Pesquisa extenuante, riqueza de detalhes, revelações,
inteligência na exposição e honestidade. Essas são apenas algumas das
qualidades de “Marighella”, livro do jornalista Mário Magalhães lançado no fim
do ano passado. É com o autor que este blog tem o prazer de fazer a entrevista
deste mês.
A biografia de Carlos Marighella já recebeu diversos,
empolgados e mais do que merecidos elogios desde que foi lançada. São 732
páginas de uma história fascinante, resultado de mais de nove anos de pesquisa
em diversos países e com 256 entrevistados.
“Sua trajetória tem muita ação, aventura, drama, humor,
mistérios, espionagem, ideias, amor e histórias. Permitiu contar a história
trepidante de quatro décadas do Brasil e do mundo, de 1930 a 1960. Dezenas de
coadjuvantes ou coprotagonistas merecem, eles mesmos, biografias exclusivas,
tal seu encanto. Com o que mais um repórter poderia sonhar, além disso?”, diz
Magalhães.
Um dos muitos pontos altos da biografia foi o de não fazer o
julgamento de Marighella, não o elegendo como um herói ou um bandido: “Mais do
que pintar Marighella como um facínora destituído de decência, certa
historiografia oficial se empenhou em eliminá-lo da memória do país. Perderam:
não lograram apagá-lo da história.”.
Para ele, o silêncio
sobre Marighella no ensino de história representa um crime de desonestidade
intelectual. Acompanhem a entrevista:
[ Zé Dirceu ] Mário,
como aconteceu a ideia deste trabalho sobre o Marighella?
[ Magalhães ] Nasci na
primeira semana de abril de 1964, a do golpe de Estado que derrubou o governo
constitucional do presidente João Goulart. Em 2003, eu tinha 39 anos. Antes de
completar os 40, queria mergulhar em uma reportagem de fôlego, sem as amarras
de tempo e espaço próprias de uma redação de jornal. Decidi escrever uma
biografia. Não encontrei personagem com vida mais fascinante, goste-se ou não
dele, do que Carlos Marighella (1911-69).
Sua trajetória tem muita ação, aventura, drama, humor,
mistérios, espionagem, ideias, amor e histórias. Permitiu contar a história
trepidante de quatro décadas do Brasil e do mundo, de 1930 a 1960. Dezenas de
coadjuvantes ou coprotagonistas merecem, eles mesmos, biografias exclusivas,
tal seu encanto. Com o que mais um repórter poderia sonhar, além disso?
[ Zé Dirceu ]
Conte-nos um pouco como foi seu trabalho de pesquisa, quanto tempo durou e como
se deu a reunião da documentação, das entrevistas.
[ Magalhães ] Foram
mais de nove anos de trabalho, dos quais cinco anos e nove meses em dedicação
exclusiva. Entrevistei 256 pessoas, das quais cerca de 30 já faleceram _não sou
pé-frio, eram na maioria octogenários e nonagenários, contemporâneos de
Marighella. Até com a professora de inglês dele e seu camarada Maurício
Grabois, Heddy Peltier, eu conversei. Ela lhes deu aulas no fim dos anos 1920,
no célebre Ginásio da Bahia.
Em 17 de abril de 1945, Marighella viaja da Ilha Grande para
o Rio de Janeiro, onde seria solto no dia seguinte, depois de quase seis anos
de prisão [Aperj]
Os documentos foram garimpados em arquivos públicos e
privados de Rússia, República Tcheca, Estados Unidos, Paraguai e Brasil. No
total, consultei mais de 70 mil páginas de documentos. Em boa parte secreta (no
caso de papéis produzidos pelo Estado) ou clandestina (por militantes de
oposição) na origem. A bibliografia somou 600 títulos, equivalendo a quase 700
volumes.
Organizado, esse material rendeu em torno de 5.500 arquivos
digitais, incluindo a transcrição de perto de mil horas de entrevistas. Com um
comando de busca, posso encontrar todas as informações armazenadas referentes a
um determinado personagem do livro.
