agência de propaganda.
Um professor meu entrou nesse primeiro time do Datapopular e me contratou como
estagiário. Nesses pouco mais de dez anos fomos crescendo e viramos uma empresa
de pesquisa de mercado e também de consultoria para desenvolver estratégias de
negócios de comunicação para a classe C e D. Tivemos algumas fases de atuação.
Num primeiro momento descobrimos que as pessoas não conheciam esse público.
Depois apresentamos esse público. Levamos executivos para morar em comunidades.
Eu morei várias vezes em favelas, na Cohab, em casas de pessoas.
Como assim?
Morando, ué. A gente seleciona uma comunidade, procura uma
família que tope receber alguém, e eu passo com ela uma semana, um mês,
acordando, dormindo, conhecendo. Vivendo com as pessoas vamos entendendo a
diferença entre discurso e prática. Porque as metodologias tradicionais de
pesquisas são ótimas para identificar o que as pessoas dizem que fazem, no
máximo o que elas pensam que fazem.
E o que elas estão pensando
na exata hora em você faz a pergunta...
Isso. Mas quando mora com as pessoas você descobre o que elas
realmente fazem. Então, a pesquisa tem como mérito construir com essas pessoas
uma relação de confiança, a ponto de elas poderem se abrir, e a gente começar a
identificar a diferença entre discurso e prática no cotidiano. O segundo
momento do Datapopular foi quando as empresas disseram “ok, já sabemos tudo
isso, e agora, como a gente faz pra desenvolver estratégias de negócios?” E aí
ajudamos essas empresas a desenvolver novos produtos.
Ajudamos, por exemplo, a criar o PC da Família, para a
Positivo Informática, que durante anos foi líder no varejo. Ajudamos as
empresas a desenvolver novos canais de venda. Ajudamos a Gol a abrir lojas
próprias para vender passagem aérea – no metrô, no Largo 13... E ajudamos na
comunicação dessas empresas, testando e dando insights para quem, de alguma
forma, quer conquistar as classes C e D. Fizemos de tudo, desde testes de
comunicação até workshops em emissoras de televisão, pra ver conteúdo tanto de
jornalismo como da área de entretenimento. Um monte de palestras para equipes
dentro das empresas, sempre com o foco – e acho que é essa a missão do
Datapopular – de diminuir a distância que separa o mundo corporativo do universo
desse novo consumidor que surgiu no Brasil nos últimos dez anos.
O que é a classe média?
Quando se fala de classe C, a gente utiliza o critério
desenvolvido pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da
República. Você pega a renda de todo mundo da família, soma e divide pelo
número de pessoas. Por exemplo, em uma família com dois filhos em que o pai
ganha R$ 1.000 e mãe ganha R$ 1.000, a renda per capita é R$ 500. Uma família é
considerada de classe média quando sua renda está entre R$ 291 e R$ 1.019 por
pessoa. No mundo inteiro, 54% da população tem renda per capita menor que R$
291. E só 18% da população mundial tem renda média acima dos R$ 1.019 por
integrante da família, o teto da classe média. Ou seja, quando você compara com
o mundo, a nossa classe média é alta. São 104 milhões de pessoas, ou 53% da
população brasileira, que movimentam R$ 1 trilhão por ano. Essa classe média
brasileira seria o 11º país do mundo do ponto de vista da população e o 18º em
potencial de consumo. Ou seja, estaria no G-20 do consumo mundial.
Algumas empresas têm notado isso e tratado com carinho,
digamos assim, esse momento de autoestima elevada detectado no Brasil. Algumas
propagandas tentam associar seu produto a esse sentimento e até a novela das 9
explora um arsenal de personagens identificados com o imaginário popular.
"Além da renda, melhorou a autoestima dos brasileiros.
Eles estão vencendo e estão otimistas, acham que vão continuar melhorando. A
pessoa otimista e com boa autoestima se valoriza mais"
Você disse um negócio interessante. O que mudou mesmo, além
da melhoria da renda, foi a autoestima dos brasileiros. Estão vencendo na vida
e estão otimistas, acham que vão continuar melhorando. Então, é um grande
desafio dialogar com essa autoestima. Quando ela cresce, essa ideia da postura
aspiracional muda. Durante anos se acreditou que a aspiração do cara da classe
C é parecer ser o cara da classe A, e isso não é verdade. O cara da classe C
acha que o cara da classe A é perdulário, joga dinheiro fora, não tem valores
familiares. Ele não entende por que, na hora do almoço, a madame cheia de grana
come só um franguinho com uma saladinha. O aspiracional está muito mais próximo
da vizinha que deu certo do que de um grande executivo, um grande empresário. E
a melhora do otimismo e da autoestima do brasileiro fez com que ele passasse a
se olhar e a se valorizar mais. As empresas que querem conquistar esse público
têm o desafio de se apresentar como parceiras da melhora de qualidade de vida
desses 104 milhões de brasileiros.
