Francisco Alves, da Universidade Federal de São Carlos, diz
que esse sistema leva o trabalhador à exaustão, doença e morte
Por: Cida de Oliveira, Rede Brasil Atual
São Paulo – Os atestados de óbito de cortadores de cana
geralmente declaram razões desconhecidas ou parada cardiorrespiratória, segundo
a Pastoral do Migrante de Guariba, no interior de São Paulo. Mas alguns deles
podem trazer como causa um acidente vascular cerebral (derrame), edema pulmonar
ou hemorragia digestiva, entre outras. No entanto, para Francisco da Costa
Alves, professor e pesquisador do Departamento de Engenharia de Produção da
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), as mortes são o desfecho da
exaustão causada pelo trabalho excessivo exigido pelo sistema de pagamento por
produção. Antes de matar, o sistema provocou problemas respiratórios,
musculares, sérias lesões nas articulações pelo esforço repetitivo, entre
outros. “Essa forma de remuneração, que leva o cortador a trabalhar mais e
mais, em longas jornadas, com alimentação e hidratação inadequadas, está na
raiz do adoecimento e morte desses trabalhadores”, disse.
Nesse sistema antigo, que já era criticado no final do século
18 por ser perverso e desumano, os trabalhadores recebem conforme produzem,
tendo a responsabilidade pelo ritmo do seu trabalho. Ganham mais conforme a
produção. Como trabalham pela subsistência, se submetem a esse ritmo cada vez
mais intenso para melhorar suas condições de vida.
Conforme Francisco Alves, que há mais de 20 anos pesquisa a
produção no setor canavieiro, o excesso de trabalho pode ser demonstrado pela
rotina dos bóias frias. Para a produção diária de seis toneladas, eles têm de
cortar a cana rente ao solo para desprender as raízes; cortar a parte onde
estão as folhas verdes, que por não ter açúcar não servem para as usinas;
carregar a cana cortada para a rua central e arrumá-la em montes. Segundo o
pesquisador, tudo isso é feito rápida e repetidamente, a céu aberto, sob o sol
e calor, na presença de fuligem, poeira e fumaça, por um período que varia
entre 8 e 12 horas. Para isso, eles chegam a caminhar, ao longo do dia, uma
distância de aproximadamente 4.400 metros, carregando nos braços feixes de 15
quilos por vez, além de despender cerca de 20 golpes de facão para cortar um
feixe de cana. Isso equivale a aproximadamente 67 mil golpes por dia. Isso tudo
se a cana for de primeiro corte, ereta, e não caída, enrolada. Do segundo corte
em diante, há mais esforço.
O gasto energético ao andar, golpear, agachar e carregar peso
torna-se ainda maior devido à vestimenta com botina de biqueira de aço,
perneiras de couro até o joelho, calças de brim, camisa de manga comprida com
mangote de brim, luvas de raspa de couro, lenço no rosto e pescoço e chapéu, ou
boné, quase sempre sob sol forte. Com isso, eles suam abundantemente, perdendo
muita água e sais minerais. A desidratação provoca câimbras frequentes, que
começam pelas mãos e pés, avançando pelas pernas até chegar ao tórax – as chamadas
birolas. Provocam fortes dores e convulsões. Para tentar evitar o problema e
garantir maior produção, algumas usinas distribuem soro fisiológico e, em
alguns casos, suplementos energéticos. E há casos em que os próprios
trabalhadores procuram um hospital na cidade, onde recebem soro na veia.
“Ademais, o excesso de
trabalho não é realizado apenas para alcançar esse salário, mas também para
atingir as próprias metas fixadas pela usina (cerca de 10 a 15 toneladas
diárias), a fim de garantir ao trabalhador que lhe seja oferecido a vaga na
próxima safra. E, para que o trabalhador possa atingir essa meta, é obrigado a
trabalhar invariavelmente cerca de 10 horas diárias, senão mais”, escreveu o
juiz Renato da Fonseca Janon, da Vara do Trabalho de Matão, em sua sentença do
final do ano passado que proibiu a Usina Santa Fé S.A., de Nova Europa, na
região de Araraquara, a remunerar seus empregados do corte de cana por unidade
de produção. A decisão, inédita, baseou-se em pesquisas coordenadas por
Francisco Alves, além de outros pesquisadores da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp).
Para complicar, esse sistema de pagamento impede a adoção da
norma regulamentadora (NR) 31, considerada um avanço para a segurança e saúde
dos trabalhadores rurais por obrigar o uso de equipamentos de proteção
individual. É o caso de óculos de proteção contra as cortantes folhas da cana,
que causam muitos ferimentos nos olhos. Só que para serem limpos da poeira e da
fuligem, exigem a interrupção da produção.
Para Alves, a mudança do pagamento por produção para um
salário fixo depende de um longo processo de discussão e reflexão da situação.
Enquanto o fim do pagamento associado à produção representa saúde,
envelhecimento digno e mais vida, muitos trabalhadores o entendem como redução
dos ganhos. No entanto, cortadores mais velhos, que já não têm o mesmo vigor
dos mais jovens, e mulheres, que têm outra jornada de trabalho em casa, aceitam
ganhar um salário fixo mesmo que seja inferior ao que ganhariam por produção.
Segundo a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do
Estado de São Paulo, os valores da tonelada de cana cortada variam entre R$
3,80 e R$ 4. E o piso salarial mensal, regional, varia entre R$ 775 e R$ 840
para uma jornada semanal de segunda a sexta-feira, das 7h às 16h20. “Para se
sustentar e à sua família, o cortador de cana deveria ter um piso
correspondente a pelo menos três salários mínimos (R$ 2.034)”, disse Roberto
dos Santos, secretário geral da Federação dos Trabalhadores na Agricultura no
Estado de São Paulo (Fetaesp). De acordo com o dirigente, não há no momento
nenhuma opção que permita ao trabalhador ganhar o suficiente. “É claro que
seria mais vantajoso um piso salarial superior ao que se ganha por produção,
mas essa forma de pagamento ainda é a que permite ganho maior e por isso os
trabalhadores sempre se manifestam favoráveis a esse sistema.”
Os patrões propõem a mecanização do corte da cana, que
elimina o problema, mas também acaba com os empregos. Estima-se que só em São
Paulo sejam 200 mil os que perderão o trabalho. Por isso, Alves defende
políticas de curto prazo, elaboradas pelo conjunto da sociedade, para a
qualificação desses trabalhadores que ocuparão parte dos empregos na
agricultura mecanizada. Só que não haverá vagas para todos: uma colheitadeira
faz o serviço de 80 trabalhadores. Ele estimam ainda que, com a mecanização,
20% da terra hoje tomada pela cana em São Paulo não poderá mais ser usada com
essa finalidade. “Uma alternativa é que os municípios, que têm o direito
constitucional de decidir o que fazer com suas terras, decidam com seus
moradores se vão destiná-las à produção de alimentos ou recompor florestas
nativas, que permitem a recomposição de mananciais”, disse. “Outra é a reforma
agrária, política pública mais barata, capaz de proporcionar trabalho e renda
para esses trabalhadores da cana.”
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