O historiador Erick Langer, diretor do Centro de Estudos
Latino-americanos da Universidade de Georgetown, em Washington, fala nesta
entrevista sobre vários temas da história continental, como o populismo, a
ascensão e as crises do neoliberalismo, as conexões das terras baixas com os
Andes e a influência da China e dos EUA.
Aos 57 anos, nascido no dia 22 de maio de 1955, Erick Langer
é um historiador especialista em América Latina que dirige o influente Centro
de Estudos Latino-americanos da Universidade de Georgetown, em Washington. Lá
começa a funcionar uma cátedra sobre a Argentina.
Nesta entrevista, ele discorre sobre sobre vários temas da
história continental, como o populismo, a ascensão e crise do neoliberalismo,
as conexões das terras baixas com os Andes e a influência da China e dos EUA.
"Me parece muito interessante que o continente tenha
mudado tanto na última década e tenha podido aproveitar, do ponto de vista
econômico, uma grande mudança mundial: a maior presença chinesa", disse
Langer.
Em que, na sua opinião,
a América Latina aproveitou da China?
A China é um rival dos Estados Unidos que requer
matérias-primas da América Latina. Isso contribuiu para que a América Latina
pudesse enfrentar a crise em melhores condições. Não sem perigos, claro.
Qual será o perigo?
Que a América Latina não intensifique o processo de
elaboração de matérias-primas e siga exportando commodities. É um desafio para
todos os governos da região, sem exceções. A vantagem é que a partir de 2000 a
América Latina em geral, e a América do Sul em particular, se libertou da
dependência do modelo neoliberal dos Estados Unidos.
Como esse modelo
afetava a região?
Criou um desassossego das classes médias e baixas em termos
de distribuição da riqueza. Essa expressão não estava, evidentemente, no
Consenso de Washington.
O documento do consenso
exortando à desregulação e a desregulamentar a economia é de 1989. Não ficou
nada?
Na região? Praticamente nada. É um fator positivo para a
região.
Ou seja, o crescimento chinês é um elemento positivo e a
queda do Consenso de Washington é outro ponto bom.
E acrescento um fator de peso: os Estados Unidos estão muito
preocupados com o Oriente Médio e efetivamente não prestaram muita atenção à
América Latina.
Os acadêmicos e os dirigentes políticos discutem sempre se
isso é bom ou ruim. Alguns defendem que para a América Latina a situação é
melhor quando Washington menos se ocupa dela.
Bom, em matéria política há um tema prático a ter em conta.
Vai soar quase redundante. Quando Washington se ocupa menos, a ingerência é
menor. A maioria das vezes que os Estados Unidos puseram o olhar em outros
lugares e não tanto na América Latina, como na Primeira Guerra Mundial, a
favorecida foi a América Latina. Não dou o exemplo da Segunda Guerra Mundial
porque o fenômeno é muito mais complexo. Mas depois de muitas vezes o problema
foi que os governos do continente não foram aliados dos Estados Unidos, mas
dependentes de Washington. Não é a mesma coisa. Os Estados Unidos tinham o
poder de se impor. De impor, inclusive, um modelo que já não funciona. Barack
Obama se deu conta disso, embora seu principal tema não seja a América Latina.
E antes dele, George Bush não estava concentrado na América Latina.
Quer dizer que é bom
para a região que não haja uma dedicação especial?
Mas eu investigo a
América Latina! Você quer que fique desempregado?
Professor, seu
currículo na parte de idiomas diz que fala quéchua. Onde aprendeu?
Em Stanford.
Stanford, Califórnia?
Exatamente. Já anteriormente a zona andina me interessava e
depois, graças ao quéchua, pude falar diretamente na Bolívia para entrevistar
vários caciques andinos. Há tempo que não o falo, embora o entenda bastante
bem. Sabe qual é o meu problema? Com quem falar por aqui?
Por que se interessou
pela América do Sul andina e pela zona do Chaco?
Quando era estudante de um programa de intercâmbio fui para
Sucre. A um colégio jesuíta. Me impactou de forma profunda o fato de ter vivido
ali. Originalmente, queria voltar para a Europa. Passei cinco anos na Alemanha.
Aquela viagem pela América do Sul foi incrível. Era junho, julho e agosto de
1973. Viajei por quase toda a região. Cheguei ao Chile quando Salvador Allende
ainda estava no governo. Estando na Argentina, por pura casualidade não fui um
dos que estiveram presentes no dia 20 de junho de 1973, quando Juan Domingo
Perón voltou definitivamente. Me salvei dos tiros porque havia decidido ir a
Ezeiza e no último momento alguns amigos de Córdoba me chamaram. Acompanhei
tudo. Pouco tempo antes haviam matado o Che Guevara.
