Um dos debates morais, de influência direta na política, que
se trava aqui no Brasil no momento, está aberto pelo moralismo udenista, tanto
promovido pela extrema esquerda anti-Lula, como pelo conglomerado demo-tucano.
Trata-se da questão relacionada com a política de alianças, ou seja, a
demonização do PT pela sua“abertura” na política de alianças. O artigo é de
Tarso Genro.
Tarso Genro (*) – Governador do Rio Grande do Sul
Creio que é hora de um debate no interior da esquerda
pensante, que remonta ao amanhecer das ideias socialistas emergentes depois das
primeiras revoluções do século XX, tanto no campo socialista propriamente dito,
como na experiência socialdemocrata moderna. É um debate sobre as complexas
relações e interações entre ética, moral e política.
Muitos fatos e textos teóricos poderiam servir de referência
para este diálogo, mas lembro dois pontos de partida interessantes, que podem
ajudar algo nesta polêmica: um é a posição de Robespierre perante os dissensos
da Convenção, identificando a revolução com a nação, de uma parte, e, de outra,
combinando a ideia de que aqueles que se opunham a ele (que encarnava a
revolução), eram traidores da nação e deveriam ser eliminados.
Outro ponto de partida é um texto de Lukács, cujo título é “O
bolchevismo como problema moral”, publicado em 1918, pouco antes de aderir ao
partido comunista húngaro, no qual ele indaga se é possível, por meios
desumanos - através de formas e meios “injustos”- chegar à justiça e à virtude.
Em última análise significa o seguinte: é possível fazer o“bem”, através
do“mal”, já que os bolcheviques fuzilaram inclusive os filhos do Czar, ainda
crianças, para não permanecer qualquer dúvida a respeito das suas intenções de
poder permanente.
Tanto a tática política de Robespierre -para manter e
consolidar sua ditadura republicana- como a pergunta feita pelo grande filósofo
húngaro pouco antes de aderir ao marxismo, encerravam posições pré-constituídas
na esfera da socialidade. Principalmente na esfera da política e da cultura,
com objetivos determinados para incidir sobre as lutas reais que ocorriam nos
respectivos períodos históricos.
Seus objetivos encarnavam convicções altruístas sobre o que
seria o bem do país e o melhor para os destinatários do projeto nacional, no
âmbito de uma revolução justa contra a velha ordem (Robespierre) e pela
necessidade de acabar, na Europa Oriental, com os restos da ordem já varrida
pela revolução na França, através de regimes socialistas inspirados na
revolução russa (Lukács).
Robespierre estava dotado da convicção que havia uma
identidade total entre “revolução” e “nação” e que o mero descaso ou omissão
-em relação às questões candentes da nação- já era traição. E os traidores
deveriam ser eliminados. Lukács fazia um ajuste de contas inconsciente,
provavelmente, com o seu mestre Georg Simmel, para submeter-se -na ação
política- ao comando da revolução russa sobre as demais revoluções socialistas.
(O seu artigo manifestava ressalvas antecipadas, na transição para o marxismo
forjado na cultura soviética, que permaneceriam até a sua morte em 1971).
Ambos, Robespierre e Lukács, não tinham dúvidas a respeito da
fundamentação ética das suas definições e a partir desta fundamentação (tendo a
sua própria socialidade como “fundamento inalienável da vida ética”),
promoveram definições políticas para implementá-las e assumiram “partido”.
Robespierre, ao mesmo tempo estimulando e apoiado pelos que viam na guilhotina,
de forma generalizada, o método para solucionar as controvérsias políticas
sobre a nação. Lukács, acordando com Stalin -por longo tempo- a sua
sobrevivência e o seu direito de escrever como herege e de lutar contra o
nazismo.
O espaço que está situado entre os fundamentos éticos da
decisão, historicamente adequada (lutar contra o atraso e a opressão) e os
objetivos altruístas a serem alcançados - fundar a nação e a república
(Robespierre), e instituir uma sociedade justa (Lukács)- é o lugar das
mediações políticas e morais. Nele, ética e política se integram e se repelem:
a moralidade, que expressa as regras sociais, os costumes, as normas jurídicas,
que interpretam o patrimônio ético de uma sociedade -patrimônio este
supostamente universal- nem sempre são coerentes com este patrimônio.
A ação política para buscar um determinado fim altruísta -ou
pelo menos tido como altruísta pelos sujeitos em confronto- pode enfrentar
determinados obstáculos morais e legais, para alcançar aqueles fins. Desta
forma, “fins” e “meios” podem ser confrontados e os valores neles contidos se
repelirem. Por exemplo, comprar votos numa eleição ou comprar votos de
parlamentares, para permitir uma reeleição, é ofender um “valor”, contido em
normas jurídicas, sujeitando o ofensor a uma sanção (“pena”). Naqueles casos
concretos os atos também ofendem um sentimento moral dominante na sociedade:
ofendem a moral, tornam-se atos imorais.
