Viagem ao 'Brasil
real', como foi chamada a primeira Caravana da Cidadania, lembra transformações
que o país viveu principalmente na última década.
Por: Vitor Nuzzi
Lula cumprimenta
pessoas durante passagem da Caravana da Cidadania na cidade de Medina, interior
de Minas Gerais (Foto: Protasio Nene/Agência Estado)
Um anúncio feito no
final de 2012 pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de que iria “voltar
a andar pelo país”, atiçou obviamente a imprensa e a oposição, que começaram a
falar sobre o incerto. E trouxe à lembrança as peripécias da Caravana da
Cidadania, cuja primeira edição completará 20 anos no próximo mês de abril –
haveria uma segunda em setembro e outras nos anos seguintes, pelo Norte e pelo
Sul, totalizando mais de 500 cidades. Lula descarta relação entre aquela
caravana e as viagens que pretende fazer neste ano. Mas tanto naquele momento
como agora há os comentaristas habituais identificando supostas intenções – e,
de olho em 2014, tentando atingir o legado do ex-presidente.
Durante 20 dias, de 23
de abril a 12 de maio de 1993, a trupe liderada por Lula percorreu 4.500
quilômetros, visitando quase 60 cidades em sete estados, mostrando um país
pouco visto, pouco falado e muito maltratado. Não foi uma visita pelas capitais
ou pela orla brasileira, mas pelos chamados grotões, lugares distantes do
noticiário e da ação do Estado. Como cantou Milton Nascimento, “ficar de frente
para o mar, de costas pro Brasil, não vai fazer desse lugar um bom país”..
Além de andar por onde
ninguém queria ir, Lula inovou: em vez de discursar, ele entrevistava as
pessoas, perguntava como elas viviam ali. Colecionou histórias dramáticas e
alguns relatos pessoais, como o de uma senhora que revelou estar insatisfeita
com o marido, que bebia muito. Deu bronca em um outro que contou, aos 41 anos,
ter 12 filhos. E conversou com um senhor que a princípio ficou nervoso diante
do “alto-falante” – como ele chamava o microfone –, mas depois não queria
largá-lo. E disse a Lula: “O senhor me desculpe, mas nunca peguei no
alto-falante, e agora eu vou falar!”
O projeto original das
caravanas é de 1989, mas saiu do papel apenas em 1993. O objetivo, segundo seus
idealizadores: levar Lula ao encontro do Brasil real. O jornalista Ricardo
Kotscho, ex-assessor de imprensa de Lula, contaria depois que mesmo
internamente, no PT, houve resistência. Alguns disseram, com certa dose de
razão: “Cidadania? O povo desses lugares por onde vocês vão passar nem sabe o
que é isso”.
Combate
à fome
O Brasil de 1993 tinha
acabado de derrubar o presidente Fernando Collor de Mello, substituído pelo
vice Itamar Franco. Idealizador do chamado governo paralelo, Lula apresentou a
Itamar um plano de combate à fome. Apenas dois dias depois do fim da caravana,
em 14 de maio, o governo lançou o Conselho Nacional de Segurança Alimentar,
tendo à frente o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, e o bispo dom Mauro
Morelli, da diocese de Duque de Caxias (RJ). Nos milhares de quilômetros
percorridos pela trupe, não faltaram exemplos de que a pobreza deveria ser uma
questão prioritária para qualquer governante. E a avaliação corrente é de que
muito do que se aplicaria posteriormente, já no governo Lula, começou a ser
esboçado naquela viagem.
Passaram-se 20 anos,
com dois períodos bem distintos: a primeira metade teve como grande marco a
estabilização da moeda, enquanto a segunda iniciou um processo gradual de
redução da pobreza. Dos últimos dez anos, oito tiveram o próprio Lula como
presidente, que fez sua sucessora, Dilma Rousseff. Ainda que continue sendo um
país muito desigual, nesse período o Brasil tirou milhões de pessoas da linha
da pobreza, estabeleceu novos padrões de consumo e reverteu a tendência de
informalização do mercado de trabalho. Se a comparação for com 1993, o número
de empregos formais no país mais que dobrou.
