Por Claudio Bernabucci
O compromisso silencioso entre o operário eleito presidente
da República e a chamada elite brasileira – criar um mercado interno
significativo e promover o crescimento de uma nova classe média – representa a
autêntica obra-prima deste líder político indiscutível. Há quem diga que tal
compromisso tenha premiado mais os ricos do que os pobres. Fato é que o
processo desencadeado por Lula abriu uma dinâmica socioeconômica de baixo para
cima que parece irresistível e, talvez, irreversível.
Desde então, fala-se e escreve-se muito no Brasil sobre
classe média. A meu ver – salvo raras exceções – em termos ainda inadequados ou
instrumentais.
Não importa aqui analisar a questão de um ponto de vista
sociológico ou estatístico, nem rodar a faca da polêmica em torno da medida
governamental que estabelece ex-púlpito – a partir de maio 2012 – que a classe
média no Brasil é formada por pessoas com renda per capita entre 291 reais e
1.019 reais. O que nos interessa é focalizar a urgência de um debate amplo e de
maior conteúdo. Para esse fim, o método comparativo poderia ser útil. Não para
copiar modelos alheios, mas para, eventualmente, identificar um modelo original
de classe média à brasileira, que faça tesouro das experiências já realizadas
em outros países. Infelizmente, não observo nada disso. Ao contrário, me parece
que se fala desta nova realidade de maneira distorcida: para exaltá-la em tom
de propaganda ou para atraí-la em perspectiva eleitoral.
Aprofundar hoje no Brasil um debate sobre classe média
equivale a abrir uma reflexão sobre o País que queremos. Na atual fase de
decadência mundial da democracia, quando a política vai atrás da realidade para
depois definir as próprias escolhas, o Brasil poderia ter a ambição de inverter
o rumo: identificar o caminho a ser percorrido para depois aplicar políticas
consequentes, evitando assim submeter-se às dinâmicas ditadas pelos “mercados”.
É verdade que no Brasil também a economia e a finança detêm a
hegemonia sobre a política, mas – diferentemente do resto dos países
democráticos – as escolhas iluminadas dos últimos tempos construíram uma
solidez financeira pública que permitiria à política espaço de manobra mais
amplo do que em outras latitudes.
Navegador seguro é o que conhece os mapas e depois decide a
rota. No início da longa tempestade econômica que se vislumbra no horizonte,
seria sábio estabelecer tal rota com a participação da tripulação, para poder
chamá-la a dar o melhor de si nos momentos difíceis que inevitavelmente virão.
Mas essa classe trabalhadora ampliada, agora chamada de classe média, não
conhece suficientemente a arte de navegar: sua despolitização é patente. Além
disso, ela não tem sido adequadamente informada pelo comandante do navio sobre
os mares a serem navegados: o Estado não vem oferecendo a necessária educação.
Abre-se então a discussão sobre os (diferentes) papéis da
política e do Estado na construção do Brasil futuro. Resulta evidente como a
responsabilidade de governo tenha inibido a plena mobilização do PT, do
sindicato e das associações aliadas. O que é mais grave, há sintomas de que
esta renúncia pode ter-se transformado em perda de efetiva participação social,
fundamental alimento de sustentação das organizações progressistas. Os adeptos
do neoliberalismo podem facilmente abrir mão desses fatores; as forças de
esquerda não, pena a perda de identidade (e segura derrota eleitoral).
Na Europa do pensamento único das décadas passadas,
caracterizado pelo consenso neoliberal, os partidos progressistas perderam o
senso da própria missão, e suas diferenças em relação aos adversários pareceram
ser quase inexistentes. No cidadão fixou-se a convicção de que “são todos
iguais”. Resultado: a classe média e os setores populares deram-lhes as costas
e preferiram os originais às cópias.
Na dificuldade dessa conjuntura, seria a hora de redescobrir
o partido – qualquer partido – como aquela livre associação que não somente
organiza, mas elabora e transmite cultura, forja a prática da cidadania,
trabalha na sociedade. Esse seria o momento de voar alto novamente e valorizar
o papel irrenunciável dos sindicatos independentes e das organizações da
sociedade civil. Quanto ao Estado, seria decisivo considerar que o investimento
em educação é o que faz a diferença entre cidadão e consumidor.
Não pode ser esquecido que o Brasil se esforça para superar
imensos atrasos herdados do passado, mas seria pecar de grave omissão deixar de
lembrar que a política atrelada à contingência, não consegue criar uma nova
proposta de Estado e um novo projeto-país. Permanecerá, inevitavelmente,
portanto, e subalterna às tradicionais classes dominantes.
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