Para analisar a
conjuntura da América Latina, um dos principais ideólogos da política
internacional do governo Lula resgata a história da política estadunidense para
a região antes de situar o golpe no Paraguai, a entrada da Venezuela no
Mercosul e os desafios do Brasil em suas relações internacionais. Samuel
Pinheiro Guimarães afirmou que renunciou à a alta representação do Mercosul por
uma limitação institucional do posto. "Eu fiz um relatório com um diagnóstico
do Mercosul e propostas, mas não houve maior atenção", afirma.
Vinicius Mansur
Brasília - Convidado
pela Comissão Brasileira Justiça e Paz, CBJP, organismo da CNBB, para falar
sobre a conjuntura política da América Latina, especialmente da América do Sul
pós-golpe no Paraguai, o embaixador e alto representante geral do Mercosul até
junho deste ano, Samuel Pinheiro Guimarães, expandiu o recorte territorial e
histórico para introduzir sua análise. “Para compreender essa situação é
preciso compreender a política dos EUA para região e para o mundo”.
Segundo o embaixador, o
objetivo estratégico permanente dos EUA é integrar todos os países da região
numa única área econômica e uma de suas primeiras manifestações neste sentido
aconteceu em 1889 na I Conferência Internacional Americana, em Washington,
quando propuseram um acordo de livre comércio nas Américas e a adoção do dólar
por todos os países. “Um projeto perfeito: de um lado a maior potência
industrial do mundo, do outro um grupo de países agrícolas, mineradores, muito
pobres, com grandes concentrações de renda”, ironizou.
Durante a conferência
houve a proclamação da República no Brasil e a nova delegação brasileira
aceitou a proposta estadunidense. “Isto porque uma das características da
República era a idéia do panamericanismo e o Brasil queria afastar o estigma do
Império, muito ligado à Europa, aos ingleses, uma ameaça aos países vizinhos
independentes”, explicou, acrescentando que a área de livre comércio não foi
criada por oposição da Argentina. “O antagonismo que existe nos EUA contra a
Argentina já vem de longa data”, salientou.
É no pós-Segunda Guerra
Mundial, entretanto, que as ações estadunidenses se intensificam rumo aos
vizinhos do sul, ainda que antes disto os EUA já tivessem se apropriado de dois
terços do território do México, se imiscuído na Nicarágua, República
Dominicana, Haiti e Cuba e criado um país, ao separar o Panamá da Colômbia. “A
América do Sul era mais distante”, brincou o diplomata, mas “aproximou-se” com
as condições criadas após o triunfo em 1945: a Europa e os impérios coloniais
destruídos abriram campo para a expansão de seu poderio e a União Soviética, o
seu mais novo inimigo número 1, era o sinal de que a tarefa deveria ser
cumprida rapidamente. Com a Revolução Cubana, em 1959, os EUA intensificaram a
atuação em seu “quintal”.
De um lado, programas
de cooperação com a Aliança para o Progresso, de outro, o apoio às violentas
ditaduras civis-militares . “Enfatizo o termo civil. Hoje diz-se só militares,
mas elas foram apoiadas em grande medida por elites de diferentes setores e
meios de comunicação”, destacou. Ao passo em que estes regimes perdiam força –
e Guimarães aponta o fato da repressão ter chegado aos setores médios e altos
da sociedade como determinantes nesse processo – os EUA passaram a defender a
sua substituição, emplacando uma nova plataforma política em prol dos direitos
humanos, da democracia e do apoio a partidos políticos no contexto de início do
neoliberalismo e de queda da União Soviética.
Dominação
pelo mercado
Com a redemocratização
da América do Sul a partir da década de 1970 e 1980 e com a ascensão da China
no mercado mundial, o objetivo histórico dos EUA aponta cada vez mais para a
celebração de acordos econômicos bilaterais, estratégia desenvolvida também em nível
multilateral na Organização Mundial do Comércio (OMC). Em 1994, os planos dos
EUA dão um salto com a incorporação do México, por iniciativa de seu então
presidente Salinas de Gortari, no Tratado Norte Americano de Livre Comércio
(Nafta), que contava também com o Canadá. “Causou certa perplexidade porque o
México era um tradicional defensor das teses dos países em desenvolvimento, do
tratamento preferencial. Aquilo teria um impacto muito grande sobre toda a
política dos EUA de relacionamento com os países em desenvolvimento, porque o
México era um grande líder com uma mudança de posição tão radical. No mesmo ano
os EUA topou a negociação da Alca [Área de Livre Comércio das Américas]”,
resgata Guimarães.