A diferença é que, se a violação legal é flagrada e torna-se
punível, e se sanção (a “pena”) é decorrente de um julgamento segundo leis
legítimas, o processo judicial promove o encontro da política e da moral com o
Direito. Mas, se o objetivo do comprador de votos é atingido e ele se elege sem
responder judicialmente (ou a reeleição é “comprada” com sucesso), sem qualquer
sanção judicial, tudo passa a ser decidido no terreno puro da luta política.
Ao fim e ao cabo é no plano da política, que vai se dar a
disputa para que aquelas ações ilegais bem sucedidas sejam, ou não, absorvidas
pela moral dominante. A disputa política, de corte moralista, também é importante
quando as ações penais, que versam sobre ilegalidades na produção de políticas
públicas, tornam-se, elas mesmas, conflitos políticos, para promover a
aniquilação de uma das partes em confronto, como ocorreu com a ação penal 470.
No caso da compra de votos para a reeleição do Presidente
Fernando Henrique - independentemente de qual tenha sido a posição pessoal do
Presidente-após uma rápida sequência de notícias pela imprensa, o fato sequer
tornou-se processo judicial. Esta mudança de pauta interessava ao conglomerado
político que lhe dava sustentação (que tinha a mídia majoritariamente a seu
favor), o que sequer permitiu que a “compra” se tornasse um problema de
natureza moral na sociedade: ela foi plenamente absorvida, em termos jurídicos,
políticos e morais, porque isso favorecia o“status quo” neoliberal, que até
melhorava a vida de uma parte da sociedade, pela redução da inflação.
Através de outro exemplo, que é mera hipótese, pode-se
demonstrar claramente a existência de uma “interdependência dialética entre
fins e meios”, que, frequentemente, aparece na confluência entre política e
moral, em diversas circunstâncias. O Estado, num determinado sinistro (um
incêndio de um grande hospital, por exemplo) “militariza” uma parte do serviço
público que está em greve, cuja volta ao trabalho é fundamental para salvar a
vida de centenas de pessoas. Muitas vidas são salvas e aquele ato de força do
Estado dá bons resultados.
A supressão da liberdade das pessoas, com um fim altruísta -a
defesa da vida das pessoas ameaçadas pelo incêndio- tem respaldo em fundamentos
éticos universais (“faz para o outro aquilo que gostarias que fizessem para ti,
nas mesmas circunstâncias”) e, ao mesmo tempo, é ato respaldado pela moral
dominante, em qualquer sociedade medianamente civilizada. Os milhares de
voluntários, movidos por sentimentos de amor ao próximo, que aparecem em
momentos dramáticos de uma cidade ou de um país, comprovam esta aprovação, que
promove por um meio não democrático e “ilegal”, uma política legítima de defesa
da vida e da dignidade humana.
O mesmo Lukács, no seu “Ontologia do ser social”, ao
polemizar com o Weber do dilema “ética da convicção-ética da responsabilidade”,
dizia que era impossível dissociar o “momento da exteriorização” (por exemplo,
“executar” uma ação política baseada num princípio ético com finalidade
altruísta), do “momento da objetivação” (a configuração daquele ato social como
“resultado” para os outros). A partir desta configuração é que as mediações –as
“formas” que adquirem aquela exteriorização da vontade ética para alcançar o
objetivo-podem ser avaliadas com maior segurança. Depois de concretizadas, as
mediações podem ser incompatíveis com os seus objetivos altruístas, voltando-se
contra seus próprios fins.
Tanto a guilhotina francesa como o assassinato das crianças
do Czar, na revolução russa, foram ações políticas, que não só aniquilaram os
fins altruístas daqueles períodos das revoluções francesa e russa, mas também
se configuraram como repetição dos atos de barbárie que expandiram o
colonialismo e o capitalismo no mundo, que precisamente pretendiam ser
superados, tanto pelo iluminismo democrático, como pelo denominado socialismo
proletário.
Um dos debates morais, de influência direta na política, que
se trava aqui no Brasil no momento, está aberto pelo moralismo udenista, tanto
promovido pela extrema esquerda anti-Lula, como pelo conglomerado demo-tucano.
Trata-se da questão relacionada com a política de alianças, ou seja, a
demonização do PT pela sua “abertura” na política de alianças. O ataque
centra-se, principalmente, na consideração que o PT relaciona-se -para sermos
delicados- com grupos e pessoas que tem métodos não republicanos de
participação na gestão do Estado. Eu penso que temos, sim, problemas sérios na
composição das alianças, quanto à frequente ausência de parâmetros
programáticos para realizá-las, mas os argumentos moralistas da extrema
esquerda são frutos de mero oportunismo político, pois compete ao partido
hegemônico, nas alianças, impor seus critérios morais para tratar do interesse
público nas coalizões de governo.
