Em outubro de 2001, nove anos antes de ser eleita presidente,
Dilma Rousseff revelou, em depoimento ao Conselho dos Direitos Humanos de Minas
Gerais, detalhes do sofrimento vivido nos porões da ditadura em Juiz de Fora.
Até então, nem os companheiros de luta sabiam que Esteia, seu codinome na
militância, tinha sido torturada na cidade mineira, onde ficou encarcerada por
dois meses, em 1972. Só era sabido o tempo de prisão em São Paulo e no Rio de
Janeiro. Os documentos, só agora revelados, mofavam em uma sala do conselho e
trazem revelações emocionantes da hoje chefe de Estado: "Eles queriam o
concreto. "Você fica aqui pensando. Daqui a pouco, eu volto e vamos
começar uma sessão de tortura". A pior coisa é esperar por tortura".
"Me deram um soco e o dente deslocou-se e
apodreceu"
Belo Horizonte — Dilma chorou. Essa é uma das lembranças mais
vivas na memória do filósofo Robson Sávio, que, ao lado de uma outra voluntária
do Conselho de Direitos Humanos de Minas Gerais (Conedh-MG), foi ao Rio Grande
do Sul coletar o testemunho da então secretária de Minas e Energia daquele
estado sobre a tortura que sofrera nos anos de chumbo. Com fama de durona,
moradora do Bairro da Tristeza, Dilma tirou a máscara e voltou a ter 22 anos de
idade. Revelou, em primeira mão, que as torturas físicas em Juiz de Fora foram
acrescidas de ameaças de dano físico deformador: "Geralmente me ameaçavam
de ferimentos na face".
Não eram somente ameaças. Segundo fez constar no depoimento
pessoal, Dilma revelou, pela primeira vez, ter levado socos no maxilar, que
podem explicar o motivo de a presidente ter os dentes levemente projetados para
fora. "Minha arcada girou para outro lado, me causando problemas até hoje,
problemas no osso do suporte do dente. Me deram um soco e o dente se deslocou e
apodreceu", disse. Para passar a dor de dente, ela tomava Novalgina em
gotas, de vez em quando, na prisão. "Só mais tarde, quando voltei para São
Paulo, o Albernaz (o implacável capitão Alberto Albernaz, do DOI-Codi de São
Paulo) completou o serviço com um soco, arrancando o dente", completou.
Mais tarde, durante a campanha presidencial, em 2009, Dilma
faria pelo menos três correções de ordem estética para se candidatar, que
incluíram uma plástica facial, a troca dos óculos por lentes de contato e a
chance de, finalmente, realinhar a arcada dentária. Na mesma época, Dilma
combateu e venceu um câncer no sistema linfático. Guerreira, a presidenta
suavizou as marcas deixadas pelo passado na pele. Não tocou, porém, nas marcas
impressas na alma. "As marcas da tortura sou eu. Fazem parte de mim",
definiu Dilma, em 2001, no depoimento emocionado à comissão mineira, 11 anos
antes de ser criada a Comissão Nacional da Verdade, em maio, 13 anos depois da
Constituição Cidadã de 1988.
Fuga pela Rua Goiás
"Eu comecei a ser procurada em Minas Gerais nos dias
seguintes à prisão de Angelo Pessuti. Eu morava no Edifício Solar, com meu
marido, Cláudio Galeno de Magalhães Linhares, e numa noite, no final de
dezembro de 1968, o apartamento foi cercado e conseguimos fugir, na madrugada.
