Por Aldir Blanc
Não sou historiador nem sociólogo. Não consultei nenhum livro
para escrever o texto abaixo. Minha memória está se movendo como estilhaços do
amado caleidoscópio que perdi, menino, em Vila Isabel. Viva a Comissão da
Verdade para que nunca mais coloquem uma grávida nua sobre um tijolo, atingida
por jatos d’água, com a ameaça: “Se cair, vai ser pior”; para que senhoras que
fazem seu honrado trabalho não sejam despedaçadas por cartas-bombas; para que
um covarde que bote a boca de um homem torturado no escapamento de uma viatura
militar não passe por “homem de bem” onde mora; para que orangotangos que se
tornaram políticos asquerosos não babem sua raiva na internet: “Nosso erro foi
torturar demais e matar de menos”; para que presos em pânico não sofram ataques
de jacarés açulados por antropoides; para que nunca mais teatros e livrarias
sejam vandalizados e queimados; para que um estudante de psiquiatria não seja
obrigado a passar por sentinelas de baioneta calada para ouvir um coronel
médico dizer que “histeria é preguiça”; para que os brasileiros possamos
homenagear um autêntico herói nacional, João Cândido, com um monumento, sem que
surjam energúmenos prometendo “voltar e explodir tudo se isso apontar para o Colégio
Naval”; para que nossa Força Aérea, que nos deu tanto orgulho na Itália, com
seus valentes pilotos de caça, não atire pessoas, como se fossem sacos de lixo,
no mar; para que um pai, ao se recusar a cumprir a ordem de manter o caixão
lacrado, não se depare com o corpo destruído do filho, jogado lá dentro feito
um animal; para que militares honrados não sintam “constrangimento” na busca da
Justiça; para que cavalos (aqueles de quatro patas, montados por outros) não
pisoteiem um garoto com a camisa pegando fogo por estilhaço de bomba, na Lapa;
para que torturadores não recebam como “prêmio” cargos em embaixadas no
exterior; para que uma estudante não desmaie num consultório médico ao falar
sobre as queimaduras do pai, feitas com tocha de acetileno; para que
esquartejadores não substituam Tiradentes por Silvério dos Reis; para que
inúmeros Pilatos ainda trambicando naquela casa de tolerância do Planalto vejam
que suas mãos continuam cheias de sangue e excremento; para que nunca mais a
vida de uma jovem idealista — queixo firme, olhos faiscantes de revolta, com a
expressão da minha Suburbana no 3×4 que guardo na carteira — seja ceifada por
encapuzados. Uma delas, quem sabe?, pode chegar à Presidência da República e
enquadrar a récua de canalhas.
Publicado originalmente no jornal O Globo
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