[ Zé Dirceu ]
Gostaríamos de saber mais sobre essas entrevistas. Você pode citar
alguma que te marcou mais ou que foi mais representativa?
[ Magalhães ] Eu seria
profundamente injusto se destacasse um só entrevistado. Todos foram relevantes
para contar a história de Marighella. Dos seus partidários mais fiéis aos
inimigos mais encarniçados. Para muitas pessoas, a entrevista para a biografia
serviu como desabafo, com confidências guardadas por décadas. Não foram poucas
as que se emocionaram. Um dos aspectos que mais me chamaram a atenção foi como
os antagonistas respeitavam ou mesmo se assombravam com a coragem de
Marighella. Não foram apenas seus correligionários que o qualificaram como
valente, mas perseguidores como o policial Cecil Borer, que o caçou no Rio de
Janeiro por mais de 30 anos.
[ Zé Dirceu ] O que mais te impressiona no Marighella? Se
você fosse contar para alguém que jamais ouviu falar dele, como você o
sintetizaria?
[ Magalhães ]
Marighella foi um revolucionário que deu a vida pelos ideais que defendia. Era um homem valente, essencialmente de ação.
Viveu intensamente. Para ele, a vida estava muito longe de se resumir à
política. Ele se autodefiniu em meados da década de 1940: “Sou um mulato
baiano”.
[ Zé Dirceu ] Como você avalia a memória dos brasileiros em
relação ao Marighella e, também, ao período militar como um todo?
[ Magalhães ] A
memória está sendo construída. Mais do que pintar Marighella como um facínora
destituído de decência, certa historiografia oficial se empenhou em eliminá-lo
da memória do país. Perderam: não lograram apagá-lo da história. Assim como não
“colou” o papel de vilão a que tal historiografia pretendeu condenar os
militantes que combateram legitimamente a ditadura, a despeito das viúvas
daquele regime que ainda hoje esperneiam.
Isso tudo apesar de Marighella ainda ter hoje muito mais
projeção no exterior do que no Brasil. É impossível fazer uma relação dos
brasileiros mais conhecidos mundo afora no século XX, excluindo artistas e
desportistas, sem incluir Marighella. É incrível que a Bahia ainda hoje não
tenha um Memorial Marighella. O político baiano mais famoso no exterior em
todos os tempos não é Juracy Magalhães (nascido no Ceará, mas com carreira na
Bahia), Antonio Conselheiro (outro cearense), Otávio Mangabeira ou Antonio
Carlos Magalhães. É Marighella, disparado!
Em 2012, o Brasil conheceu um pouco mais Marighella. Foram
lançados o filme dirigido por Isa Grinspum Ferraz; o clipe de Daniel Grinspum,
com os Racionais MC’s; a música “Um comunista”, de Caetano Veloso; e a
biografia que escrevi – tudo sobre
Marighella.
Ainda há muito por se descobrir a respeito do nosso passado,
mas os brasileiros sabem que a ditadura foi nefasta. Por que não aparece um só
candidato a cargo majoritário em eleição defendendo o regime que vigorou de
1964 a 85? Porque só obteria meia dúzia de votos.
Espero que a Comissão Nacional da Verdade contribua
decisivamente para o reencontro do Brasil com sua memória e para que se faça
justiça. Enquanto responsáveis por crimes contra os direitos humanos não forem
punidos, novas gerações de carrascos se sentirão desimpedidas para perpetrar de
novo as mesmas violações do período inaugurado em 1964. A rigor, já perpetram,
na tortura e extermínio cotidiano de jovens pobres por agentes do Estado.
[ Zé Dirceu ] Você afirmou que projeção internacional de
Marighella é maior do que a no Brasil. Por quê? Fale-nos mais sobre esse
reconhecimento internacional.