O porteiro disse aos policiais do DOPS de Minas Gerais que não estávamos em
casa. Fugimos pela garagem que dá para a rua do fundo, a Rua Goiás"
Ligações com Angelo
"Fui interrogada dentro da Oban por policiais mineiros
que interrogavam sobre processo na auditoria de Juiz de Fora e estavam muito
interessados em saber meus contatos com Angelo Pessuti, que, segundo eles, já
preso, mantinha comigo um conjunto de contatos para que eu viabilizasse sua
fuga. Eu não tinha a menor ideia do que se tratava, pois tinha saído de BH no
início de 1969 e isso era no início de 1970. Desconhecia as tentativas de fuga
de Angelo Pessuti, mas eles supuseram que se tratava de uma mentira, talvez uma
das coisas mais difíceis de você ser no interrogatório é inocente. Você não
sabe nem do que se trata"
Local da tortura
"Acredito hoje ter sido por isto que fui levada no dia
18 de maio de 1970 para MG, especificamente para Juiz de Fora, sob a alegação
de que ia prestar esclarecimentos no processo que ocorria na 4ª CJM. Mas,
depois do depoimento, eu fui levada (ou melhor, teria de ser levada para SP),
mas fui colocada num local (encapuzada) que sobre ele tinha várias suposições:
ou era uma instalação do Exército ou Delegacia de Polícia. Mas acho que não era
do Exército, pois depois estive no QG do Exército e não era lá"
"Nesse lugar fiquei sendo interrogada sistematicamente.
Não era sobretudo sobre minha militância em MG. Supuseram que, tendo apreendido
documentos do Ângelo (Pessuti) que integram o processo, achavam que nossa
organização tinha contatos com a PM ou PC mineira que possibilitassem fugas de
presos. Acredito ter sido por isso que a tortura foi muito intensa, pois não
era presa recente; não tinha "pontos" e "aparelhos" para entregar"
Dente podre
"Uma das coisas que me aconteceu naquela época é que meu
dente começou a cair e só foi derrubado posteriormente pela Oban. Minha arcada
girou para outro lado, me causando problemas até hoje, problemas no osso do
suporte do dente. Me deram um soco e o dente deslocou-se e apodreceu. Tomava de
vez em quando Novalgina em gotas para passar a dor. Só mais tarde, quando
voltei para SP, o Albernaz (capitão Alberto Albernaz) completou o serviço com
um soco, arrancando o dente"
Pau-de-arara
"...Algumas características da tortura. No início, não
tinha rotina. Não se distinguia se era dia ou noite. O interrogatório começava.
Geralmente, o básico era choque. Começava assim: "em 1968 o que você
estava fazendo?" e acabava no Angelo Pessuti e sua fuga, ganhando
intensidade, com sessões de pau-de-arara, o que a gente não aguenta muito
tempo"
Palmatória
"Se o interrogatório é de longa duração, com
interrogador "experiente", ele te bota no pau-de-arara alguns
momentos e depois leva para o choque, uma dor que não deixa rastro, só te mina.
Muitas vezes também usava palmatória; usava em mim muita palmatória. Em SP
usaram pouco esse "método". No fim, quando estava para ir embora,
começou uma rotina. No início, não tinha hora. Era de dia e de noite. Emagreci
muito, pois não me alimentava direito"
General Sylvio Frota passa a tropa em revista no Palácio da
Liberdade, em Belo Horizonte: militar colocou Dilma na lista dos infiltrados no
poder público
Tortura psicológica
"Tinha muito esquema de tortura psicológica, ameaças.
Eles interrogavam assim: "me dá o contato da organização com a
polícia?" Eles queriam o concreto. "Você fica aqui pensando, daqui a
pouco eu volto e vamos começar uma sessão de tortura". A pior coisa é
esperar por tortura"
Ameaças
"Depois (vinham) as ameaças: "Eu vou esquecer a mão
em você. Você vai ficar deformada e ninguém vai te querer. Ninguém vai saber
que você está aqui. Você vai virar um "presunto" e ninguém vai
saber". Em SP me ameaçaram de fuzilamento e fizeram a encenação. Em Minas
não lembro, pois os lugares se confundem um pouco"
Sequelas
"Acho que nenhum de nós consegue explicar a sequela: a
gente sempre vai ser diferente. No caso específico da época, acho que ajudou o
fato de sermos mais novos; agora, ser mais novo tem uma desvantagem: o impacto
é muito grande. Mesmo que a gente consiga suportar a vida melhor quando se é
jovem, fisicamente, a médio prazo, o efeito na gente é maior por sermos mais
jovens. Quando se tem 20 anos, o efeito é mais profundo, no entanto, é mais
fácil aguentar no imediato"
Sozinha na cela
"Dentro da Barão de Mesquita (RJ), ninguém via ninguém.
