quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Um estudo clássico sobre 1964



Luis Nassif

Em 1962, Wanderley Guilherme dos Santos – o mais importante cientista político brasileiro vivo – produziu um texto clássico, prevendo o golpe que ocorreria dois anos depois. Com 52 páginas, o texto Quem dará o golpe no Brasil já revelava, no jovem Wanderley, as qualidades que se consolidariam no Wanderley adulto: a capacidade de enxergar a realidade sob diversos ângulos e, dentro de sua complexidade, identificar os fatores mais relevantes.
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O texto destinava-se à “vanguarda das forças populares”, seja lá isso o que fosse, e buscava definir uma estratégia contra o golpe que se avizinhava. Valia-se de uma linguagem carbonária radical para passar uma mensagem acauteladora: não existe saída fora da democracia e da organização social.
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O trabalho inicia identificando os golpistas. Focava, especialmente, Carlos Lacerda.
Depois, as contradições intrínsecas ao capitalismo, que acabam levando aos conflitos políticos.
A dinâmica do capitalismo global – sistema no qual o Brasil se inseria – consiste em consagrar o controle da minoria sobre o Estado, definindo leis e procedimentos que, aumentando a eficácia da economia, garantissem os ganhos do capital.
Dizia ele: tanto no regime democrático como na ditadura, o governo representa as minorias que detêm a influência política e econômica. O ambiente ideal é a democracia com suas leis restritivas, explicava no trabalho.
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No entanto, o desenvolvimento cria suas próprias demandas, abre espaço para uma organização mais efetiva dos trabalhadores, assim como para o aumento das suas demandas.
Mesmo com todos os impedimentos legais – na época não se permitia voto para analfabetos nem se regulamentava o direito de greve – havia uma tendência irreversível de aumento do espaço de novos atores políticos (aliás, fenômeno de toda democracia identificado desde os estudos pioneiros sobre o tema). E, aí, surgiam as resistências de alguns setores.
Quando o governo – e as leis vigentes – são incapazes de administrar os conflitos, ou impedir o aumento da espaço político das chamadas forças populares, apela-se para o golpe.
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Na avaliação de Wanderley, o golpe em gestação era basicamente civil. E seria viável devido à disfuncionalidade do governo Goulart.
Até seria possível a participação dos militares, já que as Forças Armadas participam da fase final de todo golpe. Mas dificilmente seria uma golpe militar – como parte dos observadores supunham, dado o histórico das últimas décadas. Por golpe militar ele entendia a ocupação dos principais cargos da administração por militares.
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Eram várias as razões:
1. O Brasil pertencia à zona de influência dos Estados Unidos. Enquanto pertencesse ao sistema capitalista, não haveria riscos de intervenção militar. E aí, Wanderley alertava para os riscos de uma prática temerária: a expropriação da empresas internacionais, iniciada pouco antes por Leonel Brizola, quando governador do Rio Grande do Sul.
2. A própria heterogeneidade das Forças Armadas. Ao contrário da Argentina, explicava ele, as Forças Armadas são constituídas por representantes da classe média e, como tal, sujeitas à mesma heterogeneidade de salários e de visões de mundo.
Os golpes de esquerda – 1
Essa mesma heterogeneidade ele observava no que chamava de “forças da burguesia”. Havia interesses conflitantes entre burguesia industrial, agrícola etc. Enquanto fosse mantida a heterogeneidade, não haveria risco de golpe. O golpe só prosperaria se houvesse um fator uniformizador das expectativas, dizia Wanderley. Como, por exemplo, o risco de um “golpe de esquerda”. No texto, ele demonstrava essa impossibilidade.
Os golpes de esquerda – 2
Golpes são sempre imprevistos e comportam traições. Então, só podem ser conduzidos por minorias que utilizam o povo apenas para convalidar socialmente suas manobras. As verdadeiras conquistas se dão no dia a dia, na construção de uma base social, em ambiente democrático, dizia ele. Ao mencionar a impossibilidade do golpe de esquerda, Wanderley tentava alertar para a imprudência de aventuras populistas.
Os golpes de esquerda – 3
É importante esse ponto, porque conflitaria, mais adiante, com as estratégias de resistência tentadas por Leonel Brizola, Darcy Ribeiro e os grupos da luta armada.
 “Não há golpe sem traição (…) Precisamente por isto o poder conquistado pelo golpe está inevitavelmente condenado a ser perdido, mais cedo ou mais tarde, enquanto as conquistas reais do povo são historicamente irreversíveis”.
O antídoto para o golpe
Segundo Wanderley, a grande disputa se daria na classe média, nos setores até então neutros. E o melhor antídoto seria informar a opinião pública sobre a legitimidade das reformas de base para o aprimoramento do país (tarefa impossível devido à radicalização na mídia e no governo). Por exemplo, o instituto do latifúndio representava o que de mais atrasado havia para o país, dificultando a produção de alimentos e produzindo crises periódicas de abastecimento.
Recomendações ignoradas
Nos anos seguintes, o governo Jango praticamente rompeu com o sistema capitalista mundial, ao atropelar negociações em curso com o Clube de Paris. O episódio resultou na demissão do Ministro da Fazenda, Walther Moreira Salles, até então o grande avalista do governo junto à comunidade econômica mundial. Seguiram-se manifestações de rua crescentes, cujo único resultado prático foi fortalecer o discurso golpista.
O golpe militar
Veio 1964. Apesar da eleição do Marechal Castelo Branco, foi um golpe eminentemente civil. A reação dos destituídos, o fantasma da revolução cubana, o início da luta armada e a desmoralização das instituições políticas – pelos próprios conspiradores civis – finalmente criou o discurso legitimador para que o golpe civil se transformasse em golpe militar. Lacerda foi jogado fora, ao lado de todas as lideranças civis da época.

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