O fetiche do superávit
primário continua a inibir nossas autoridades econômicas, que parece não terem
entendido ainda a relação entre ele e a recessão. A taxa de juros sobre a
dívida pública é tão alta (continua alta mesmo depois das seguidas reduções
pelo BC) que os receptores dos juros da dívida pública não têm qualquer
estímulo em transformar em gastos correntes e investimentos os recursos
oriundos do superávit primário que recebem do governo. O artigo é de J. Carlos
de Assis.
A evidência de que a
economia está no rumo da recessão nos impõe considerar novamente a questão do
superávit primário. É um tema que nunca foi claramente entendido no país,
sobretudo pela maioria dos economistas neoliberais, o que se explica por uma
razão simples: enquanto muitos, como eu, apontavam nos anos 90 e 2000 para o
caráter recessivo do superávit primário, a realidade tomava um caminho inverso,
mostrando uma indiscutível compatibilidade entre superávit primário e
crescimento econômico. Parecia que, diante dos fatos, a crítica ao superávit
primário era irremediavelmente improcedente.
Tentemos avaliar a
essência da questão. Numa recessão, a retomada da economia depende
essencialmente de um ou da combinação de três fatores: do investimento privado,
do excedente de exportações ou do investimento público, em todos esses casos
estimulando a demanda agregada. É claro que, numa situação sem perspectiva de
aumento da demanda interna, não há estímulo ao investimento privado.
Entretanto, se o contexto internacional favorece o aumento das exportações, a
economia pode retomar pelo lado externo, sem depender necessariamente do
aumento prévio do investimento público.
Na etapa inicial do
primeiro governo Lula, a economia se arrastava em torno de um crescimento
inferior a 2% ao ano, prolongando a recessão do governo FHC. Em ambos os casos,
o esforço de se fazer superávit primário tinha um efeito contracionista, que
não era compensado nem pelas exportações, nem pelo investimento privado, nem,
consequentemente, pelo aumento da demanda interna. Contudo, é necessário
compreender melhor o superávit primário. Na institucionalidade financeira
brasileira, isso é crucial para se entender a relação entre ele e o
crescimento, ou contração econômica.
Comecemos pelo
elementar: superávit primário é o excesso da receita fiscal sobre as despesas
governamentais, fora juros. E é usado justamente para pagar os juros da dívida
pública. Em termos macroeconômicos, portanto, realizar superávit primário significa
retirar recursos da sociedade, ou do lado real da economia, para empregá-los no
pagamento dos juros da dívida pública. A retirada de recursos da economia pelo
setor público, através de impostos, tem um efeito contracionista, a não ser que
esses recursos voltem para a economia sob a forma de gastos públicos de custeio
e de investimento.
É aí que entra a
peculiaridade do superávit primário brasileiro: a taxa de juros sobre a dívida
pública é tão alta (continua alta mesmo depois das seguidas reduções pelo BC)
que os receptores dos juros da dívida pública não têm qualquer estímulo em
transformar em gastos correntes e investimentos os recursos oriundos do
superávit primário que recebem do governo. Preferem manter o dinheiro aplicado
em dívida pública. Com isso, os recursos do superávit primário retirados da
economia sob a forma de imposto não retornam a eles sob a forma de demanda
efetiva, de onde resulta a pressão contracionista sobre a economia.
Como se explica, então,
o crescimento da economia de 2005 a 2008, antes da crise financeira mundial?
Elementar, meu caro Watson: o governo Lula recebeu de Fernando Henrique uma
crise cambial que elevou o valor do dólar a quase quatro dólares. Com isso, os
exportadores tiveram um tremendo estímulo em suas vendas externas. Mesmo com o
ciclo de valorização cambial que se seguiu, exportadores de commodities e de
manufaturados se beneficiaram amplamente da política cambial. E os exportadores
de commodities se beneficiaram adicionalmente na tremenda alta de importações
da China e do entorno asiático.
Foram as exportações,
não qualquer mágica especial da política econômica, que estiveram por trás do
sucesso brasileiro até a crise. Isso, a despeito da realização de elevados
superávits primários. A situação hoje é totalmente diferente: a taxa cambial,
mesmo que se tenha desvalorizado nos últimos meses, continua desfavorável à
exportação de manufaturados. E a recessão na Europa e queda no crescimento
chinês criaram uma situação desfavorável às commodities. Nesse clima, não há grande
perspectiva pra a retomada do investimento privado. E para o investimento
público retomar, é fundamental a redução e até a eliminação do superávit
primário.
Há um fato adicional a
ser entendido: do ponto de vista macroeconômico, o conceito de superávit
primário é um engodo. O que importa é o orçamento nominal, ou seja, o balanço
entre a totalidade das receitas e das despesas (incluindo juros) públicas.
Nesse sentido contábil, somos deficitários – o que é bom, em tese, para uma
economia em recessão. Contudo, o orçamento nominal, como dito, está contaminado
pelo pagamento de juros que não retornam ao circuito econômico. A eficácia do
déficit nominal para o crescimento desaparece. Para que o déficit nominal tenha
efeito sobre a demanda agregada, o setor público deve converter seu
endividamento em gasto público, efetivando temporariamente o déficit nominal.
Isso aconteceu em 2009 e 2010, tendo havido excelente resposta da economia.
Entretanto, o fetiche do superávit primário continua a inibir nossas autoridades
econômicas, que parece não terem entendido ainda a relação entre ele e a
recessão.
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