Documentos sigilosos do
governo FHC, já desclassificados, indicam que militantes e políticos de
esquerda, do Brasil e do exterior, foram monitorados pelo serviço secreto
quando participavam de atividades antineoliberalismo. “Me assusta saber que um
governo tido como democrático tutelou de forma ilegal pessoas que participavam
de eventos pacíficos, que não representavam nenhuma ameaça à segurança
nacional”, afirmou à Carta Maior o ministro-chefe da Secretaria Geral da
Presidência, Gilberto Carvalho.
Najla Passos (*)
Brasília - Documentos
sigilosos do governo Fernando Henrique Cardoso, abertos à consulta pública no
Arquivo Nacional, indicam que militantes e políticos de esquerda que
participavam de seminários, encontros e fóruns contra o neoliberalismo foram
monitorados pela Subsecretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), o órgão que
substituiu o Serviço Nacional de Inteligência (SNI), em 1990, até a criação da
Agência Brasileira de Inteligência (Abin), em 1999.
Como a maioria dos
documentos desclassificados são os de nível reservado e se referem apenas ao
período 1995-1999, não é possível precisar o grau deste monitoramento. Pela
nova Lei de Acesso à Informação, sancionada pela presidenta Dilma Rousseff em
maio, os documentos reservados são liberados decorridos cinco anos, os
secretos, 15 e os ultrassecretos, os mais importantes, somente após 25 anos.
Mas o acervo já disponível deixa clara a linha de atuação do serviço.
Há registros que fazem
referências explícitas às informações colhidas em revistas e jornais, prática
tida como recorrente no serviço que perdera status e orçamento após o fim da
ditadura. Mas outros revelam espionagem direta. O seminário “Neoliberalismo e
soberania”, por exemplo, promovido pela Associação Cultural José Marti, a Casa
da Amizade Brasil-Cuba, no Rio de Janeiro, de 5 a 9 de setembro de 1999, foi
integralmente gravado em 12 fitas cassetes, entregues ao escritório central da
SAE.
Chiapas
Em julho de 1996, o
serviço deu especial atenção à realização, em Chiapas, no México, do Encontro
Internacional pela Humanidade e contra o Neoliberalismo. “A significativa
presença internacional de ativistas de esquerda transforma a região em novo
polo de atração revolucionária latinoamericana”, dizia o documento produzido
pelo escritório central da SAE. Os relatórios também contêm pautas de
discussões, análise de conjuntura e listas de participantes brasileiros.
O ministro-chefe da
Secretaria Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, figura nesta lista. “Me
assusta muito saber que um governo tido como democrático tutelou de forma
ilegal pessoas que participavam de eventos absolutamente pacíficos, que não
representavam nenhuma ameaça à segurança nacional”, afirmou à Carta Maior. Na
época secretário nacional de Comunicação do PT, o ministro disse recordar-se
que não divulgara sua participação no evento. “É possível até que a SAE tenha
contado com o apoio de algum serviço secreto de outro país”, acrescentou.
Mesmo fazendo a
ressalva de que tais procedimentos poderiam não ser de total conhecimento do
presidente à época e que as informações sobre a natureza do trabalho da SAE no
período ainda estão incompletas, o ministro avalia que a simples menção do nome
de uma pessoa que participou de um evento democrático em documentos oficiais do
serviço secreto é uma prática condenável. “O que a gente espera do serviço
secreto de um governo democrático é que ele esteja atuando para defender as
fronteiras do país, evitar ameaças externas, e não para monitorar pessoas que
estavam lutando pelo aprimoramento da democracia”, acrescentou.
O coordenador do
Projeto Memória e Verdade da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência,
Gilney Viana, na época deputado federal pelo PT, foi outro fichado por
participar do evento em Chiapas. Ex-preso político da ditadura por dez anos,
ele sabia que seus passos foram ostensivamente seguidos pelos agentes secretos
até a extinção do SNI, mas ficou chocado ao saber que continuou a ser alvo
durante um governo democrático. “Eu até compreenderia que os Estados Unidos
estivessem monitorando o evento de Chiapas, mas o serviço secreto brasileiro
realmente me surpreendeu”, disse.
