Trinta anos sem o gênio Mané Garrincha
No dia 20 de janeiro de 1983, há exatos 30 anos, morria
Manuel Francisco dos Santos, o Mané Garrincha, no Rio de Janeiro. Por causa
disso, “Deixa Falar: o megafone do esporte” sai hoje em edição extraordinária
para lembrar Mané e uma de suas criações: o Olé, através de um texto clássico
de João Saldanha, à época (1958) técnico do lendário time do Botafogo.
Raul Milliet Filho, na Carta Maior
“OLÉ” NASCEU NO MÉXICO
(Texto extraído do
livro Os Subterrâneos do Futebol, de João Saldanha, lançado em 1963 pela
editora Tempo Brasileiro)
O Estádio Universitário ficou à cunha. Cem mil pessoas
comprimidas para assistir ao jogo. É muito alegre um jogo no México. É o país
em que a torcida mais se parece com a do Rio de Janeiro. Barulhenta, participa
de todos os lances da partida.
Vários grupos de “mariaches” comparecem. Estes grupos, que
formam o que há de mais típico da música mexicana, são constituídos de um ou
dois “pistões” e clarins, dois ou três violões, harpa (parecida com a das
guaranias), violinos e marimbas.
As marimbas são completamente de madeira, mas não vão ao
campo de futebol, sendo substituídas por instrumentos pequenos. O ponto alto
dos “mariaches” é a turma do pistão, do clarim e o coro, naturalmente. No campo
de futebol, os grupos amadores de “mariaches” que comparecem ficam mais ativos
em dois momentos distintos: ou quando o jogo está muito bom e eles se entusiasmam,
ou, inversamente, quando o jogo está chato e eles “atacam” músicas em tom
gozador. No jogo em que vencemos ao Toluca, que estava no segundo caso, os
“mariaches” salvaram o espetáculo.
O time do River era, realmente, uma máquina. Futebol bonito e
um entendimento que só um time que joga junto há três anos pode ter.
Modestamente, jogamos trancados. A prudência mandava que isto fosse feito. De
fato, se “abríssemos”, tomaríamos um baile.
Foi um jogo de rara beleza. E não foi por acaso. De um lado
estavam Rossi, Labruña, Vairo, Menéndez, Zarate, Carrizo. De outro, estavam
Didi, Nilton Santos, Garrincha etc. Jogo duro e jogo limpo. Não se tratava de
camaradagem adquirida em quase um mês no mesmo hotel, mas sim da presença de
grandes craques no gramado. A torcida exultava e os “mariaches” atacavam
entusiasmados.
Estava muito difícil fazer gol. Poucas vezes vi um jogo
disputado com tanta seriedade e respeito mútuos. Mas houve um espetáculo à
parte. Mané Garrincha foi o comandante. Dirigiu os cem mil espectadores.
Fazendo reagirem à medida de suas jogadas. Foi ali, naquele dia, que surgiu a
gíria do “Olé”, tão comumente utilizada posteriormente em nossos campos. Não
porque o Botafogo tivesse dado “Olé” no River. Não. Foi um “Olé” pessoal. De
Garrincha em Vairo.
Nunca assisti a coisa igual. Só a torcida mexicana com seu
traquejo de touradas poderia, de forma tão sincronizada e perfeita, dar um
“Olé” daquele tamanho. Toda vez que Mané parava na frente de Vairo, os
espectadores mantinham-se no mais profundo silêncio. Quando Mané dava aquele
seu famoso drible e deixava Vairo no chão, um coro de cem mil pessoas
exclamava: “Ôôôôô”! O som do “olé” mexicano é diferente do nosso. O deles é o
típico das touradas. Começa com um ô prolongado, em tom bem grave, parecendo um
vento forte, em crescendo, e termina com a sílaba “lé” dita de forma rápida.
Aqui é ao contrário: acentua-se mais o final “lé”: “Olééé!” – sem separar, com
nitidez, as sílabas em tom aberto.
Verdadeira festa. Num dos momentos em que Vairo estava parado
em frente a Garrincha, um dos clarins dos “mariaches” atacou aquele trecho da
Carmem que é tocado na abertura das touradas. Quase veio abaixo o Estádio
Universitário.
Numa jogada de Garrincha, Quarentinha completou com o gol
vazio e fez nosso gol. O River reagiu e também fez o dele. Didi ainda fez
outro, de fora da área, numa jogada que viera de um córner, mas o juiz anulou
porque Paulo Valentim estava junto à baliza. Embora a bola tivesse entrado do
outro lado, o árbitro considerou a posição de Paulinho ilegal. De fato,
Paulinho estava “off-side”. Havia um bolo de jogadores na área, mas o árbitro
estava bem ali. E Paulinho poderia estar distraindo a atenção de Carrizo.
O jogo terminou empatado. Vairo não foi até o fim. Minella
tirou-o do campo, bem perto de nós no banco vizinho. Vairo saiu rindo e
exclamando: “No hay nada que hacer. Imposible” – e dirigindo-se ao suplente que
entrava, gozou:
– Buena suerte muchacho. Pero antes, te aconsejo que escribas
algo a tu mamá.
O jogo terminou empatado e uma multidão invadiu o campo. O
“Jarrito de Oro”, que só seria entregue ao “melhor do campo” no dia seguinte,
depois de uma votação no café Tupinambá, foi entregue ali mesmo a Garrincha. Os
torcedores agarraram-no e deram uma volta olímpica carregando Mané nos ombros. Sob
ensurdecedora ovação da torcida. No dia seguinte, os jornais acharam que
tínhamos vencido o jogo, considerando o tal gol como válido. Mas só dedicaram a
isto poucas linhas. O resto das reportagens e crônicas foi sobre Garrincha.
As agências telegráficas enviaram longas mensagens sobre o
acontecimento e deram grande destaque ao “Olé”. As notícias repercutiram
bastante no Rio e a torcida carioca consagrou o “Olé”. Foi assim que surgiu
este tipo de gozação popular, tão discutido, mas que representa um sentimento
da multidão.
Já tentaram acabar com o “Olé”. Os árbitros de futebol, com
sua inequívoca vocação para levar vaias, discutiram o assunto em congresso e
resolveram adotar sanções. Mas como aplicá-las? Expulsando a torcida do
estádio? Verificando o ridículo a que estavam expostos, deixam cada dia mais o
assunto de lado. É melhor assim. É mais fácil derrubar um governo do que acabar
com o “Olé”.
Não poderia ter havido maior justiça a um jogador que a que
foi feita pelos mexicanos a Mané Garrincha. Garrincha é o próprio “Olé”.
Dentro e fora de campo, jamais vi alguém tão desconcertante,
tão driblador. É impossível adivinhar-se o lado por onde Mané vai “sair” da
enrascada. Foi a coisa mais justa do mundo que Garrincha tivesse sido o
inspirador do “Olé”.
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