Ladislau Dowbor
considerou a Rio+20 tímida. Mas criou espaços e oportunidades para os que
querem dar um novo rumo ao planeta
Por: João Peres e Paulo
Donizetti de Souza
Uma agenda para o
futuro e um contexto favorável: são os ganhos da Rio+20, na visão de Ladislau
Dowbor, professor do Núcleo de Estudos do Futuro, da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, e piloto de um site muito rico em informação científica
e discussões sobre o planeta (dowbor.org).
Hoje existe uma
concentração do poder corporativo, mas a crise sugere oportunidades. Temos um
documento mais fraco, mas um contexto de mais oportunidades (Foto: Danilo
Ramos/Revista do Brasil)
Se o documento final é mais
fraco que o da Eco-92, o esgotamento da agenda neoliberal e a retomada do papel
do Estado permitem vislumbrar um legado positivo. Mas, para o autor de O Que É
o Poder Local? e de Democracia Econômica, será um grande cataclismo o que vai
impulsionar a humanidade a encontrar um padrão sustentável de desenvolvimento.
Que balanço o senhor
faz do documento elaborado pelo Brasil e negociado entre os países
participantes da Rio+20?
Eu vejo um problema no
todo. Os 283 pontos mencionam essencialmente “recomendamos que...”, “sugerimos
que...”, “notamos que...”, não tem nenhum imperativo, afirmação mais forte, que
determine a urgência no conjunto de informações. Também não há praticamente
nenhum direcionamento para as causas dos problemas. Por exemplo, fala-se das
dificuldades com a crise econômica, mas não dos bancos que criam essa crise.
Menciona-se a desigualdade, mas não a falta de desapropriação das grandes
fortunas. O aumento dos preços e a rotatividade do mercado de commodities, mas
não os sistemas especulativos internacionais. Lista os problemas da
contaminação das águas, mas não menciona os agrotóxicos e as formas de
contaminação. Isso é um pouco grave.
O senhor acha que
apenas mencionando as origens desses problemas o documento já seria mais
efetivo?
Ou apontasse com força
que há certas práticas que devem cessar, em particular coisas como os sistemas
especulativos internacionais, a proteção dos paraísos fiscais, a proliferação
das armas – e depois se queixam da violência, mas são grandes empresas que produzem
essas armas, e são conhecidas.
E que aspectos o senhor considera positivos?
O documento abre
espaços para que a gente possa começar a cobrar. Por exemplo, o segundo ponto
diz que erradicar a pobreza é o maior desafio global que enfrenta o mundo hoje.
Apontar a desigualdade e a pobreza como eixo principal é extremamente positivo,
porque, quando você começa a tirar as pessoas da pobreza, gera dinâmicas
inclusivas, gera emprego e obtém apoio político para maiores transformações.
Que é, aliás, o que vem ocorrendo no Brasil.
Mas são só dos governos
as responsabilidades pelos problemas?
Outro ponto muito
positivo, o 47, aponta a necessidade de transparência das corporações, porque a
gente só grita contra a falta de transparência do governo, dos políticos corruptos.
Mas, as empresas, o que fazem as grandes empresas, em diversos setores? Como
estão estruturadas as dinâmicas financeiras dos bancos, enfim? Há ganchos que
se abrem, a partir dos quais há espaço para batalhar. Bem ou mal, é um
documento assinado pelos diversos países. Se a gente compara, na Rio+20, com um
documento muito bom preparado pelo Instituto Ethos de Empresas e
Responsabilidade Social e confronta com o Vision 2050, com a visão das
corporações para 2050, encontra uma evolução forte. As corporações em grande
parte são a causa dos problemas, mas são tão fortes que, sem sua participação,
não serão os verdes nem a esquerda que vão levantar esse piano.
Desde que as pessoas
sejam bem informadas.
Isso é outro ponto
importante discutido na Rio+20, que a gente também está discutindo aqui no
Brasil: o resgate do uso e do poder das telecomunicações. No documento, isso é
colocado como um instrumento essencial. Ou seja, é uma guerra evidente,
sobretudo para nós, que estamos dominados por algumas corporações da mídia, e
por isso a democratização é essencial.
Mas o texto é
relativamente cordial com as corporações...