O projeto da Alca foi
definitivamente arquivado em 2005, na Cúpula de Mar del Plata, Argentina, por
atitude coordenada dos presidentes argentino, Nestor Kirchner, e brasileiro,
Luis Inácio Lula da Silva, segundo Guimarães. Mas os EUA lograram acordos
bilaterais com Chile, Peru e Colômbia depois disto. As negociações com o
Equador avançaram bastante, mas foram interrompidas com a vitória de Rafael
Correia, assim como Hugo Chávez havia feito em 1999 na Venezuela.
O problema desses
acordos, aponta o embaixador, é “estabelecer as mesmas normas econômicas sob uma
pretensão de reciprocidade, como se houvessem grandes investimentos de um país
menor em outro maior”, impedindo assim o desenvolvimento autônomo das economias
mais fracas e levando, quase que automaticamente, a um alinhamento político com
os EUA nas grandes questões internacionais. “O Uruguai, que celebrou um acordo
desses com os EUA, está sendo processado por uma empresa de cigarros que alega
que legislação de controle do fumo do país prejudica seus lucros”,
exemplificou.
O problema trágico para
os estadunidenses, destaca Guimarães, é que com regimes democrático na América
do Sul, com liberdade de expressão e eleições razoáveis, os presidentes eleitos
tendem a ter programas progressistas, ainda que alguns não pretendam
executá-los, ressalta. Porém, as elites tradicionais seguem com muita força
para eleger seus representantes aos poderes legislativos, formando uma forte
barreira de contenção, ao lado de veículos de comunicação, às políticas sociais
e de desenvolvimento alternativo. “No Paraguai o presidente progressista sem
nenhum apoio no Congresso não conseguiu fazer a sua política, perdendo
prestígio junto à população por não executar as promessas de campanha e o
próprio Congresso montou um golpe”, elucidou. Quando há maioria legislativa
pró-governo progressistas, como na Argentina, onde mesmo os partidos de
oposição aprovaram a suspensão do Paraguai e a entrada da Venezuela no
Mercosul, por exemplo, o discurso é de que “não há democracia, eles controlam o
Congresso”.
O
golpe no Paraguai
Samuel Pinheiro Guimarães
não hesita em qualificar a destituição de Fernando Lugo como golpe grosseiro.
“Se fosse mais longo [o processo de impeachment] seria mais difícil contestá-lo
e acabariam condenando do mesmo jeito. Eles foram receosos da reação dos
vizinhos”.
O diplomata considerou
a postura brasileira no episódio firme e prudente, discordando daqueles que
qualificaram a posição do Brasil como “branda” em comparação com o ocorrido
durante o golpe no presidente Manoel Zelaya em Honduras. “Lá em Honduras foi um
golpe praticamente militar, tiraram o presidente do poder, colocaram em um
avião e mandaram embora, morreram muitos jornalistas, a repressão foi muito
forte. Por outro lado, a admissão da Venezuela era tudo que os paraguaios não
queriam. Foi de certa forma uma punição. De outro lado, nossos interesses no
Paraguai são muito reais. Há um número muito grande de descendentes brasileiros
que moram no Paraguai, há a represa de Itaipu”, disse.
Porém, Guimarães
salienta que os interesses do Paraguai nos países do Mercosul é de tamanha
magnitude que dificilmente serão compensados com qualquer outro acordo
internacional, nem mesmo pelos EUA. E caso o regime paraguaio recrudesça, o
diplomata sinaliza que uma série de medidas podem ser tomadas de maneira
gradativa, como a não aprovações de projetos do Fundo de Convergência
Estrutural do Mercosul (Focem) que estão em análise e, numa etapa seguinte, a
suspensão de projetos que já estão em curso. “O Brasil é o principal
contribuinte deste fundo com 70%, Argentina com 27%, Paraguai com 1% e Uruguai
com 2%. E há importantes projetos para o sistema de transporte deles”, afirmou.
Venezuela
Mais do que o Paraguai
perdeu os EUA com a entrada da Venezuela no Mercosul. Por definição, um país
membro do bloco está impedido de celebrar um acordo de livre comércio
pretendidos por Washington. “Isso é grave pros EUA. Apesar de estarem mudando
suas fontes de abastecimento, explorando suas reservas internas, continuam
muito dependentes do petróleo importado, em grande parte, do Oriente, uma área
delicada. E eles tem a Venezuela, a maior reserva do mundo, aqui pertinho
deles”, detalha.
A entrada da Venezuela
no bloco consolida um determinado tipo de visão econômica, também é importante
por dificultar um golpe de Estado que não raro é sondado no país.
Em um país
relativamente rico, de grande mercado, com 20 milhões de habitantes, com
recursos naturais preciosos, que está procurando construir sua infraestrutura e
se industrializar e cujo comércio com o Mercosul cresceu volumosamente na
última década. “Além de ser um país altamente consumidor de produtos agrícolas,
o que é uma oportunidade para outros países do bloco”, acrescenta o embaixador.
Imperialismo
à brasileira?
