Paulo Nogueira
O texto abaixo é uma versão revisada, atualizada e
abrasileirada do Manual do Perfeito Idiota Latino-americano, dos anos 1990.
PIB. Chamemos de PIB. O Perfeito Idiota Brasileiro.
Vamos descrever o dia do PIB. Vinte e quatro horas na vida de
um PIB para que os pósteros, a posteridade, tenham uma idéia do Brasil de 2012.
Ele acorda às sete horas da manhã. Tem que preparar o próprio
café da manhã. Já faz alguns anos que sua mulher parou de fazer isso para ele,
e ficou caro demais para ele pagar uma empregada doméstica.
Ele lamenta isso. Era
bom quando havia uma multidão de nordestinas sem instrução nenhuma que saíam de
suas cidades por falta de perspectiva e iam dar no Sul, onde acabavam virando
domésticas.
PIB dá um suspiro de saudade. Chegou a ter uma faxineira e
uma cozinheira nos velhos e bons tempos. Num certo momento, PIB percebeu que as
coisas começaram a ficar mais difíceis. Havia menos mulheres dispostas a
trabalhar como domésticas, e os salários foram ficando absurdos.
Para piorar ainda mais as coisas, ao contrário do que sempre
acontecera, a última empregada de PIB recusou votar no candidato que ele
indicou.
Mulherzinha metida.
Foi por coisas assim que PIB aderiu ao movimento Cansei, ao lado de ativistas notáveis como
Boris Casoy, Hebe Camargo, Agnaldo Rayol e João Dória Júnior. Empolgante o
Cansei. PIB quase fora a uma manifestação. Só desistiu porque era sábado e
sábado a feijoada era sagrada. O protesto com certeza fora um sucesso.
O povo unido jamais será vencido.
PIB tomou o café na cozinha, com o Globo nas mãos. Assinava o
jornal fazia muitos anos. Se todos os brasileiros fossem como o Doutor Roberto
Marinho, PIB pensou, hoje seríamos os Estados Unidos. Bonito o choro do Bonner
ao anunciar no Jornal Nacional a morte de Roberto Marinho.
Por que ainda não ergueram estátuas para ele?
Com o Globo, PIB iniciou sua sessão de leituras matinais.
Mais ou menos quarenta minutos, antes de ir para o escritório.
Leu Merval. Quer dizer, leu o primeiro parágrafo e mais o
título porque naquele dia o texto, embora magnífico, estava longo demais. Havia
um artigo de Ali Kamel. “Um cabeça”, pensou PIB. “Deve ter o QI do Einstein.”
Mas também aquele artigo –embora brilhante, um tratado perfeito sobre o assistencialismo
ou talvez sobre o absurdo das cotas, PIB já não sabia precisar — parecia um
pouco mais comprido do que o habitual. Deixou para terminar a leitura à noite.
PIB vibrou porque, se não bastassem Merval e Kamel, havia
ainda Jabor.
Um gênio. Largou o cinema para iluminar o Brasil com sua
prosa espetacular. Um verdadeiro santo. Podia estar com a sala da casa cheia de
Oscar.
Começou a ler Jabor e refletiu. “Impressão minha ou hoje
aumentaram o tamanho do Jabor?” PIB sacudiu a cabeça, na solidão da cozinha,
num gesto de reverência extrema por Jabor, mas também achou melhor deixar para
ler mais tarde. Era seu dia de sorte. Também o historiador Marco Antônio Villa
estava no Globo. “Os primeiros 18 meses do governo Dilma foram fracassos sobre
fracassos” era a primeira linha. Bastava. Villa sempre surpreendia com
pensamentos que fugiam do lugar comum.
Como uma terrorista chegou ao poder? Bem, tenho que comprar
algum livro de história do Villa. Ele com certeza escreveu vários.
Completou a sessão de leituras da manhã na internet. Leu
Reinaldo Azevedo. Quer dizer, naquela
manhã, leu um parágrafo. Na verdade, metade. Menos. O título. Não importava.
Azevedo era capaz de mesmerizar toda uma nação com a luz cintilante de meia dúzia
entre milhares de linhas que produzia incessantemente. PIB deixava escapar um
sorriso de admiração a cada vez que li a palavra “petralha” em Azevedo.
Rei é rei. Um cabeça pensante. Por que será que não ocorreu a
nenhum presidente da República contratar esse homem como assessor especial? Se
o Brasil bobear, a Casa Branca vem e contrata.
Debate é
assim.Medalhinha. Chamar um tal de Nassif de Nassífilis. PIB julgava FHC um
banana. Não sabia debater. Bananão. Como FHC podia dizer coisas assim? “Eu não
estou aqui para ver o PT se arrebentar. O Brasil precisa de partidos que tenham
uma certa história, e o PT tem.” Isso em 2005, quando era o momento de derrubar
o lulopetismo. E essa outra? “Por que o mensalão se tornou conhecido? Porque o
Roberto Jefferson teatralizou o mensalão.” E essa então? “O Lula, ao invés de
renunciar e desistir, disse: eu vou brigar. O Lula foi decisivo naquele
momento, em dissipar o mensalão.”
