Os choques elétricos, os métodos de interrogatórios, os
sequestros em plena noite, a tortura sistemática, a guerra psicológica, os
desaparecimentos e os voos da morte são técnicas que foram transmitidas pelos
oficiais franceses aos militares sulamericanos. O cérebro destas doutrinas foi
o coronel Roger Trinquier (foto). Professor na Escola das Américas dos EUA,
Trinquier é o maior ideólogo francês da guerra suja cujo lema principal, a
partir dos anos 50, foi que “a tortura é um elemento importante na guerra
moderna contrarrevolucionária”. O artigo é de Eduardo Febbro, direto de Paris.
O cronograma das missões francesas à Argentina permite situar com exatidão que foi a ditadura de Onganía a que começou a se alimentar com esses ensinamentos. Um testemunho direto do general Campos demonstra a “irmandade” técnica e moral que existia entre o corpo de oficiais argentinos e os “missionários” que vinham de Paris com a mala repleta de métodos para matar. No mesmo artigo citado anteriormente (4 de janeiro de 1981), Camps declarou, como uma forma de homenagem: “Na Argentina primeiro recebemos a influência francesa, depois a norte-americana. Aplicamos as duas respectivamente de maneira separada e depois conjunta tomando os conceitos de ambas até que a norte-americana predominou. Mas é preciso dizer que a concepção francesa era mais exata que a norte-americana. Esta última se limitava quase exclusivamente ao aspecto militar enquanto a francesa consistia em uma visão global”.
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=20599
Eduardo Febbro - Paris
Paris - “Uma vez na habitação e com a ajuda dos oficiais,
agarramos Bem M’Hidi e o penduramos de tal maneira que pudesse parecer um
suicídio”. A prosa do veterano general Paul Aussaresses não brilha pela
originalidade, mas sim por sua precisão quando descreve as múltiplas ações
ilegais que ele e seus homens protagonizaram na Argélia. A cena exposta aqui
detalha o assassinato de um dos responsáveis do FLN argelino e não é mais que
uma gota d’água na extensa descrição dos assassinatos premeditados organizados
por oficiais do exército francês: torturas, execuções sumárias, assassinatos
disfarçados de suicídios, matança de civis e utilização de helicópteros para
jugar pessoas detidas com vida na Baía de Argel são moeda corrente ao longo de
seu livro “Serviços Especiais, Argélia 1955-1957”.
O militar francês foi julgado por apologia da tortura. Sua
história, sua passagem pelo Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS) de
Manaus como instrutor se nutrem de um passado, de duas guerras, Indochina e
Argélia, e de quatro personagens centrais que, a partir de meados dos anos 50,
alimentaram com suas teorias contrarrevolucionárias os militares da América do
Sul. O “ensino” começou na Argentina a partir dos anos 50. O primeiro contato
entre os exércitos da França e da Argentina ocorreu no ano seguinte à queda do
general Perón, em 1957. O coronel argentino Carlos Rosas, recém-egresso da
Escola de Guerra de Paris, posteriormente subdiretor da Escola de Guerra de
Buenos Aires, criou um ciclo de estudos sobre “a guerra revolucionário
comunista”. Foi neste marco que chegaram a Argentina os tenentes coronéis
François-Patrice Badie e Patrice de Naurois.
Uma nota do futuro chefe da Polícia Federal argentina sob a
ditadura de Videla, o general Ramón Camps, ilustra a importância dos dois
visitantes: “seus cursos – escreve Camps – estavam diretamente inspirados na
experiência francesa na Indochina e aplicada neste momento na Argélia”.
Em setembro de 1958, o ministro francês da Defesa, Pierre
Guillaumat, autorizou que 60 soldados argentinos que haviam seguido esses
cursos especiais fossem a Argélia, em plena guerra, em “viagem de estudos”.
Outros 60 soldados viajaram no mesmo ano com destino a Paris e, em 1960, a
cooperação entre exércitos deu lugar à criação de uma missão militar francesa
permanente na Argentina. Composta por três oficiais superiores, sua missão
consistia em “aumentar a eficácia técnica e a preparação do exército
argentino”.
Nesse mesmo ano, Pierre Messmer, ministro da Defesa, enviou a
Buenos Aires o chefe do Estado Maior do Exército, general André Demetz, e o
coronel Henri Grand d’Esson. D’Esson é um personagem chave: foi que ele que
realizou na Escola de Guerra de Buenos Aires a célebre conferência na qual
descreve cada um dos aspectos da guerra subversiva e, sobretudo, o papel
central do exército no controle “social da população e na destruição das forças
revolucionárias”. Esse texto de 22 páginas foi publicado sob o título “Guerra
Subversiva” na Revista da Escola Superior de Guerra, nº 338, Julho-Setembro de
1960. Todas essas ideias, viagens e experiências trocadas desembocarão numa
espécie de cooperação continental baseada na dupla experiência dos franceses e
dos argentinos.