Havia um buraquinho, na porta, por onde se acendia cigarro. Na Oban, as
mulheres ficavam junto às celas de tortura. Em MG, sempre ficava sozinha,
exceto quando fui a julgamento, quando fiquei com a Terezinha. Na ida e na
vinda todas as mulheres presas no Tiradentes sabiam que estavam presas: uma,
por exemplo, Maria Celeste Martins, e Idoina de Souza Rangel, de São
Paulo"
Visita da mãe
"Em MG, estava sozinha. Não via gente. (A solidão) Era
parte integrante da tortura. Mas a minha mãe me visitava às vezes, porém, não
nos piores momentos. Minha mãe sabia que estava presa, mas eles não a deixavam
me ver. Mas a doutora Rosa Maria Cardoso da Cunha, advogada, me viu em SP, logo
após a minha chegada de Minas. Hoje ela mora no Rio e posso contatá-la"
Cena da bomba
"Em MG, fiquei só com a Terezinha. Uma bomba foi jogada
na nossa cela. Voltei em janeiro de 1972 para Juiz de Fora (nunca me levaram
para BH). Quando voltei para o julgamento, me colocaram numa cela, na 4ª Cia.
de Polícia do Exército, 4ª RM, lá apareceu outra vez o Dops que me interrogava.
Mas foi um interrogatório bem mais leve. Fiquei esperando o interrogatório bem
mais leve. Fiquei esperando o julgamento lá dentro"
Frio de cão
"Um dia, a gente estava nessa cela, sem vidro. Um frio
de cão. Eis que entra uma bomba de gás lacrimogênio, pois estavam treinando lá
fora. Eu e Terezinha ficamos queimadas nas mucosas e fomos para o hospital.
Tive o "prazer" de conhecer o Comandante General Sylvio Frota, que
posteriormente, me colocará na lista dos infiltrados no poder público, me
levando a perder o emprego"
Motivos
"Quando eu tinha hemorragia, na primeira vez foi na Oban
(...) foi uma hemorragia de útero. Me deram uma injeção e disseram para não
bater naquele dia. Em MG, quando comecei a ter hemorragia, chamaram alguém que
me deu comprimido e depois injeção. Mas me davam choque elétrico e depois
paravam. Acho que tem registros disso no final da minha prisão, pois fiz um
tratamento no Hospital das Clínicas"
Morte e solidão
"Fiquei presa três anos. O estresse é feroz,
inimaginável. Descobri, pela primeira vez, que estava sozinha. Encarei a morte
e a solidão. Lembro-me do medo quando minha pele tremeu. Tem um lado que marca
a gente o resto da vida"
Marcas da tortura
"As marcas da tortura sou eu. Fazem parte de mim"
Processo à revelia
Num primeiro momento, Dilma se recusou a entrar com pedido de
reparação. Só depois, com a insistência de antigos companheiros, decidiu falar
sobre a tortura
Sandra Kiefer
O depoimento de Dilma Rousseff é parte do processo aberto em
março de 2001 no Conselho dos Direitos Humanos de Minas Gerais (Conedh-MG),
criado por determinação do então governador Itamar Franco para indenizar presos
políticos mineiros. O nome de Dilma foi o 12º da primeira leva de 53 militantes
a receber R$ 30 mil a título de reparação por torturas impostas por agentes do
Estado. Na documentação, consta que o valor foi depositado na conta de Dilma em
março de 2002, exatos 10 anos e dois meses antes da instalação da Comissão
Nacional da Verdade. Recentemente, ainda foi paga a indenização pelo Conedh do
Rio de Janeiro, reivindicada em 2004. A presidente divulgou que vai doar a
importância de R$ 20 mil ao Tortura Nunca Mais.