Essa classe emergente
já usa computador, internet, redes sociais com os mesmos recursos que uma
pessoa mais habituada, mais bem informada? As pessoas desfrutam o potencial da
internet para se formar e se informar, ou predomina o entretenimento, a
diversão?
Depende muito do que você considera “se formar”, “se informar
culturalmente”, e “se divertir”. A linha entre a informação e o entretenimento
é tênue. Oito de cada dez internautas são das classes C, D ou E, e o que a
gente tem visto e aprendido é que a internet é uma forma não só de ver o mundo
como também de se mostrar para o mundo, se fazer presente. Se a televisão era
uma janela para o mundo, a internet é uma vitrine. A pessoa expõe seu rosto,
mostra seus gostos, suas origens, e inclusive confere a veracidade das
informações que recebe. Durante anos, só a TV aberta, com uma comunicação
unidirecional, decidia o que é certo e o que é errado, o que é verdade ou
mentira, o que é e o que não é notícia. Com a internet isso muda tudo.
Rapidamente se tem acesso a dezenas de versões para determinada edição. Não
existe mais espaço para uma única versão. Então a internet bota aí um novo
desafio a qualquer força que pretenda trabalhar com uma única versão dos fatos:
isso não é mais possível.
Você acha que os
produtos não jornalísticos da indústria da comunicação concorrem com os
produtos jornalísticos na formação de valores, na formação de uma base
cultural. A novela é mais influente do que o telejornal no quesito “formador de
opinião”?
Eu não consigo hierarquizar o que interfere ou influencia
mais ou menos. Mas os produtos não jornalísticos efetivamente interferem. Quem
foi que disse que hard news é a única forma de as pessoas se informarem? Já
pensou o quanto uma discussão sobre câncer no enredo de uma novela leva essa
discussão para a família? Ou quanto um debate em um programa feminino sobre a
Lei Maria da Penha pode encorajar mulheres a denunciar o marido por uma
agressão? Ou qual foi a contribuição dos programas de entretenimento, depois do
surgimento da aids, para informar toda uma geração de jovens sobre se proteger
e só transar com camisinha? Então, é muito anos 1960, anos 1970, essa discussão
de entretenimento versus jornalismo. Informação boa é aquela que o público
entende. Essa discussão é tão velha quanto a se existe imparcialidade na mídia.
E não existe?
Em nenhuma. Conteúdo jornalístico, assim como todo e qualquer
conteúdo, é um produto editado. E, se tem edição, tem juízo de valor. Se tem
edição, tem ideologia. Não tem saída. Isso não quer dizer que é impossível ter
um jornalismo que ouça o outro lado, que não devem ser louváveis os esforços
dos manuais de redação de sempre ouvir o contraditório, acho que isso tem de
ser incentivado. Agora, achar que um processo de edição não passa por um filtro
de valores e de opiniões de quem está editando é no mínimo ingenuidade.
"Quando uma pessoa consegue emprego formal ela consegue
pensar além, fazer planos, olhar pra frente. Tem uma ambição positiva, A
segurança econômica é um ativo, faz sua economia crescer"
O consumidor de informação tem percebido isso, não? Afinal,
há mais de uma década os principais veículos de comunicação pendem para um lado
e os resultados das eleições, para outro.
É verdade. Mas também é verdade que os grandes veículos são
muito hábeis em lidar com as coisas. Porque, ao mesmo tempo que um determinado
conteúdo jornalístico conduz para o lado A ou lado B, eles vêm com uma outra
pauta, com notícias positivas sobre coisas que estão acontecendo, e não acho
que isso seja bondade, mas uma questão de sobrevivência. O produto jornalístico
também precisa ter qualidade, porque se não for bom não vai vender...
O sentimento de
autoestima em alta detectado nos últimos anos tem contribuído, em momentos
eleitorais como o que acabamos de passar, para que os candidatos mais
mal-humorados, agressivos e pouco propositivos não prosperem?