Belém
O II Encontro pela
Humanidade e contra o Neoliberalismo mereceu atenção redobrada por ter sido
realizado em território brasileiro. Mesmo as etapas preparatórias do evento,
que ocorreu em Belém (PA), de 6 a 11 de dezembro de 1999, estão registradas na
SAE. Um relatório antecipa a mensagem do subcomandante Marcos, do Exécito
Zapatista para Libertação Nacional do México, para o evento. Há relações de
participantes e descrição dos assuntos debatidos nas etapas preparatórias de
pelo menos Belém, Salvador, Brasília e Macapá.
O lançamento do evento,
patrocinado pela prefeitura de Belém, também foi documentado. No relatório da
SAE, há a informação de que os organizadores queriam incrementar a geração de
recursos por meio da venda de objetos com a logomarca do evento, a realização
de shows com artistas locais bem como com as inscrições. Entre os participantes
do II Encontro, estão o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a filósofa
Marilena Chauí, o sociólogo Chico de Oliveira e o ex-governador do Rio Leonel
Brizola, além dos escritores José Saramago e Luiz Fernando Veríssimo.
Foro
de São Paulo
Considerado à época o
principal organismo aglutinador de partidos e entidades de esquerda do
continente, o Foro de São Paulo, criado em 1990 pelo PT com o apoio do então
presidente cubano Fidel Castro, também teve suas atividades amplamente
monitoradas. A 6ª edição, realizada em El Salvador, em julho de 1996, está
registrada em relatório sobre as atividades internacionalistas do PT.
A 7ª edição, que
aconteceu em Porto Alegre (RS), em 1997, foi ainda mais espionada. O pacote de
documentos realtivos ao evento inclui relatórios setoriais produzidos pelos
grupos de trabalho, lista completa de presenças e até fotos dos participantes.
São citadas lideranças de esquerda, nacionais e internacionais. Entre os
brasileiros, o ministro Gilberto de Carvalho, o governador do Rio Grande do Sul,
Tarso Genro e o deputado estadual gaúcho, Raul Pont (PT).
Em relatório
específico, a SAE observou que, durante o evento, o então ex-prefeito da
capital gaúcha Tarso Genro havia lançado o livro “O orçamento participativo – a
experiência de Porto Alegre”, escrito em parceria com o então secretário de
formação do PT, Ubiratan de Souza, classificado como “ex-militante da VPR”.
Os relatórios relativos
à 8ª edição, que ocorreu no México, em 1999, registraram as presenças de vários
brasileiros, como o atual líder do governo na Câmara, deputado Arlindo
Chinaglia (PT-SP) e do hoje assessor especial da Presidência para Assuntos
Internacionais, Marco Aurélio Garcia.
Grupo
do México
O 4º Encontro do Grupo
do México, realizado em Santiago, no Chile, nos dias 10 e 11 de maio de 1997,
foi registrado pela SAE em relatório como o “marco do surgimento de uma
política que transcende a esquerda”. De acordo com o serviço secreto
brasileiro, “o Grupo do México é formado por representantes de partidos de
centro-esquerda e teve sua origem a partir do PNUD, com o objetivo de buscar a
construção de um projeto econômico para a América Latina, alternativo aos
padrões neoliberais”.
Na documentação, estão
descritos os principais pontos de unidade entre os presentes e há uma lista com
os nomes dos brasileiros presentes. Entre eles, o ex-presidente Lula, seus
ex-ministros petistas José Dirceu e Mangabeira Unger, o ex-governador do Rio,
Leonel Brizola (PDT), os ex-deputados Vivaldo Barbosa (PDT-RJ) e Zaire Resende
(PMDB-MG), além de Marco Aurélio Garcia e Tarso Genro, entre outros.