Ba-na-não! Graças a Deus já passou dos 80 e não pode mais
atrapalhar o Brasil. O campo ficou livre para o Serra e o Aécio!
Ainda na internet, uma passagem pelo Blog do Noblat. Naquele
dia, no blog havia uma coluna assinada por Demóstenes. PIB deu parabéns mentais
a Noblat por abrir espaço a Demóstenes, nosso campeão mundial da moralidade,
nosso Catão. PIB guardara um texto de Demetrio Magnolli, outro cérebro
avançado, em que este prestava um justo tributo à nossa reserva moral no
senado. Saíra na edição das 100 pessoas mais influentes da revista Época.
Anotou um trecho: “Não é preciso concordar com tudo que ele fala ou faz para
homenageá-lo. Demósteneses não é mais um comerciante num mercado em que se
trafica influência em troca de cargos ou privilégios. Ele tem princípios e
convicções.”
Por que falam tanto do tal do Assange e do Wikileaks quando
temos tantos caras muito melhores?
A caminho do trabalho, PIB ligou na CBN. Ouviu uma entrevista
com o filósofo Luiz Felipe Pondé. “Meu pequeno carro não contribui para o
aquecimento do planeta”, disse Pondé, o nosso Sócrates, o Aristóteles
verde-amarelo. Pondé ganhara imediatamente a admiração de PIB quando reclamara
dos pobres que estavam congestionando os aeroportos. A última vez que viajara
para Miami ficara revoltado com as pessoas inferiores que iam voar.
Bem, preciso anotar aquela. Meu pequeno carro não contribui
para o aquecimento global.
Isso o levou a reparar nos ciclistas nas ruas de São Paulo.
Cada dia parecia haver mais. Mau sinal. Havia muitas bicicletas no trajeto. PIB
sentiu vontade de atropelá-las em grupo e fazer um strike. Odiava ciclistas.
Atrapalhavam os motoristas. Tivera vontade de vomitar quando vira a foto de um
ciclista inglês de bunda de fora — branca e mole como um pudim — numa marcha nudista por mais espaço e
segurança em Londres para as bicicletas.
Abria uma única exceção: Soninha. Desde que ela continuasse a
posar pelada em nome das bicicletas.
Hahaha. Hohoho.
Na CBN ouviu também informações e comentários sobre o mundo.
“Prestígio em Paris dá vantagem a Sarkozy nas eleições presidenciais”, a CBN
avisou. PIB admirava Sarkozy. Proibir a burca foi um gesto histórico. As muçulmanas
deveriam ser gratas a Sarkozy. Elas haveriam de votar maciçamente nele para dar
a ele o segundo mandato para o qual a CBN dizia que ele era o favorito.
Os maridos obrigam as coitadas a usar burca.
O tema do islamismo estava ainda em sua mente quando se
instalou em seu cubículo de gerente na empresa. PIB refletiu sobre o mundo.
Tinha lido em algum lugar que no Afeganistão as pessoas queriam que os soldados
americanos fossem embora. Os afegãos
estavam queimando bandeiras dos Estados Unidos. A mesma coisa estava ocorrendo
no Iraque. E no Iêmen. Em todo o Oriente Médio, fora Israel.
Ingratos. Como eles não percebem que os Estados Unidos estão
lá para promover a democracia e levar a civilização? Os americanos estão acima
de interesses mesquinhos por coisas como o petróleo.
Era um perigo o avanço muçulmano. Não que apoiasse, mas PIB
entendia o norueguês que matara 77 pessoas por considerar que o governo de seu
país era leniente demais com os muçulmanos.
A raça branca está em perigo.
Entretido em salvar a raça branca, PIB não percebeu o tempo
passar. Só notou pela fome que já era hora de comer. A opção, mais uma vez, foi
pelo Big Mac do shopping, e mais a Coca dupla. Detestava os ativistas dos
direitos dos animais porque combatiam os Big Macs. PIB estava tecnicamente
obeso, mas na semana que vem iniciaria uma dieta e começaria também a se
exercitar.
Fim do expediente. A estagiária estava com um decote
particularmente ousado. Talvez estivesse sem sutiã. PIB a chamou algumas vezes
para discutir assuntos que na verdade não tinham por que ser discutidos. A
questão era olhá-la. Valeu o dia, refletiu. Home office é uma bobagem porque
não permite esse tipo de coisa: olhar para meninas gostosas no escritório.
Na volta, mais uma vez foi tomado pela tentação de atropelar
os ciclistas. “Quando você deseja muito uma coisa, todo o universo conspira a
seu favor”. PIB se lembrou da frase de seu escritor favorito, Paulo Coelho.
Então ele desejou muito que as bicicletas sumissem.
Xiitas.
Algum colunista escrevera isso sobre os ciclistas. PIB não
lembrava quem era, mas concordava inteiramente. Os ciclistas são gente
esquisita que deve fazer ioga e praticar meditação, suspeitava PIB.