O promotor de Justiça de Juiz de Fora (MG), Antônio Aurélio
Silva, foi o relator do processo de Dilma por Minas. Avesso a entrevistas, diz
apenas que o processo correu à revelia da presidente, que inicialmente resistiu
a entrar com pedido de reparação por ter sofrido tortura. Sua inscrição foi
feita sob pressão de representantes mineiros do grupo Tortura Nunca Mais. Eles
conseguiram colher a assinatura da mãe dela, Dilma Jane. "No primeiro
momento, Dilma foi contra, mas depois entendeu a importância histórica do ato e
acabou colaborando no processo", afirma.
Até então, o episódio da tortura de Dilma em Minas permanecia
desconhecido entre os próprios militantes estudantis de esquerda de Belo
Horizonte, acusados de subversão na época da ditadura. "Não sabia que ela
tinha sido torturada em Juiz de Fora", surpreende-se Gilberto Vasconcelos,
o Ivo, presidente do Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito de Uberaba e
principal contato da organização Colina na cidade. Em janeiro de 1972, Gilberto
foi transferido de São Paulo para Juiz de Fora com Dilma, dentro do mesmo
camburão. "Não posso testemunhar sobre a tortura de Dilma em Juiz de Fora,
porque, chegando lá, fomos separados e não tive mais contato com ela. Só
voltaria a vê-la no dia do julgamento", completa.
Aquele abraço
Gilberto é conterrâneo de Dilma. Na época, ela tinha 22 anos
e ele, 23. Ambos militavam no setor estudantil da organização de luta armada
Colina, batizada em homenagem às montanhas de Minas. Mais tarde, na
clandestinidade, os dois se tornariam amigos de Carlos Alberto Soares de
Freitas, o Beto, de codinome Breno, que chegaria a ser dirigente nacional da
VAR-Palmares. "Não há melhor lugar para se esconder do que na praia.
Ficávamos eu, ela e o Beto sentados na praia, cantando as músicas da revolução.
Um dia, chegou o Beto cantando Aquele abraço, do Gilberto Gil, que eu nunca
tinha ouvido. Dilma cantou junto. Ela gostava de cantar e isso nos unia além
das convicções ideológicas", lembra.
Em fevereiro de 1971, Beto seria morto em combate,
assassinado com três tiros na Casa da Morte de Petrópolis, no Rio, segundo
consta no livro A vida quer é coragem, lançado em janeiro por Ricardo Amaral,
ex-assessor de imprensa de Dilma, que trabalhou em Belo Horizonte como repórter
do antigo Diário do Comércio. Em homenagem ao amigo de lutas, Gilberto batizou
seus filhos como Beto e Breno.
Duas perguntas
para//Gilberto Vasconcelos
Como foi sua passagem por São Paulo?
Eu já estava no presídio Tiradentes. Uns seis meses depois,
chegou o Max, codinome do Carlos Franklin Paixão Araújo, pai da filha de Dilma.
Nós ficamos presos na mesma cela, no mesmo beliche durante um ano e meio. O Max
se comunicava com ela através de bilhetinhos escritos com caneta Bic de ponta
fina e enrolados no durex, escondidos na obturação do dente. O dentista era um
preso político e fazia a troca dos papeizinhos entre a ala feminina e a
masculina. Ele era apaixonado pela Dilma e os dois se gostavam mesmo.
E quanto à jovem militante Dilma?
Não estou cometendo nenhuma inconfidência, pois os dois são
grandes amigos até hoje, isso é notório. Max sempre foi um cara extraordinário,
de raciocínio rápido. Engraçado como as pessoas mudam pouco com o tempo. Estive
com Max no casamento da Paula (filha de Dilma), em Porto Alegre, e ele continua
do mesmo jeito. Dilma também. Ela estava cercada de amigos e me tirou para
dançar na festa. Apesar de ter uma imagem que não reflete isso, é uma pessoa
sensível, carinhosa, afável e uma das pessoas mais generosas que conheço. Muito
antes de ela se tornar ministra, de ser presidente, sempre disse isso.
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