As corporações em
grande parte são a causa dos problemas, mas são tão fortes que, sem sua
participação, não serão os verdes nem a esquerda que vão levantar esse piano
Quando você associa o
grande eixo da conferência, o ambiental, com a dimensão da desigualdade, que é
assegurar o emprego e a inclusão das pessoas, fica evidente toda a lógica de
que a gestão desse processo se dê no nível local, nas cidades
“We also invite business and industry... to
contribute”, diz um dos pontos. É simpático:
convidamos a indústria a contribuir (risos). É um convite. Mas outros pontos
tocam no conceito de transferência de tecnologia e, no fim do documento, tem
um capítulo só sobre isso. É fundamental entender que quem controlava no
século passado as empresas, as indústrias e as máquinas é quem hoje controla a
comunicação e a informação, as tecnologias do conhecimento. E o acesso ao
conhecimento é vital. O documento tem uma parte inteira sobre a transferência
de tecnologias. Não menciona patentes, copyrights e royalties – o que faz parte
da timidez do texto –, mas menciona, sim, o direito dos países de produzir seus
medicamentos, de se posicionar em relação à Organização Mundial do Comércio e
aos tratados de propriedade intelectual. É um gancho que abre uma brecha em
toda essa blindagem no campo do oligopólio e no campo ético.
E como as partes se
relacionam para acompanhar a aplicação dessas demandas?
Tem uma coisa que pode
ser muito interessante, que está no ponto 84. É o universal intergovernmental
high-level political forum – um fórum intergovernamental, universal e de alto
nível –, no qual são detalhadas 12 funções desse corpo, que seria um tipo de
fórum mundial de personalidades respeitadas. Isso deverá ser submetido às
propostas elaboradas pelas Nações Unidas. O mais provável é que será de 30
representantes, equilibrando os diversos continentes, nos diversos
segmentos sociais. Deverá ser aprovado na próxima reunião da Assembleia Geral
da ONU, em setembro. Pela primeira vez a gente teria um corpo de referência
planetária. Temos problemas globais, mas não temos governos globais. Dos 193
países membros, cada um puxa para o seu lado, e isso está levando o planeta
para o buraco.
O problema é que a
representatividade das Nações Unidas em relação aos interesses do planeta é
bastante distorcida, não é?
Aliás, o ponto 92
sugere repensar a representatividade dos organismos internacionais. Na época do
sistema Bretton Woods (conferência que reuniu 44 países aliados, ainda em 1944,
para discutir uma integração econômica e financeira com vistas a reerguer o
capitalismo após a Segunda Guerra), grande parte dos países do mundo não
existia como nação, eram colônias. Agora, no sistema das Nações Unidas, a Ilha
de Vanuatu, no Pacífico, que tem 30 mil habitantes, tem um voto e a Índia, com
mais de 1 bilhão de habitantes, tem um voto...
As corporações em
grande parte são a causa dos problemas, mas são tão fortes que, sem sua
participação, não serão os verdes nem a esquerda que vão levantar esse piano
Muito parecida com o
nosso Congresso Nacional, guardadas as devidas proporções...
Exatamente. Estou
dizendo o óbvio. Mas no particular a estrutura de votos no Conselho de Segurança,
nos órgãos de financiamento internacional, é pré-histórica. É um avanço
interessante que em diversas partes do documento haja a necessidade de
planejamento, que tinha sido jogado para fora. “O mercado iria resolver”, né? É
importante também, no item 104, a necessidade de repensar o sistema de
indicadores para monitorar os resultados a serem buscados.
Medicina para todos,
por exemplo, o ponto 142, é muito importante – ou seja, o direito dos países de
produzir seus medicamentos. E ainda um capítulo importante sobre emprego e
renda. Eu uso muito o exemplo do que a Índia está fazendo. Lá há uma lei da garantia
do emprego. Cada cidade é obrigada a ter um cadastro de projeto de mão de obra,
pagando um salário básico, e tem 30 dias para assegurar trabalho a uma pessoa
que precise. Isso reduz a pobreza crítica e promove um conjunto de atividades,
como arborização urbana, saneamento básico, drenagem de água, um monte de
coisas que tem pra fazer. É um absurdo ter um monte de coisas a fazer e um
monte de gente desempregada.
Volta-se à questão:
quem monitora a execução das intenções? Qual o papel das cidades?
Esse documento da
Rio+20, que é o geralzão, tem de ser visto no contexto do movimento das
cidades, do C-40 – um grupo de, na realidade, 59 cidades do mundo que decidiram
fazer a lição de casa sem esperar os grandes poderes. E há milhares de cidades
do mundo assumindo esse papel. Quando a gente pensa assim, arborizar a cidade,
empregar as pessoas, assegurar educação mais decente e políticas sociais
básicas, isso funciona muito no nível local. Quando você associa o grande eixo
da conferência – o ambiental – e a dimensão da desigualdade, que é assegurar o
emprego e a inclusão das pessoas, evidencia toda a lógica de que a gestão desse
processo se dê no nível local.
A educação não deveria
ser um processo mais integrado aos desafios da sustentabilidade?