Attac
no Brasil
O diretor-presidente da
Carta Maior, Joaquim Palhares, também foi citado em documentos da SAE,
principalmente por ter sido, em 1996, ao lado do ativista Chico Whitaker, um
dos fundadores no Brasil da Associação pela Tributação das Transações
Financeiras para ajuda aos Cidadãos (Attac), criada na França, com o objetivo
de instituir um imposto sobre transações financeiras internacionais. “Muitos
militantes de esquerda ainda tinham a impressão de estarem sendo monitorados
mesmo após a ditadura. Mesmo assim, a confirmação desta prática causa
indignação”, afirma.
Crítica contundente da
ciranda financeira de capitais voláteis alimentada pelo neoliberalismo, a Attac
foi preocupação constante para a SAE. A visita ao Brasil do presidente
internacional a entidade, o ativista francês e diretor do jornal Le Monde
Diplomatique, Bernardo Cassen, entre 1 a 5 de março de 1999, foi acompanhada
com atenção. Os relatórios do serviço informam que Cassen proferiu palestras em
cinco capitais brasileiras (Belo Horizonte, Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo
e Porto Alegre), nas quais apresentava os objetivos da organização, traçava o
histórico da crise econômica mundial, defendia a adoção da chamada Taxa Tobin
para a taxação do capital especulativo internacional e exortava as plateias a
lutarem contra o projeto neoliberal.
Nos documentos
produzidos, também constavam os nomes dos militantes identificados nas plateias
de Cassen. Do escritório da SAE em Belo Horizonte, por exemplo, chegou o
informe das participações de Lula, então presidente do PT, do coordenador do
MST, João Pedro Stédile, do ex-governador de Pernambuco, Miguel Arraes, do
geógrafo Milton Santos e do cientista político Cezar Benjamin, entre outros. Os
ex-presidente Lula tinha suas atividades relatadas pela SAE, tanto pela sua
militância antineoliberalismo como por ser o principal adversário político de
FHC.
Viagens
a Cuba
Mesmo com o fim da
guerra fria e da ditadura, as viagens de brasileiros a Cuba continuaram a ser
alvo de preocupação do serviço secreto. Principalmente quando se cruzavam com a
luta antineoliberal. De 21 de julho a 21 de agosto de 1996, foi realizado, em
Cuba, o curso de formação sindical “Neoliberalismo e Globalização da Economia”.
Informes registram a participação de brasileiros, entre eles os sindicalistas
Adriano Torquato, Francisco Nascimento Araújo, José Nunes Passos e Nonato
César.
Há relatório de alerta
para a realização em Cuba, em 1997, do Seminário Internacional sobre o
Neoliberalismo, promovido pela Federação Mundial da Juventude Democrática, com
a presença de militantes do MR8. No relatório pós-evento, está relatada a
participação de 1,2 mil trabalhadores de 453 organizações sindicais, políticas
e acadêmicas de 63 países. Do Brasil, participaram cerca de 300 sindicalistas,
incluindo representantes da CUT. Há menção detalhada dos participantes. Um
informe exclusivo apontava, por exemplo, o embarque de dois vereadores de
Montes Claros (MG): Aldair Fagundes (PT) e Lipa Xavier (PCdoB).
Outro informe alertava
que a edição seguinte seria realizada no Brasil, em 1999. O evento, organizado
pela CUT, no Rio de Janeiro, de 1 a 3 de setembro de 1999, também foi
documentado pelo serviço, que apresentou os textos integrais da declaração da
Federação Sindical Internacional, do discurso do delegado de Cuba, Pedro Ross
Leal, do delegado da França, Freddy Huck, e a proposta da CUT, entre outros.