Tudo gay!
Já incorporara para si mesmo a frase genial de Pondé.
Meu carro pequeno não contribui para o aquecimento global.
No churrasco de domingo, ia soltar essa. Teve um breve lapso
de inquietação quando se deu conta de que os brasileiros que tanto contribuíam
para a elevação do pensamento nacional já não eram tão novos assim, O próprio
Merval era imortal apenas pela sua contribuição às letras, reconhecida pela
Academia. Então lhe veio à cabeça a juventude sábia e influente de Luciano
Huck, e ficou mais sossegado.
A mulher não percebeu quando ele chegou. Não era culpa dela.
A televisão estava ligada com som alto na novela da Globo. PIB lera várias
vezes que as novelas tinham uma “missão civilizadora” no Brasil. Mais uma
dívida dos brasileiros perante Roberto Marinho: a perpetuação das novelas
cvilizadoras. A mídia impressa brasileira reconhecia a missão civilizadora na
forma de uma cobertura maravilhosa das novelas. Uma vez um leitor da Folha
reclamou por encontrar na Ilustrada seis artigos sobre novelas.
O brasileiro só sabe reclamar. E reivindicar. Uma besta!
PIB deu um alô que não foi ouvido. Ou pensou ter dado. Sentou
ao lado da mulher, e o silêncio confirmou para ele sua tese: depois de muitos
anos de casamento as pessoas se entendem tão bem que não precisam trocar uma só
palavra. Nem se tocar. É quando o casamento chega ao estágio da perfeição: ninguém
tem que fazer nada. É o estágio superior em que o matrimônio se santifica pela
ausência do sexo. A cada quinze dias, PIB tomava Viagra e descarregava as
tensões sexuais com uma escorte que cobrava 400 reais.
Tá barato. Um dia ela topa beijar!
Não ligava muito para as novelas civiizadoras. Mas soubera no
escritório que Juliana Paes aparecia de vez em quando pelada. Passou por sua
cabeça um pensamento rápido.
Talvez eu devesse pedir para a patroa me avisar quando a
Juliana Paes ficar sem roupa.
Terminada a novela, era a sua vez na televisão. Futebol.
Bacana o futebol passar bem tarde, depois da novela. Provavelmente a Globo
pensara nisso para ajudar os pobres que moravam longe e demoravam horas para
chegar em casa depois do trabalho.
“Boa noite, amigos da
Globo!”
A voz do Brasil se apresentou. “The voice”, pensou PIB em
inglês.
Um carisma total o Galvão. Subaproveitado. Devia estar no
Ministério da Economia, e não narrando escanteios e tiros de meta.
PIB lera que Galvão estava morando em Mônaco. Sabichão.
Ficava muito mais fácil, assim, cobrir a Fórmula 1. Nunca alguém da estatura
moral de Galvão optaria por Mônaco para não pagar imposto. Galvão certamente
faria bonito na Dança dos Famosos de seu amigo Fausto Silva, o Faustão, outro
civilizador, especulou PIB em sua mente criativa.
PIB não torcia a rigor para time nenhum. Era, essencialmente,
anticorintiano. Com seu segundo saco saco de pipocas na mão, viu, contrariado,
o Corinthians vencer.
Amanhã os boys vão estar insuportáveis.
PIB queria muito ver o Jô.
Era um final de dia perfeito, ainda mais porque antes havia o
aperitivo representado por William Waack. PIB achava um privilegio poder ver
Waack não apenas na Globo como na Globonews. Os Marinhos podiam cobrar pela
Globonews, mas não faziam isso para proporcionar cultura de graça aos
brasileiros. PIB zapeava quando Waack dava suas lições na televisão, em busca
quem sabe de uma mulher pelada no horário tardio, mas os fragmentos que pescava
eram suficientes.
Jô. Não posso perder Jô. Uma enciclopédia. Podia ser
editorislista do Estadão. Hoje ele vai entrevistar o Mainardi!
Manhattan Connection era simplesmente obrigatório, embora PIB
o dividisse com vários outros enquanto manejava o controle remoto. Outro dia PIB vira um cara que merecia
atenção: Marcelo Madureira. Com sua memória fotográfica, PIB instantaneamente o
reconheceu: trabalhara como humorista na Praça da Alegria. Ou na Zorra Total?
PIB bem que queria ver Jô. Ou pelo menos incluí-lo no
zapeamento. Duas palavras de Jô valiam por mil das pessoas normais. Faziam você
pensar e, além do mais, rir porque o cara tinha um estoque ilimitado de piadas.
Não vejo graça nenhuma no Woody Allen. Mas em compensação o
Jô!
Mas não foi possível ver o gordo que ensina e alegra milhões
de brasileiros.
PIB acabou dormindo no sofá, do qual sua mulher achou
preferível não o tirar, e onde ele roncou tão alto quanto o som da tevê — e
teve, como sempre, o sono límpido, impoluto, irreprochável dos perfeitos
idiotas.
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