Claro, o mataram na
Bolívia em 1967, apenas seis anos antes de sua viagem. De seu próprio
"Diário de motocicleta". Até onde chegou?
Até Medellín. Dali volte de avião aos Estados Unidos. Em Sucre
e depois, através das minhas pesquisas, indaguei sobre a resistência camponesa
o que se podia chamar, grosso modo, de modernização. Para mim foi fascinante.
Os pesquisadores não costumam tomar como objeto de estudo as regiões em baixa,
mas em crescimento. Fazem mal, porque é muito interessante. Eu tratei de ver
como se portavam as pessoas quando tudo ia pior e que mudanças aconteciam, por
exemplo, do final do século XIX para o século XX, pela passagem da mineração da
prata, com centro em Potosí, à mineração do estanho, que favoreceu mais o norte
que o sul. O próximo projeto incorporará o comércio no norte da Argentina, que
investiguei muito nos últimos anos. No século XIX não havia ainda fronteiras
nacionais efetivas. As fronteiras econômicas iam muito além. Pensar em unidades
nacionais no século XIX é perder algumas perspectivas, como a da Bolívia, e não
entender bem as relações e as encruzilhadas com o norte argentino, chileno e o
sul peruano. Nesse momento me interessaram os chiriguanos. Mas a minha tese já
estava avançada e resolvi deixar o tema para mais adiante. É gracioso, porque
terminei publicando um livro 20 anos depois.
Vi o título. Traduzido seria "Esperando peras do olmo:
as missões franciscanas na fronteira chiriguana no coração da América do Sul,
1830-1949".
Leia-o, por favor. Espero que demonstre uma maturidade que
antes não tinha como historiador. Olhe, naquele momento nem se usava a palavra
"guarani". No primeiro capítulo demonstro que o poder militar era a
favor dos chiriguanos, e que com esse poder podiam tirar o excedente da
sociedade crioula. Em muitos casos foram mais poderosos que os próprios
crioulos.
E tudo pela raridade do intercâmbio em Sucre. É uma cidade
muito bonita, mas pouco conhecida.
Melhor que não a conheçam. Deixe Sucre assim. Quando me
aposentar quero me mudar para Sucre e morar na parte velha da cidade.
Professor, voltemos dos
chiriguanos aos sul-americanos de hoje. Você compartilha a visão que mostra, do
ponto de vista político, várias Américas do Sul situadas em extremos opostos?
Me parece que não há uma divisão tão taxativa porque os
processos são muito semelhantes. Tomemos de novo em consideração algumas
realidades. Antes os chineses pensavam na América do Sul como Chile, porque os
chilenos haviam sido muito efetivos em se vender na China. Quer dizer que, em
última instância, não foram tão diferentes como acabaram sendo os outros, não é
certo? Na atualidade, a América do Sul tem uma realidade estável. É uma
realidade comum. Mas também, com suas diferenças, o protesto é um hábito comum.
Há protestos antigovernamentais, para além dos conteúdos, na Argentina, no
Chile e no México. E dá a sensação de que às vezes é difícil classificar cada
coisa como de direita ou de esquerda.
Pensa também na
Argentina?
Claro. É difícil definir um governo de peronistas como de
esquerda ou de direita. Há um processo político único ao longo da história que
não encaixa muito bem nestes termos. Falo da formação do peronismo. Juan Perón
estava muito convencido dos não alinhados. O justicialismo é uma mescla de
muitas ideologias. Ainda hoje é difícil definir os Kirchner como de esquerda e
ficar nisso como toda explicação. O peronismo tem uma organização de base muito
mais forte que qualquer outro partido político em toda a América Latina e pode
arrasar nas urnas. Organiza-se muito bem. Recolheu a herança e a retórica de
cuidar dos operários, o que é muito importante. Vejamos uma diferença em
relação ao meu país. Nos Estados Unidos não existe uma esquerda. Mas existe uma
direita. Nesse sentido, hoje a Argentina está voltando a um leito natural.
Carlos Menem obviamente foi peronista, mas tinha outras características e foi
uma exceção nessa trajetória.
É exatamente a época do Consenso de Washington, que resumiu
as experiências práticas de Ronald Reagan e Margaret Thatcher.
Sim, a década de 90.
Você dizia que falar de
esquerda ou de direita não esgota uma análise. E a noção de populismo o
satisfaz como conceito?
Também não é suficiente. É muito difícil definir o que é
populismo. Dito agora é diferente de quando um pesquisador o aplicava nos anos
30 ou 40, uma época muito ligada ao começo das etapas de substituição das
importações industriais. Hoje pode haver experiências de substituição, mas a
base sempre é a busca de um tipo de relação com a economia mundial. O que se
poderia resgatar, e há uma herança muito longa de Juan Manuel de Rosas em
diante, é a importância que um chefe político que seja um personagem
carismático pode ter. Isto faz com que a política se torne muito personalista.
