Luis Nassif
Em 1962, Wanderley Guilherme dos Santos – o mais importante
cientista político brasileiro vivo – produziu um texto clássico, prevendo o
golpe que ocorreria dois anos depois. Com 52 páginas, o texto Quem dará o golpe
no Brasil já revelava, no jovem Wanderley, as qualidades que se consolidariam
no Wanderley adulto: a capacidade de enxergar a realidade sob diversos ângulos
e, dentro de sua complexidade, identificar os fatores mais relevantes.
***
O texto destinava-se à “vanguarda das forças populares”, seja
lá isso o que fosse, e buscava definir uma estratégia contra o golpe que se
avizinhava. Valia-se de uma linguagem carbonária radical para passar uma
mensagem acauteladora: não existe saída fora da democracia e da organização
social.
***
O trabalho inicia identificando os golpistas. Focava,
especialmente, Carlos Lacerda.
Depois, as contradições intrínsecas ao capitalismo, que
acabam levando aos conflitos políticos.
A dinâmica do capitalismo global – sistema no qual o Brasil
se inseria – consiste em consagrar o controle da minoria sobre o Estado,
definindo leis e procedimentos que, aumentando a eficácia da economia,
garantissem os ganhos do capital.
Dizia ele: tanto no regime democrático como na ditadura, o
governo representa as minorias que detêm a influência política e econômica. O
ambiente ideal é a democracia com suas leis restritivas, explicava no trabalho.
***
No entanto, o desenvolvimento cria suas próprias demandas,
abre espaço para uma organização mais efetiva dos trabalhadores, assim como
para o aumento das suas demandas.
Mesmo com todos os impedimentos legais – na época não se
permitia voto para analfabetos nem se regulamentava o direito de greve – havia
uma tendência irreversível de aumento do espaço de novos atores políticos
(aliás, fenômeno de toda democracia identificado desde os estudos pioneiros
sobre o tema). E, aí, surgiam as resistências de alguns setores.
Quando o governo – e as leis vigentes – são incapazes de
administrar os conflitos, ou impedir o aumento da espaço político das chamadas
forças populares, apela-se para o golpe.
***
Na avaliação de Wanderley, o golpe em gestação era
basicamente civil. E seria viável devido à disfuncionalidade do governo
Goulart.
Até seria possível a participação dos militares, já que as
Forças Armadas participam da fase final de todo golpe. Mas dificilmente seria
uma golpe militar – como parte dos observadores supunham, dado o histórico das
últimas décadas. Por golpe militar ele entendia a ocupação dos principais
cargos da administração por militares.
***
Eram várias as
razões:
1. O Brasil pertencia à zona de influência dos Estados
Unidos. Enquanto pertencesse ao sistema capitalista, não haveria riscos de
intervenção militar. E aí, Wanderley alertava para os riscos de uma prática
temerária: a expropriação da empresas internacionais, iniciada pouco antes por
Leonel Brizola, quando governador do Rio Grande do Sul.
2. A própria heterogeneidade das Forças Armadas. Ao contrário
da Argentina, explicava ele, as Forças Armadas são constituídas por
representantes da classe média e, como tal, sujeitas à mesma heterogeneidade de
salários e de visões de mundo.
Os golpes de esquerda – 1
Essa mesma heterogeneidade ele observava no que chamava de
“forças da burguesia”. Havia interesses conflitantes entre burguesia
industrial, agrícola etc. Enquanto fosse mantida a heterogeneidade, não haveria
risco de golpe. O golpe só prosperaria se houvesse um fator uniformizador das
expectativas, dizia Wanderley. Como, por exemplo, o risco de um “golpe de
esquerda”. No texto, ele demonstrava essa impossibilidade.
Os golpes de esquerda – 2
Golpes são sempre imprevistos e comportam traições. Então, só
podem ser conduzidos por minorias que utilizam o povo apenas para convalidar
socialmente suas manobras. As verdadeiras conquistas se dão no dia a dia, na
construção de uma base social, em ambiente democrático, dizia ele. Ao mencionar
a impossibilidade do golpe de esquerda, Wanderley tentava alertar para a
imprudência de aventuras populistas.
Os golpes de esquerda – 3
É importante esse ponto, porque conflitaria, mais adiante,
com as estratégias de resistência tentadas por Leonel Brizola, Darcy Ribeiro e
os grupos da luta armada.
“Não há golpe sem
traição (…) Precisamente por isto o poder conquistado pelo golpe está
inevitavelmente condenado a ser perdido, mais cedo ou mais tarde, enquanto as
conquistas reais do povo são historicamente irreversíveis”.
O antídoto para o golpe
Segundo Wanderley, a grande disputa se daria na classe média,
nos setores até então neutros. E o melhor antídoto seria informar a opinião
pública sobre a legitimidade das reformas de base para o aprimoramento do país
(tarefa impossível devido à radicalização na mídia e no governo). Por exemplo,
o instituto do latifúndio representava o que de mais atrasado havia para o
país, dificultando a produção de alimentos e produzindo crises periódicas de
abastecimento.
Recomendações ignoradas
Nos anos seguintes, o governo Jango praticamente rompeu com o
sistema capitalista mundial, ao atropelar negociações em curso com o Clube de
Paris. O episódio resultou na demissão do Ministro da Fazenda, Walther Moreira
Salles, até então o grande avalista do governo junto à comunidade econômica
mundial. Seguiram-se manifestações de rua crescentes, cujo único resultado prático
foi fortalecer o discurso golpista.
O golpe militar
Veio 1964. Apesar da eleição do Marechal Castelo Branco, foi
um golpe eminentemente civil. A reação dos destituídos, o fantasma da revolução
cubana, o início da luta armada e a desmoralização das instituições políticas –
pelos próprios conspiradores civis – finalmente criou o discurso legitimador
para que o golpe civil se transformasse em golpe militar. Lacerda foi jogado
fora, ao lado de todas as lideranças civis da época.
Nenhum comentário:
Postar um comentário