‘Cutucar
o diabo’
Dois dias depois do
plebiscito nacional sobre forma (república ou monarquia) e sistema de governo
(presidencialismo ou parlamentarismo), em 23 de abril de 1993 Lula desembarcou
em Recife e fez uma declaração que de certa forma antecipou uma preocupação que
se tornaria marca de seu governo: “Quero colocar os famintos do país no cenário
político. A fome deve ser assumida não só pelo governo, mas pelos que comem”.
Sobre a caravana, manifestou incerteza. “Não sei o que vamos encontrar. O que
sei é que vamos cutucar esse diabo com vara curta.”
O trajeto iria
reconstituir a trajetória do próprio Lula, que em 1952, aos 7 anos, saiu de
Garanhuns com a mãe e sete irmãos, rumo a São Paulo. Durante 20 dias, dois
ônibus – um com Lula e convidados, outro com jornalistas – percorreriam dezenas
de municípios do Nordeste e do Sudeste, cortando estradas de terra que cruzavam
localidades quase esquecidas, distantes do “desenvolvimento” e com dificuldades
de comunicação – ainda não existiam celular nem internet, o que muitas vezes
causava aflição. Em certo local da Bahia, por exemplo, Kotscho chegou ávido à
recepção de um hotel perguntando se ali havia jornais. A resposta foi singela:
“Tem, mas é de outros dias”.
Em 12 daqueles 20 dias,
a caravana percorreu quatro estados do Nordeste, “a região semiárida mais
povoada do mundo”, como lembrou o geógrafo Aziz Ab’Saber, um estimulador da
viagem pelo Brasil e que morreu em março de 2012. Percorreria ainda a região do
Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, uma das mais pobres do país, Rio de
Janeiro e São Paulo.
Uma das primeiras
paradas no Brasil real foi em um acampamento no Sítio Poço Doce, em São Bento
do Una, agreste pernambucano. Ali ficavam 25 famílias, tentando sobreviver,
acordando de madrugada para andar seis quilômetros atrás de água. “Toda a
produção que existe nesta terra é nossa. Esta área é totalmente abandonada,
menos o roçado que a gente fez. A única vez que ele (proprietário) apareceu
aqui foi para nos intimidar”, relatou o representante do acampamento, José
Maria da Silva. Para aquelas pessoas, não era incomum se alimentar de um
peixinho chamado chupa-pedra. “É a descoberta de sobreviver por meio do que
sobrevive na lama”, observou o professor Aziz, conforme anotou o jornalista e
escritor Zuenir Ventura, que também andou uns dias por lá.
No meio da conversa, um
violão chega às mãos de Hilton Acioli – autor, em 1989, do jingle “Lula lá” e
integrante do Trio Marayá, nos anos 1960. E ele canta a música-tema da caravana,
Clareia:
“Duvido que um homem queira tudo/
Quando tem quem não tem
nada/
Desde que nasceu”.
Coordenador da
caravana, Francisco Rocha da Silva, o Rochinha, lembrou em entrevista à TVT que
o objetivo era “ouvir o que as pessoas pensavam”. Ele chefiou a equipe que
andou antes para mapear os locais. A viagem foi bem planejada, mas todo roteiro
acaba tendo seus desvios. Em muitos lugares, a população bloqueava a estrada e
fazia com que os ônibus desviassem para este ou aquele lugar. “Na grande
maioria dos casos, a gente tinha de sair da trajetória”, disse Rochinha.
Faroeste
sertanejo
O marco da caravana de
1993 foi, certamente, a passagem pela cidade de Canapi, no sertão de Alagoas.
Local emblemático, por ser a terra natal da família Malta, de Rosane Collor,
primeira-dama até o ano anterior. Lugar de pistoleiros e de um certo faroeste.
Em 1991, um dos irmãos de Rosane havia atirado contra o prefeito, e o bar onde
a história aconteceu quase virou atração turística. Em agosto de 1992, Ricardo
e seu irmão Ronaldo Kotscho, fotógrafo, foram a Canapi, a trabalho, e acabaram
expulsos por um segurança dos Malta.