Assim teríamos uma característica populista. De todo modo, a chave é se se
transpõem ou não os limites da democracia. Enquanto a oposição possa ganhar (se
o faz ou não, é outra questão) está tudo bem. Não falo apenas da Argentina.
Acontece em todos os países.
Os opositores têm a
mesma característica em todas as partes?
Não. Mas há um elemento comum: a oposição está muito
desorganizada em todos os países onde há líderes fortes.
Há líderes fortes
porque não há oposição organizada ou há oposição desorganizada pela existência
de lideranças fortes?
O populismo tem uma virtude e uma desvantagem: abarca muitas
correntes políticas. E essas diferentes correntes se manifestam no líder. A
oposição, ao contrário, não tem muitos interesses em comum e então as diversas
correntes não se unem.
Bem. Deixo-o no
passado. Que outro momento da Argentina viveu, além de 73 e do retorno de
Perón?
Fui bolsista da Fullbright em 2000. Fernando de la Rúa era o
presidente. Vi a queda, com o "corralito" e o drama social. E depois
se deu a extraordinária recuperação econômica que vocês experimentaram. De todo
modo, hoje me parece que se deve observar muito a velocidade relativamente
menor de crescimento da economia chinesa e avaliar se a América Latina é capaz
de saltar para outro modelo que no futuro não a faça depender da venda de
matérias-primas. Não sei se você sabe, quando conversam em privado, muitos
dirigentes chineses equiparam a América Latina à África.
Em que se baseiam?
Nas perspectivas de utilização econômica. Eles não entendem
as enormes diferenças. A América Latina é outro mundo, diferente da África. Mas
muitos dirigentes chineses pensam assim.
Por que concordou em
criar a Cátedra Argentina?
O embaixador Jorge Argüello veio e me propôs. Me pareceu bem.
Pensamos em estabelecer um espaço acadêmico porque nos parecia que a Argentina
é um país sumamente importante da América Latina. A Cátedra Argentina será uma
forma construtiva de colocar a Argentina no tapete para que as pessoas de
Washington se deem conta da complexidade do país. Para melhorar as relações é
necessário melhorar a difusão e o conhecimento. O desconhecimento cria
problemas. É um projeto de longo alcance. Essa Cátedra Argentina deve durar
muitos anos e não depender da administração política de turno. Por isso
necessitamos de recursos. O próprio embaixador me dizia que ele queria que
seguisse em frente. O Brasil ganhou um grande espaço em Washington. É lógico. O
Brasil está crescendo e tem importância mundial. Mas há países tão importantes
como o Brasil e nosso objetivo é manter em tela também a Argentina.
Quem deveria olhar essa
tela?
Os estudantes, evidentemente, e toda a comunidade acadêmica.
Mas, mais amplamente, o conjunto de latino-americanistas, de especialistas em
América Latina, e funcionários e dirigentes. Que conheçam mais a Argentina e a
tomem em conta, porque é importante para manter boas relações na América Latina
e no Cone Sul em geral.
Desde quando está na
Universidade de Georgetown?
Desde 1999. Era o único latino-americanista com uma cátedra e
não conseguia ter estudantes graduados. Agora tenho vários doutorandos. Queria
entrar nisso. Georgetown é mais conhecida como universidade do que outras e tem
um componente de comunidade universitária que me atraiu muito.
Seu livro sobre os chiriguanos está relacionado com uma
missão franciscana. Mas você trabalha em uma universidade com tradição de estar
ligada à Companhia de Jesus.
Pela primeira vez na história da Georgetown não há um reitor
jesuíta. Sua presença física diminuiu. Seu espírito é muito importante, porque
se trata de uma cultura universitária que dá atenção ao ser humano total, o que
não se dá em outras universidades. Para um professor com trajetória isso é
apaixonante. Todos dão aulas, tanto nos cursos de graduação como de
pós-graduação. Também somos uma universidade de pesquisa. E não deixamos de
lado o componente da justiça social. Trabalhando sobre o tema dos movimentos
indígenas me pareceu que podia fazer parte de uma equipe que tivesse interesse
em temas de justiça social.
É um dos temas comuns da América Latina.
Sim, deve-se em boa medida às críticas e aos problemas do
modelo neoliberal anterior, baseado no enriquecimento de um sobre os outros. Um
modelo que no longo prazo não funciona. É uma luta que, como se terá dado
conta, também travamos nos Estados Unidos. Há duas posições muito diferentes
sobre como deveria ser o Estado e a quem deveria favorecer.
* A entrevista foi realizada em setembro de 2012. Trechos
datados foram suprimidos. A tradução é do Cepat
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