Houve algumas tomadas
de posição, por exemplo, da Fundação Getulio Vargas, de reforçar um ensino de
desenvolvimento sustentável. O Instituto Paulo Freire faz referências fortes a
educação ambiental. O mundo da educação no Brasil são cerca de 50 milhões de
pessoas, entre alunos, educadores. Tem a mídia alternativa muito presente –
outro eixo importante de participação, que se reforça na sua dinâmica
informativa. Então, uma coisa é avaliar o documento, a fragilidade, as nações,
os governos... Outra coisa é ver isso como um destravador de uma tendência
planetária, de uma consciência mais ampla, que acontece de maneira muito forte.
Uma coisa é dizer que estamos avançando, outra coisa é pensar se os avanços são
compatíveis com o ritmo de andamento dos problemas.
Quando a comunidade
científica começou a pautar governos e a ONU, em 1972, na Conferência de
Estocolmo sobre desenvolvimento sustentável, estava em questão o mercado ser o
regulador – Estado pequeno, mercado livre. Houve alguma reversão desse poder
concentrado do mercado?
Tem mudanças muito
fortes. A principal provavelmente é o que a gente chama de financeirização da
economia. Está no meu site uma pesquisa inatacável do instituto federal suíço
de pesquisa tecnológica. Dos 37 milhões de empresas que estão no banco de dados
dos bancos, pegaram as 43 mil principais e estudaram quem controla quem.
Resultado: 80% do mundo corporativo é controlado por 737 corporações e, desse
grupo, um núcleo duro de 147 controla 40%. Destas, 75% são intermediários
financeiros. Na realidade, você não tem mais produtores. E a crise mostra que
eles não conseguem se administrar.
A sustentabilidade foi
apenas alegoria no processo de perversão dos modelos econômicos?
Em 1972, a repercussão
(da Conferência de Estocolmo) é relativamente frágil, mas há um contexto bom,
o contexto dos anos de ouro do pós-guerra. Em 1992, é muito mais forte. Sai
dali a Agenda 21, mas com toda a força do liberalismo avançando, do pós-Ronald
Reagan, pós-Margaret Thatcher. Os grandes poderes não dão bola para a Agenda 21.
Você tem um documento excelente, e muito pouco espaço. E hoje tem esse
sistema que reforçou muito a concentração do poder corporativo, e uma crise que
sugere oportunidades. Muito mais oportunidades. A Agenda 21, de 1992, era um
documento forte, com menos contexto. Hoje, em 2012, temos um documento mais
fraco e mais contexto, mais oportunidades.
As corporações
financeiras ainda mandam...
Quem, por exemplo, viu
o filme Trabalho Interno (Inside Job, sobre os movimentos especulativos que
levaram à quebra de gigantes como o banco Lehman Brothers, da seguradora AIG e
de toda a economia americana) entende que se tratou essencialmente de fraude,
de bandidagem, de apropriação indébita dos recurso alheios, de ganhar dinheiro
não financiando produção, mas simplesmente especulando, desorganizando a
economia. Isso provoca indignação, muita gente está começando a entender
O filme revela que
parte das pessoas que operavam para que os mercados fizessem os estragos que
fizeram desfruta de posições de poder no governo Obama e nas universidades,
como Harvard e Colúmbia.
Nesse sentido, temos um
texto bastante surrealista. Eu acho vital o papel do conjunto da mídia
alternativa, das redes sociais, dos mais diversos sistemas com que as pessoas
se comunicam, para criar outra cultura.
Quando você associa o
grande eixo da conferência, o ambiental, com a dimensão da desigualdade, fica
evidente toda a lógica de que a gestão desse processo se dê no nível local, nas
cidades
O conceito de
sustentabilidade já não é um termo acadêmico. As pessoas estão cada vez mais se
apropriando dele?
Eu acredito nesse
avanço. Meu trabalho é essencialmente de disseminação dessa compreensão
científica. E temos de batalhar por essas redes de professores, de ciência
aberta. Temos de informar, proporcionar a muito mais gente a compreensão dos
desafios, para que haja pressão política, para que as coisas mudem.
Existe possibilidade de
um capitalismo verde? Que se adapte para ser benéfico às pessoas?
Quando você diz isso,
eu me lembro de uma reunião com o sociólogo português Boaventura de Sousa
Santos. Ele respondeu a essa questão com outra: pode um tigre ser vegetariano
(risos)? Eu acho que não seria esse o enfoque. As chamadas macrotendências, as
florestas, a vida nos mares, os climas etc. são demasiado graves para que a
gente possa ignorar. Muitas empresas entenderam o desafio e estão digerindo as
transformações internas para passar a outro patamar tecnológico.
Faltam teóricos para
formular diagnósticos e projetos de modelos de desenvolvimento?