[ Magalhães ] Ao se
tornar o personagem mais influente e conhecido da luta armada contra a ditadura
no Brasil, Marighella tornou-se figura mundial. O jornal francês “Le Monde” o
chamava de “mulato hercúleo”. A revista americana “Time” se referiu ao “mulato
de olhos verdes” – Marighella se transformava em mito; seus olhos na verdade
eram castanhos. Quando a Ação Libertadora Nacional (ALN), organização fundada e
comandada por Marighella, tomou os transmissores da Rádio Nacional paulista, em
agosto de 1969, o “New York Times”, um dos diários mais importantes do planeta,
dedicou ao fato mais de 250 linhas.
A Central Intelligence Agency, a CIA norte-americana, apontou
Marighella como o sucessor do guerrilheiro argentino-cubano Ernesto Che Guevara
na inspiração de movimentos rebeldes na América Latina. Em todo o mundo,
movimentos contestatórios e revolucionários se inspiraram em Marighella e seu
“Minimanual do guerrilheiro urbano”, brochura de junho de 1969. “Todo o mundo”
mesmo, dos Panteras Negras nos Estados Unidos à Organização para a Libertação
da Palestina (OLP) no Oriente Médio.
Sem contar a dimensão de Marighella no Brasil enquanto viveu
e não foi alvo da tentativa de eliminá-lo da história. Para ficar em um
exemplo, a revista “Veja” dedicou-lhe duas vezes a capa, em novembro de 1968 e
novembro de 1969. Quantos personagens ganharam duas vezes a capa de “Veja” em
um período tão curto?
[ Zé Dirceu ] Você traz duas importantes novidades na
pesquisa. A primeira que Marighella não trocou tiros com os militares durante a
emboscada. Como você descobriu isso?
[ Magalhães ] A rigor,
o livro tem centenas de revelações, do lugar onde Marighella realmente nasceu
às circunstâncias de seu assassinato. Sobre Marighella não ter disparado um só
projétil na noite de 4 de novembro de 1969, quando o mataram, inexiste
controvérsia: jamais apareceram relatos de que ele tenha atirado. A polícia
montou uma farsa na versão oficial da morte de Marighella, mas não chegou ao
ponto de inventar que ele tivesse dado algum tiro. O que eu fiz foi checar
todas as fontes, dos registros balísticos e da necropsia até entrevistar
pessoas presentes na cena do crime, incluindo alguns agentes repressores e dois
frades partidários de Marighella.
O que os funcionários da ditadura fantasiaram foi a
existência de seguranças de Marighella. No livro, eu esquadrinho todas as
provas de que isso não passa de cascata. Narro a morte em minúcias no capítulo
“Tocaia”. O capítulo seguinte é “Post mortem: anatomia de uma farsa”. Nele,
explico em minúcias as provas que permitem descrever com segurança os momentos
derradeiros de Marighella. Por exemplo: como saber que Marighella, ao contrário
de tantas versões, estava mesmo desarmado? Explico na biografia.
[ Zé Dirceu ] Como
você chegou à conclusão de que Marighella entrou com 23 anos no Partido
Comunista e não com 19?
[ Magalhães ] Esse é o
típico empenho de apuração que passa despercebido ao leitor. Na página 68,
gasto uma só frase, com menos de dez palavras, para cravar que Marighella
ingressou no PCB em 1934, ano do seu 23º aniversário. Quase todos os relatos
conhecidos dão conta de que Marighella foi admitido com 18 ou 19 anos no
partido. Eu já sabia que isso era impossível, pois em agosto de 1932 ele fora
preso por apoiar o movimento paulista contra Getulio Vargas. Como o Partido
Comunista se opunha tanto ao presidente da República como aos oligarcas de São
Paulo, Marighella não poderia ser na época militante daquela agremiação.
Na Casa de Oswaldo Cruz, li um depoimento do médico Manuel
Isnard Teixeira, que recepcionou Marighella na Juventude Comunista. Seu relato
indica que isso ocorreu a partir de 1933, mas não determina o ano.