Quanto à direita conservadora nem é preciso responder. Mas,
em relação à extrema esquerda devemos lembrá-los que métodos não republicanos
de fazer política podem estar presentes em todas as alianças, tanto de
governos, como pontuais e conjunturais, feitas nos parlamentos locais,
regionais e nacionais. Ela mesma, a extrema esquerda, faz estas alianças com o
conservadorismo neoliberal, com a mídia hegemônica, com as bases de direita das
corporações mais privilegiadas do serviço público, para atacar e tentar
desestabilizar os governos progressistas e de esquerda no país. Inclusive
promovendo uma aliança clara, tanto com a mídia tradicional como com a direita
neoliberal, na aventura de golpismo político promovida contra o primeiro
governo Lula.
Um exemplo desta interdependência dialética entre fins e
meios - ação política com finalidades estratégicas-foi o comportamento da
extrema esquerda, composta pelos seus pequenos partidos em aliança com o antigo
PFL e com alguns intelectuais corregedores do marxismo, no episódio de
implementação do Prouni, que hoje já levou milhões de jovens filhos de
trabalhadores para as Universidades privadas do país. Seu elitismo esquerdista
decidiu que era necessário bloquear o Prouni, ou seja, bloquear a entrada, na
Universidade, de milhões de jovens pobres, porque, catalogando o Prouni como um
projeto “neoliberal”do MEC de Lula, isso facilitaria a desmoralização de um
governo com respaldo nas classes trabalhadoras, que assim viriam para o leito
da sua liderança iluminada.
O objetivo escolhido como altruísta -a igualdade pela
revolução socialista no horizonte- fornecia fundamentos éticos para promoverem
uma política irracional de ataques a um dos programas mais revolucionários, em
termos democráticos, do governo do Presidente Lula. Programa este que estava
sob ataque da mídia hegemônica, que estava sendo severamente bloqueado pela
direta neoliberal e pelas universidades empresariais privadas do país. Nesta
ação desesperada, não hesitaram em promover ações típicas das SA nazistas, como
ocorreu na Câmara de Vereadores de São Paulo, inclusive tentando impedir que
ocorressem debates públicos sobre o Programa.
Porque assim o fizeram e fazem? Porque entendem que os seus
fins éticos altruístas (a revolução socialista) lhes dá superioridade moral
para estabelecerem relações com seus inimigos de classe, através de
“exteriorizações” (ações políticas), que se “materializariam” no tecido social,
como capital político “revolucionário”, que acumulariam ao longo da História,
para levar os trabalhadores ao poder. É fácil desmontar este projeto. Quem
instrumentaliza quem, na maioria destes episódios? A extrema esquerda
promove-se, com a ajuda da direita neoliberal, ou a direita neoliberal atiça o
“povo” contra o PT, ajudado pela chamada extrema esquerda?
As duas coisas acontecem, de fato, mas o fim altruísta não
fica mais próximo. Ele não pode ser conquistado com uma aliança na qual ninguém
hegemoniza ninguém, mas trata-se, apenas, de uma relação determinada por mera
contingência oportunista, de ambas as partes, para atacar quem governa, com
erros e acertos -mais acertos do que erros- e está mudando o Brasil para
melhor. A extrema esquerda não lida com a possibilidade, nem neste período
histórico, de um bloco social dirigente que inclua pelo menos parte dos setores
médios superiores e setores empresariais. E a direita neoliberal apenas
aproveita o udenismo de contingência eleitoral da extrema esquerda para
“purificar-se” eleitoralmente, no leito da autenticidade de quem,
aparentemente, não quer governar dentro da ordem.
Assim como é impossível julgar uma ação exclusivamente pelos
seus “efeitos” imediatos na prática social (o resultado empírico e datado
daquela ação), seja ela uma ação política defensiva, seja ela uma ação ofensiva
em termos de poder, também é impossível aceitar que os “resultados” da ação
sejam sempre legitimados porque os seus “fins últimos” derivaram supostamente
uma ética universal. Os problemas que estão aí colocados pela engenharia genética
dos humanos e pela bioética, são suficientemente enigmáticos para nos propor
certa prudência filosófica.
A estratégia de uma esquerda que propõe a questão democrática
como uma questão não subsidiária, mas integrante de um projeto socialista
inovador de longo curso, não pode nem balizar-se pelos udenismos moralistas de
ocasião e rejeitar alianças que sejam programáticas, nem podem desdenhar da
moralidade política –esta, inscrita na Constituição e nas leis legítimas- que
estabelece os limites normativos para a dependência recíproca entre fins e
meios, visando alcançar determina dos objetivos.
A reforma política, o financiamento público das campanhas, a
democratização efetiva da circulação da opinião pelos meios de comunicação, a
participação da cidadania - especialmente das classes populares- na produção e
na implementação das políticas públicas são, hoje, elementos essenciais da
revolução democrática no país. Estas grandes transições sempre promoveram
comoções sociais e políticas, que sempre oferecem oportunidades de retrocesso
ou avanço. Isso mais tarde ou mais cedo vai ocorrer no Brasil, que já está
sofrendo uma grande mutação na sua estrutura de classes e consequentemente
preparando novas lideranças políticas para o futuro. Daí, será uma nova Constituinte,
desta feita originária? Esta é uma boa ideia.
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