Assim, em julho de 1961, o general Spirito, chefe do Estado
Maior argentino, propôs a seus colegas da Conferência dos Exércitos da América
a criação de um Curso Interamericano de luta antimarxista que seria ministrado
por um ex-aluno argentino da Escola de Guerra de Paris, o coronel López
Aufranc. Um total de 39 oficiais, representando 13 países, incluindo os EUA,
assistiram a esses cursos. Em uma mensagem enviada à chancelaria francesa, o
embaixador francês na Argentina explica: “cabe assinalar a presença de
militares norteamericanos em um curso onde se deu um espaço importante ao
estudo da luta anti-marxista em um espírito e segundo os métodos baseados na
experiência do exército francês”.
Daí ao Plano Condor há uma rota sem obstáculos na qual se
mesclam Videla, presente às aulas onde estavam os instrutores franceses, e o
plano Conintes (Comoção interna do Estado). Entre 1963 e 1973 houve uma
interrupção na colaboração francesa mas esta foi retomada a pedido dos
argentinos.
Nos anos 70 abre-se um novo capítulo. A França mandou a
Buenos Aires o coronel Pierre Servant, ex-comandante da Indochina e da Argélia,
especializado em “interrogatórios”. Em abril de 1974, Servant se encontrou em
Buenos Aires com um dos atores do golpe de 76, o tenente coronel Reynaldo
Bignone. Servant, que negou quase todos os fatos quando a justiça francesa o
interrogou há alguns anos, trabalhou no Escritório nº 3, situado no 12º andar
do quartel general do Exército argentino e deu cursos nessa sede e nas
províncias. Sem ligações com a embaixada francesa, Servant estava vinculado ao
Secretariado Nacional da Defesa Nacional (SGDN), organismo controlado então
pelo novo primeiro ministro e ex-presidente francês Jacques Chirac.
Bussi, Videla, Bignone, Vilas, Harguindeguy, todos estiveram
em contato com Servant, beberam a cultura da tortura francesa e absorveram os
livros teóricos de Trinquier como se fossem água benta. Servant deixou a
Argentina em outubro de 1976, Aussaresses foi para o Brasil em pleno golpe de
Estado.
O Plano Condor já estava em marcha. Uma nota de Henry
Kissinger (ex-secretário de Estado dos EUA) distribuída nas embaixadas
norte-americanas da Europa adverte que o grupo “murder” (assim era denominado o
Plano Condor) operaria na velho continente, especialmente em Paris. A sede
argentina do dito plano, o Centro Piloto, estava localizada no nº 83, da
Avenida Henry Martin.
O cérebro destas doutrinas é o coronel Roger Trinquier.
Professor emérito na Escola das Américas dos EUA, Trinquier é o maior ideólogo
francês da guerra suja cujo sermão principal foi assegurar a partir dos anos 50
que “a tortura é um elemento importante na guerra moderna contra
revolucionária”. A maior parte da estrutura “anti-revolucionária” foi elaborada
por Trinquier. Os historiadores da Guerra da Argélia e da Indochina, que
estabeleceram os nexos entre as práticas aplicadas durante esses conflitos e as
que se viram depois na Argentina, Uruguai, Chile e Brasil tiram uma clara
conclusão: o aperfeiçoamento do choque elétrico, a radiografia das agendas dos
detidos, os sequestros em plena noite, a tortura sistemática, a guerra
psicológica, os desaparecimentos, o uso de arquivos e os voos da morte são
técnicas transmitidas pelos oficiais franceses.
Em um artigo de 4 de janeiro de 1981, publicado pelo diário
argentino La Prensa, o general Ramón Camps assegurou que essas missões e cursos
começaram “sob a direção dos tenentes coronéis Patrice de Naurois e
François-Pierre Badie”. Aquelas sessões serviram para transmitir as
experiências dos oficiais franceses nas guerras da Indochina e da Argélia. Os
documentos existentes provam que esses ensinamentos se baseavam essencialmente
nos trabalhos escritos por outro militar francês que confessou a prática da
tortura na Argélia, o general Massu. O essencial, porém, foi “ensinado” pelo
general Salan e, sobretudo, pelo tenente coronel Roger Trinquier.
Uma nota do general Massu, com data de 19 de março de 1957,
argumenta em defesa de um dos princípios aplicados depois pelas ditaduras
militares da América do Sul: “não se pode lutar contra a guerra revolucionária
e subversiva protagonizada pelo comunismo internacional e seus intermediários
com os procedimentos clássicos de combate. É preciso utilizar métodos e ações
clandestinas e contrarrevolucionárias. É preciso que esses métodos sejam
admitidos com a alma e nossas consciências como necessários e moralmente
válidos”. Essa é a parte mais “filosófica” do “combate” contrarrevolucionário.