Só em 2012 foi possível ter certeza, com base numa fonte
privilegiada: o próprio Marighella contou que se integrou ao PCB em 1934. A
informação consta de uma autobiografia manuscrita por ele em castelhano. Em
sete páginas, foi redigida em 1954, na então União Soviética. Até hoje está
guardada em Moscou, em arquivos da ex-URSS que o dirigente russo Vladímir Pútin
manteve fechados por muitos anos, mas que recentemente voltaram a ser abertos
ao público.
[ Zé Dirceu ] Como
você avalia o lugar de Marighella na história?
[ Magalhães ] Carlos Marighella é um gigante da história do
Brasil, independentemente do juízo que se faça sobre ele. É legítimo amá-lo ou
odiá-lo, mas é impossível ficar indiferente à sua história fascinante. Enquanto
ele for mantido à margem dos livros escolares, continuará a ser um brasileiro
maldito. Não defendo que os manuais de história o promovam, nem que o condenem.
Mas não podem mais calar sobre ele.
O silêncio sobre Marighella no ensino de história representa
um crime de desonestidade intelectual. Seria como apagar o nome de Carlos
Lacerda, o mais tonitruante anticomunista no Brasil do século XX. Ou seja, um
absurdo. E Lacerda nunca teve maior projeção internacional, ao contrário de
Marighella, que até hoje inspira revolucionários em todo o mundo.
[ Zé Dirceu ] Qual o
papel do jornalismo investigativo hoje e o que é necessário para fazer uma boa
biografia?
[ Magalhães ] O
jornalismo dito investigativo não pode se conter nas aparências. Tem de apurar
a essência. Não deve ser preconceituoso. Tem de ser mais substantivo e menos
adjetivo. Em outras palavras, ater-se à informação, sem se deixar contaminar
por tanta opinião. Repórteres e jornalistas que contam histórias não deveriam
nutrir veleidades de promotor (por exemplo, para acusar personagens como
Marighella ou instituições às quais ele pertenceu); de advogado (para
defendê-los); e muito menos de juiz (cabe aos repórteres, biógrafos ou não,
fornecer informações que permitam ao leitor tirar as suas próprias conclusões).
No caso de Marighella, não o julguei. A biografia que escrevi
não afirma nem que ele é herói, nem que é vilão. Narro o que ele fez, disse e pensou.
Ofereço matéria-prima para cada pessoa concluir o que quiser, conforme suas
próprias ideias. Marighella já tem muitos partidários e inimigos; meu propósito
foi o de contar sua história frenética.
Uma necessidade indispensável para o biógrafo é a de tempo.
Eu poderia produzir no período de dois ou três anos um livro sobre Marighella.
Mas não seria a biografia que escrevi. A redação do livro me tomou mais tempo
do que a apuração, por mais imensa que esta tenha sido. Há um risco altíssimo
de transformar um volume monumental de informações em texto de tom relatorial,
enfadonho. Eu me propus a redigir o
livro como se ele fosse um romance, com a diferença escrupulosa de que nele
tudo é verdade _ao fim do volume, 2.580 notas indicam a fonte de cada informação
interessante ou relevante. Pensei assim: ao contar uma vida de tirar o fôlego,
meu propósito estético tem de ser o de produzir uma narrativa de tirar o
fôlego. Não sei se consegui, mas é o que tentei fazer.
[ Zé Dirceu ] Você
afirma que Marighella é um gigante da História. O que é preciso para que ele
seja reconhecido como tal?
[ Magalhães ] É
preciso que se conheça sua história – ela fala por si.
“Marighella”
Autor: Mário Magalhães
Editora: Companhia das Letras
784 páginas
Chuchu,
ResponderExcluirA viuva do Marighella, clara Sharf é militante do DZ Perdizes e queremos realizar uma homenagem dos 100 anos de Marighella, me mande mais informações e se quizer ajudar é bem vindo.