Atividades
internacionais do MST
Em 1996, a SAE
acompanhou a participação integrantes do MST no seminário “Crisis del
Neoliberalismo Y Vigências de las Utopias em La America Latina”, na Argentina,
entre os dias 8 e 13 de outubro. Antes do embarque dos militantes sem-terra, um
informe produzido pelo escritório central já alertava sobre a viagem.
Também em 1996, o
serviço registrou a participação do coordenador do MST, João Pedro Stédile, no
seminário América Livre, em Buenos Aires, com Emir Sader e Frei Betto.
Atividades
rotineiras
Sader é citado também
por sua participação em eventos comuns, como o lançamento do livro “O século do
crime”, dos jornalistas José Arbex Junior e Cláudio Tognolli, em São Paulo, no
dia 7 de agosto de 1996. Conforme o relatório da SAE, os autores “enfatizaram
que a proliferação e o crescimento das máfias foram estimulados pela era neoliberal”.
O mesmo ocorreu com o
deputado estadual gaúcho Raul Pont (PT), monitorado tanto quando participava de
eventos internacionais, como o Foro de São Paulo, quanto em atividades
rotineiras. A SAE registrou, por exemplo, que em novembro de 1995, quando era
vice-prefeito de Porto Alegre, Pont foi recebido por papeleiros da Associação
Profetas da Ecologia, na companhia do teólogo Leonardo Boff. “Eu me lembro
vagamente que visitei essa cooperativa, que tinha o apoio da prefeitura e
realizava um trabalho pioneiro em reciclagem de lixo”, relatou à Carta Maior.
De acordo com o
relatório da SAE, o registro do evento se deu porque Boff relacionava os
problemas ambientais do planeta à adoção crescente do modelo neoliberal. “Esta
foi uma das atividades mais pacíficas de que já participei. Não havia nada que
indicasse perigo ao governo da época. É difícil acreditar que esse tipo de
coisa ocorria no governo do príncipe da sociologia”, disse.
Estudos
sobre a doutrina
Um documento produzido
em 1997 pelo escritório central da SAE justifica a importância dada ao tema
neoliberalismo. Conforme a interpretação dos arapongas oficiais, o
neoliberalismo é a teoria econômica criada após a segunda guerra como anteparo
a expansão do comunismo no mundo. Teve a Inglaterra e os EUA como seus
principais defensores e caracteriza-se, basicamente, pelo livre comércio,
austeridade nas contas públicas, privatização, crescimento do sistema
financeiro e fortalecimento do mercado.
Os agentes da SAE se
debruçavam também sobre obras relativas ao tema produzidas por intelectuais de
esquerda. O professor da Universidade de Nova York, James Petras, que já tinha
suas atividades monitoradas pelo SNI desde a ditadura, recebeu atenção
especial.
O livro “Latin
American: The left strikes”, sobre a atuação das esquerdas latinoamericanas em
contraposição ao neoliberalismo e à globalização, liderados pelos Estados
Unidos, foi objetivo de relatório específico, principalmente porque destacava
que as esquerdas latinoamericanas já haviam encontrado uma nova e eficiente
forma de atuação. Os exemplos citados na obra são o MST, no Brasil, os
Zapatistas, no México, as organizações camponesas, no Paraguai, e os
plantadores de coca, na Bolívia e na Colômbia. Todos eles movimentos
monitorados pelo sistema.
Em 1999, a SAE voltou a
dividir com todo o sistema de inteligência o conteúdo de um outro livro de
Petras, o recém lançado “Neoliberalismo, América Latina, Estados Unidos e
Europa”. Um documento produzido pelo escritório do Rio de Janeiro resumiu os
capítulos da obra e ainda relatou atividades correlatas promovidas pela
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Antes disso, o serviço secreto
registrou a visita de Petras ao Brasil para o lançamento da obra, ocorrido em
20 de maio de 1999, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
(*) Colaborou na pesquisa histórica Rafael
Santos
Carta Maior
Postado por O TERROR DO
NORDESTE
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