A definição da ação prática corresponde a Trinquier, redator de números manuais
militares difundidos na Argentina.
O tenente coronel Trinquier é o “organizador do conceito de
guerra moderna”. Essa guerra se articula em torno de três eixos: a
clandestinidade, a pressão psicológica e a moralidade estrita. Se se observam
os dispositivos técnicos aplicados na Argélia, em seguida pode-se “ler sua
tradução” na Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai e Brasil. Trinquier inventou
um sistema de busca da informação conhecido na França como Destacamentos
Operacionais de Proteção (DOP). Esse mesmo sistema foi adotado na Argentina
mediante as forças tarefa. O leitor não pode senão assombrar-se com as
semelhanças entre os DOP e as forças tarefa. Os DOP tinham a tarefa de
interrogar os detidos argelinos e utilizavam a tortura. Eles arrancavam
informação sobre a organização político-administrativa dos rebeldes e
realizavam a prisão e a eliminação dos suspeitos em lugares ocultos. Essas mãos
das sombras que foram as forças tarefa se inspiraram técnica e operacionalmente
em todo o aparato repressivo dos DOP franceses.
Na Argélia, Trinquier elaborou a “doutrina da
clandestinidade” que mais tarde causaria estragos durante os golpes de Estado
na América do Sul: repressão baseada no ocultamento dos centros de detenção,
desaparecimento de pessoas e eliminação dos corpos. O recurso a pessoal militar
trajado como civis em comandos que percorriam à noite os centros urbanos em
busca de vítimas ou de suspeitos para torturar é uma técnica implementada em
Argel pelo general Aussaresses e Massu que foi importada para a Argentina por
meio das missões de Patrice de Naurois e François-Pierre Badie, Trinquier
teorizou por escrito sobre as bases da guerra suja e seus “manuais” se tornaram
palavra sagrada nas academias nacionais. O cronograma das missões francesas à Argentina permite situar com exatidão que foi a ditadura de Onganía a que começou a se alimentar com esses ensinamentos. Um testemunho direto do general Campos demonstra a “irmandade” técnica e moral que existia entre o corpo de oficiais argentinos e os “missionários” que vinham de Paris com a mala repleta de métodos para matar. No mesmo artigo citado anteriormente (4 de janeiro de 1981), Camps declarou, como uma forma de homenagem: “Na Argentina primeiro recebemos a influência francesa, depois a norte-americana. Aplicamos as duas respectivamente de maneira separada e depois conjunta tomando os conceitos de ambas até que a norte-americana predominou. Mas é preciso dizer que a concepção francesa era mais exata que a norte-americana. Esta última se limitava quase exclusivamente ao aspecto militar enquanto a francesa consistia em uma visão global”.
As metodologias se alimentam umas das outras. O general
francês Paul Aussaresses foi instrutor militar na base norte-americana de Fort
Bragg, Carolina do Norte, a escola dos paraquedistas norte-americanos onde se
treinavam as “forças especiais” antes de elas irem para o Vietnã. Um texto
ilustrativo escrito pelo coronel francês Henri Grand D’Esnon e destinado
exclusivamente às forças armadas argentinas permite compreender como se
elaboraram as bases “práticas” para que os generais argentinos incluíssem na
vida civil. Gran D’Eson afirma que “a destruição da organização
político-administrativa revolucionária corresponde à polícia, mas o exército
deve apoiar essa ação toda vez que os métodos da polícia resultarem
insuficientes, situação que se produz frequentemente quando a subversão se
generaliza” (trecho de “A Guerra Subversiva”, artigo publicado na Revista da
Escola Superior de Guerra, nº 338, Julho-Setembro de 1960).
O general Aussaresses reconheceu que ensinou “a tortura e as
técnicas de interrogatório da Batalha de Argel” aos militares brasileiros e
também norte-americanos. Isso ocorreu na época em que ele era professor em Fort
Bragg. Nesse quartel geral dos Estados Unidos, Aussaresses conheceu o coronel
Carl Bernard, a quem mostrou um rascunho do livro do coronel Trinquier, “A
Guerra Moderna”. Bernard e Aussaresses resumiram o livro e o enviaram a Robert
Komer, um agente da CIA que será nomeado conselheiro do presidente
norte-americano Lyndon Johnson durante a Guerra do Vietnã. Segundo o coronel
Bernard, Komer montou a operação Fênis a partir do resumo do Manuel de
Trinquier. A Operação Fênix foi lançada no Vietnã no final dos anos 60: seus
métodos são os mesmos que foram empregados depois na Argentina, Chile, Uruguai
e Brasil.
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=20599
Nenhum comentário:
Postar um comentário