O que a gente tem observado é que o voto no Brasil não é um
voto ideológico. As pessoas não têm clara a noção do que é esquerda e direita,
não estão muito preocupadas com isso. O voto no Brasil é pragmático. As pessoas
melhoram de vida, querem continuar melhorando. Votam em candidatos que se
proponham a fazer com que sigam acreditando que a vida vai melhorar. E, mais do
que isso, que conseguem trazer a discussão política para a vida real. Se tem um
mérito do ex-presidente Lula é a capacidade de explicar como poucos os temas de
economia, de política nacional ou externa de forma que as pessoas entendam. Ele
tem uma forma muito direta para que a população entenda o que ele diz. É por
isso que tem um dos maiores índices de aprovação da história. Claro, não é só
isso, e as pessoas não são ingênuas. Ele poderia ser o melhor comunicador do
mundo e não ter nem 10% dessa aprovação se a vida das pessoas não tivesse
efetivamente melhorado nos últimos dez anos. Mas isso se soma à capacidade dele
de se fazer entender. Negar o avanço que o Brasil teve nos últimos dez anos é
tão improdutivo quanto negar a importância do Plano Real para a história
econômica do país. O Brasil melhorou quando teve o controle da inflação. E
melhorou porque distribuiu renda. Há responsáveis por esses dois legados, e
isso tem de ser dito.
A população mais pobre
tem propensão maior a levar em conta o interesse coletivo, ter uma visão mais
solidária de mundo, ou tende mais ao individualismo, à competitividade?
Quanto menor a renda, mais as comunidades funcionam na lógica
da reciprocidade, do eu te ajudo e você me ajuda. Nas classes C e D há mais
amigos, os vizinhos se conhecem mais, emprestam o cartão de crédito, cuidam
mais do filho do outro, mas não é só por uma questão de solidariedade de classe
ou porque são bacanas. É porque precisam mais um do outro, eles descobrem que
se ajudando superam carências e vão mais longe. A vida real mostra a
importância de você ter mais amigos, de ser solidário, de ter jogo de cintura,
e até de saber perdoar e ser mais tolerante. Por exemplo, qualquer pesquisa
revela que a elite tende mais a aceitar a união civil de pessoas do mesmo sexo
do que as classes C e D. Mas, na prática, os mais pobres aceitam mais. Eles
crescem aprendendo a conviver e aceitar as diferenças. E não por uma questão
ideológica ou pela formação mais ou menos liberal. Objetivamente, é questão de
sobrevivência. Outro exemplo: a elite tende a ser mais a favor da descriminalização
do aborto do que as mulheres das classes C e D, que na prática aceitam mais uma
mulher que teve de interromper uma gravidez. E sabem do risco, porque ela não
vai para uma clínica particular, gastar R$ 10 mil pra fazer um aborto. Vai
recorrer a um meio alternativo. Então, a prática leva a um comportamento mais
solidário com os “diferentes” do que na elite.
A segurança econômica é
a base da emancipação de um indivíduo? Sem meios de obter a própria renda um
cidadão não vai se emancipar culturalmente, não vai satisfazer suas
necessidades e desejos, enfim, sentir-se livre?
Uma pessoa sem grana é dependente. Então, quando consegue um
emprego com carteira assinada ou aprende a tocar o próprio negócio, tem a
chance de pensar além. Quanto menos ela tem de matar um leão por dia para
sobreviver, mais consegue fazer planos, olhar pra frente. Consegue ter a
ambição de que sua família se desenvolva junto com ela, que sua comunidade se
desenvolva. Uma ambição positiva. Então, a segurança do crescimento do emprego
formal cria um ambiente que possibilita que mais brasileiros possam pensar
adiante. A segurança econômica, mais que uma sensação, é algo efetivo, e para o
país é um ativo, é o que faz sua economia crescer. Uma pessoa empregada tem
FGTS, 13º, férias com adicional de um terço para poder desejar uma viagem, terá
seguro-desemprego. Então, objetivamente, temos um ambiente em que mais
indivíduos estão mais seguros de que podem experimentar um desenvolvimento
econômico e também pessoal.
Essa pessoa que saiu da
chamada linha de pobreza e passa a ser incluída no mercado consumidor não é a
que vai comprar jet ski, mas vai experimentar o acesso a um novo hábito
alimentar, a roupas, a equipamentos domésticos. Ela passa a ter também maior
necessidade de conhecimento, de informação?
A segurança financeira leva as pessoas a estudar mais, a
empreender mais, a viajar mais e ampliar seu horizonte cultural. O Brasil
começou a mudar com a criação de mais empregos e consequentemente com o aumento
da renda, mas é uma mudança nos níveis educacionais que vai levar o país
adiante. Temos 3 milhões de estudantes universitários a mais do que há uma
década. Uma geração de universitários sendo formada, e cada ano a mais de
estudo na vida da pessoa terá impacto positivo no salário e na renda. Além
disso, você tem um círculo virtuoso. Pessoas mais escolarizadas também têm
filhos mais escolarizados, e portanto tendem a cobrar maior qualidade do ensino
que é oferecido a seus filhos. A melhora do ensino leva também à formação de um
brasileiro que enxerga a educação como um passaporte para a melhora de sua
qualidade de vida.
Posted 1 week ago by Paulo Cavalcanti
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