Diversos autores, como
Lester Brown, Ignacy Sachs, Paul Krugman, Joseph Stiglitz, apontam para onde
vai estourar o sistema primeiro. Por que se criou a ONU e todo o primeiro
sistema internacional de nações? Porque a Segunda Guerra Mundial foi um negócio
pavoroso de onde saiu uma base política para a transformação. O mais provável é
que haverá um cataclismo maior. Temos 1 bilhão de pessoas passando fome, 11
milhões de crianças morrem, por ano, de fome ou por falta de acesso a água
limpa, 25 milhões de pessoas já morreram de aids. A conta já é alta.
Provavelmente um choque mais repentino, maior, criará base política para uma
nova transformação. Para mim, todo o sistema está mudando. Eu tenho dúvidas se
o conceito de capitalismo se aplica ao que a gente está vivendo. A mais-valia
já não é extraída por um produtor
Os bônus pagos a
executivos de corporações financeiras já superam os dividendos pagos a
acionistas de indústrias...
Não tenha dúvida. As
coisas estão mudando e, pra mim, as qualificações capitalismo e socialismo nos
remetem a um conjunto de conceitos que não se aplicam, porque não dão conta do
que está acontecendo. Vale mais a pena fazer mais trabalho empírico para
entender o que está acontecendo.
Os velhos rótulos
desbotaram?
A gente deve se dar o
trabalho de reavaliar. A China é capitalista ou socialista? Se você tem um
país com 15 anos de crescimento, que tirou 350 milhões da pobreza, e segundo as
palavras do Peter Spink, inglês radicado no Brasil, é o único que está fazendo
a lição de casa em termos ambientais, o mínimo que a gente tem a fazer é saber
como ela funciona. Eu vi ontem um documentário sobre a educação em Xangai.
Professores entram às 7h e saem às 17h. Nesse período, têm duas aulas de 40
minutos. O resto é apoio a alunos, reunião e elaboração de matérias com outros
professores. Há muita coisa nova acontecendo.
O senhor acredita que
esse Centro Rio+ pode ser um polo de difusão desses fragmentos de conhecimentos
necessários para cada área? De educação, de saúde, de agricultura, de
tecnologia...
Há muito menos polos
agora. O que há é trabalho em rede. Tem um conceito que é importante, que chama
cosmopolitan democracy. Uns caras que estudaram as mais variadas unidades...
Qualquer hospital hoje tem acordos internacionais, intercâmbio de médicos,
troca de tecnologias, qualquer universidade tem. Na PUC-SP, fizemos
levantamentos e tivemos cerca de 1.600 eventos internacionais em um ano.
Qualquer empresa média hoje tem um conjunto de sistemas de relações
internacionais. Então se está gerando, não através de governo, da ONU, nem de
Fundo Monetário, um tecido interativo que cobre todo o planeta, em que a
comunicação gira na velocidade da luz, e está tudo na internet. Está se gerando
um conjunto de dinâmicas horizontais muito interessantes. Na Alemanha de antes da
crise, por exemplo, está na Economist: 60% das poupanças das famílias alemãs,
que é muita coisa, está em caixas de poupança locais, comunitárias, das
cidades.
A poupança não está
concentrada em poucos bancos?
Muito pouco foi para o
sistema especulativo. São muitas dinâmicas. E a gente tem de buscar como se
identificam os quistos sociais. Por exemplo, São Paulo está a 14 quilômetros
por hora, gastam-se 2h43 por dia no trânsito, e não se consegue mudar. As
pessoas continuam pensando que produção é produzir tênis, mesa, automóvel, e
isso aqui está se tornando uma coisa pequena dentro do universo produtivo. A
gente sabe o que é agricultura e o que é a indústria, e depois vem todo um
conjunto de “outros”. O consultor da IBM, o padre, a prostituta são todos um conceito
“residual”. Se num universo em que 75% do que está estudando é “outros”, você
tem um problema.
As grandes cidades
perderam capacidade de propor soluções?
Eu acho que isso é
muito difícil porque nós tivemos um êxodo rural menos por atração e mais por
expulsão. Foi a expulsão do campo que gerou as metrópoles, e as periferias. As
seis grandes metrópoles brasileiras são essencialmente muito complicadas. Eu
acho que o movimento Nossa São Paulo, que agora está se multiplicando, é um
eixo muito legal porque começa a tomar em mãos a cidade. O que é problema
sempre é oportunidade. A cidade tem pela frente o objetivo de criar uma vida
decente, qualidade de vida, felicidade interna bruta, acesso a segurança,
saúde, tem de ter a descentralização, assegurar que cada bairro tenha serviços
acessíveis. Você pode descentralizar todos os serviços e manter a gestão
coerente. O Brasil, com essa desigualdade, frente a tempos tenebrosos que vêm
por aí, tem uma imensa oportunidade de ter um horizonte de expansão econômica
aqui dentro e se apoiar nessa expansão. Isso cria apoio político, estabilidade
e proporciona as oportunidades.
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