Questionado sobre um
crescente sentimento contra o Brasil devido à atuação do capital nacional em
países vizinhos, levando até mesmo a formação de uma articulação dos Atingidos
pelo BNDES, Guimarães ratificou que é este o grande desafio da diplomacia e do
governo de um país tão assimétrico como o Brasil é em relação aos seus vizinhos.
“O Brasil é mais da metade do PIB da América do Sul, é quatro ou cinco vezes o
PIB da Argentina, que é o segundo maior.
Um PIB muito grande
significa empresas muito grandes. Imagina se as empresas estrangeiras aqui
fossem brasileiras, o que já teria acontecido?”, indaga para, em seguida,
recordar que o problema da desnacionalização também afeta o Brasil, citando
como emblemática a recente transferência do controle da maior rede varejista do
país, o grupo Pão de Açúcar, ao capital estrangeiro.
Para o diplomata, o
Brasil deveria ter uma política que em hipótese alguma financiasse a aquisição
de empreendimentos estrangeiros por brasileiros e que estimulasse a associação
dos capitais locais. Porém, ressaltou que há uma diferença entre a atuação
independente das empresas e o financiamento do Estado. “O governo não pode
impedir que as empresas façam investimento no exterior, a legislação não
permite. Mas, a legislação daquele país pode, reservando setores para empresas
nacionais”, esclareceu, acrescentando que o Brasil, em geral, financiou
empreiteiras para participarem de licitações internacionais de obras de
infraestrutura. “E essas empresas não ficam no país”.
Um caso qualificado por
ele como grave está na Argentina, onde empresas brasileiras compraram um grande
número de frigoríficos, atividade tradicional e importante daquele país. “Isso
ainda não leva a grandes dificuldades, mas levará. As empresas estrangeiras, em
geral tendem a recorrer aos seus países para fazer pressão ao governo local, o
que cria grandes atritos”, alertou.
Exército
no Haiti
No que tange a atuação
militar brasileira no Haiti, Guimarães descarta que o Brasil tenha uma ação
imperialista. “Se houvesse caso de morte, de agressão de brasileiros a
haitianos sairia todo dia aqui no jornal”, retruca e completa: “Na questão dos
refugiados haitianos a posição tem sido correta, apesar de não divulgada.” O
diplomata recorda que foi o Conselho de Segurança da ONU quem criou da força de
paz para o Haiti, sem a participação do Brasil, que posteriormente foi
convidado a integrá-la, tal como já fez em países como Congo, Timor Leste e
Angola. “Antes de aceitar, foram mandadas duas missões aos países do Caribe
próximos para saber o que eles achavam e eles aprovaram. O Brasil comandou as
forças nos dois primeiros anos e deveria ter rodízio, mas a própria ONU pediu
que o Brasil continuasse e tem pedido até hoje. Se não fosse o Brasil seria
outro país”, defendeu.
Política
externa alternativa
Se por um lado o papel
crescente do Brasil no cenário internacional o leva a questionamentos quanto a
reprodução de relações de tipo imperialista, Guimarães salienta que há
iniciativas concretas visando um modelo de integração de novo tipo, para além
dos posicionamentos políticos progressistas. Ele destaca os bancos de leite
materno e os programas contra a febre aftosa impulsionados em vários países, o
aumento da presença de entidades brasileiras no mundo visando a cooperação
sul-sul, tais como a Embrapa - com unidades de pesquisa em Gana e na Venezuela,
a Fiocruz – com uma unidade de produção de medicamentos retrovirais em
Moçambique, a Caixa Econômica Federal – com projetos de habitação na Venezuela
e o Ipea, que deverá abrir um escritório em cada país do Mercosul.
Também entram na lista
a criação da Universidade Federal Latino Americana (Unila), em Foz do Iguaçu
(PR), e da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia
Afro-Brasileira (Unilab), com dois câmpus no Ceará e a cooperação na área da
educação com o Timor Leste. “É preciso de mais recursos para a Agência
Brasileira de Cooperação (ABC), mas houve corte de dotação orçamentária”,
cobrou o diplomata.
Saída
do Mercosul
Por fim, Samuel
Pinheiro Guimarães afirmou que renunciou à a alta representação do Mercosul por
uma limitação institucional do posto. O cargo foi criado no final do governo
Lula com a ideia de iniciar uma gestão do Mercosul acima dos governos, uma vez
que o bloco não possui uma estrutura supranacional, como a União Europeia, que
dinamize seu funcionamento. Mas, Guimarães não se sentiu respaldado, talvez por
ser brasileiro, sugeriu: “O Brasil é um país tão assimétrico que gera sempre
uma idéia de que o cargo não podia fazer propostas. Eu fiz um relatório com um
diagnóstico do Mercosul e propostas. Mas não houve maior atenção, se não tem
atenção não tem apoio, se não tem apoio não vale a pena”.
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