“Era uma temeridade (ir a Canapi). Até eu dei
um passo atrás. Mas o presidente Lula deixou muito claro que era uma das
cidades em que ele fazia questão de passar”, recordou Rochinha. Passou, foi
recebido por uma multidão, andou pelas ruas e nada anormal aconteceu. Susto,
com a visão do Centro Integrado de Atendimento à Criança (Ciac), uma obra
luxuosa no meio da pobreza e sem funcionar – batizada por Zuenir Ventura como
um “monumento à insensatez”. Ele descreveria assim o Ciac: “Construído num
descampado, o visitante se aproxima dele – ou ele do visitante, não se sabe bem
– como se fosse uma miragem, uma ilusão de ótica provocada pela inclemência do
sol”.
Atual secretário de
Direitos Humanos do município de São Paulo, Rogério Sottili acompanhou o grupo
que percorreu o país antes de Lula para mapear cada local, fazer contatos e
identificar possíveis problemas. Ele lembra que a recomendação foi para não
passar por Canapi. “Ninguém falou com a gente. Todo mundo andava armado”,
recorda Sottili, que na época trabalhava na Secretaria Agrária do PT.
Em sua primeira fase, o grupo precursor era
formado por Sottili, a jornalista Cyntia Campos e três seguranças, também responsáveis
pela logística. O diagnóstico era feito com movimentos sociais, sindicatos,
associações, igrejas e, quando possível, prefeituras, além dos contatos com a
imprensa local. As indicações que seriam usadas na caravana eram minuciosas –
chegavam a apontar, por exemplo, que em determinado quilômetro de uma estrada
havia um buraco. Em São Paulo, pessoas como Clara Ant e José Graziano
preparavam relatórios detalhados com indicadores econômicos e sociais, entre
outras informações. Clara é assessora de Lula até hoje. Graziano integraria o
Programa Fome Zero, implementado no início do governo do petista, e em 2011
tornou-se o primeiro brasileiro a se tornar diretor-geral da FAO.
Achismo
Para José Ferreira da
Silva, o Frei Chico, irmão de Lula, a caravana representou um segundo retorno à
terra de origem. Ele esteve lá no final de 1964, após cinco dias de viagem.
Ficou 15, ganhou um jipe no bingo com um amigo, vendeu e, na volta a São Paulo,
comprou sua primeira casa. Em 1993, constatou que muita coisa ainda não tinha
mudado, com o poder local concentrado em determinadas famílias e regiões
isoladas. Além disso, permanece o desconhecimento em relação à realidade do
Norte/Nordeste. “Tem um monte de achismo”, diz Frei Chico.
A ignorância também se
dá em relação aos fatos históricos. Ele cita casos como o de Delmiro Gouveia,
empresário precursor assassinado em 1917 que hoje dá nome a uma cidade no
sertão de Alagoas, na divisa com Bahia, Pernambuco e Sergipe. Ou sobre a cidade
baiana de Cachoeira, pioneira na luta pela independência do Brasil.
Duas coisas,
particularmente, impressionaram Frei Chico durante a viagem: a realidade dos
trabalhadores do sisal, muitos deles mutilados, e a contaminação do Rio
Jequitinhonha, em Minas Gerais, por mercúrio, usado na extração do ouro. “Acho
que isso (preservação ambiental) é o grande drama brasileiro, a grande luta
nossa no futuro”, afirma, acrescentando que é possível “crescer sem destruir”.
Ele também guardou boas
lembranças, como uma disputa de sanfoneiros no interior da Bahia, que lamenta
não ter visto até o fim. Do ponto de vista político, Frei Chico percebeu a
necessidade de buscar união mesmo com aqueles com outros pontos de vista, para
começar a mudar o país – e a situação melhorou bastante de lá para cá. Com
certeza, observa, “a caravana ajudou muito o Lula a formar a sua visão de
Brasil”. Sottili reforça: “Acima de tudo, ele queria mostrar o país”.
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