Quatro décadas depois da Guerrilha do Araguaia, a comissão
que tenta localizar e identificar os corpos dos insurgentes do PCdoB reconhece
os restos do guerrilheiro mais misterioso do conflito
Alan Rodrigues
O ex-marinheiro Francisco Manoel Chaves é o personagem mais
misterioso da Guerrilha do Araguaia. Ele viveu quase toda a vida adulta na
clandestinidade e morreu, aos 66 anos, emboscado na selva num combate com
militares, em 1972. Além disso, quase nada mais se sabia sobre ele, nem sequer
seu local de nascimento. Supunha-se que tivesse nascido no Rio de Janeiro, mas
recentemente foi confirmado que ele era mineiro. Conhecido por Preto Chaves,
mas também chamado de Zé Francisco ou Velho Chico, Francisco Chaves era um dos
163 desaparecidos políticos cuja história ainda está em aberto, segundo
estimativas da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) da Presidência da
República.
As circunstâncias de sua morte e sua trajetória de vida, no
entanto, têm tudo para ser elucidadas a partir de agora. Depois de fazer uma
série de escavações na região do conflito, especificamente no velho Cemitério
de São Geraldo, peritos do Grupo de Trabalho Araguaia (GTA) descobriram três
ossadas. Uma delas, que os peritos acreditam ser de um negro, foi identificada
como sendo do guerrilheiro Preto Chaves. Como a investigação corre em segredo
de Justiça, integrantes da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos do
governo preferem não anunciar a descoberta oficialmente antes da conclusão do processo.
Mas Diva Santana, representante da comissão, admite: “De fato, um dos restos
mortais tem muita chance de ser do guerrilheiro Chaves”, disse Diva à ISTOÉ.
A ossada atribuída a Chaves está em Brasília sob os cuidados
do governo federal para análise antropométrica. Não existe até agora nenhum
indício de que o militante comunista tenha deixado parentes para reconhecê-lo a
partir de exames de DNA, o que poderia facilitar o trabalho. “Precisamos ainda
fazer outras análises técnicas do caso, pois não sabemos se ele teve filhos,
mulher ou qualquer outro parente”, diz Sávio Andrade, representante do
Ministério da Defesa no GTA.
Agildo Nogueira Júnior, pesquisador do Instituto Maurício
Grabois, ligado ao PCdoB, é o único estudioso que tem ajudado o GTA com informações
sobre a vida de Preto Chaves. Há alguns anos, ele levanta informações sobre o
guerrilheiro para a produção de um livro. “Interessei-me pelo caso, já que
quase ninguém falava sobre ele. Essa cantilena de que os militares não possuem
mais informações tem atrapalhado a pesquisa”, diz Júnior. Agora, com a
descoberta da ossada, a apuração do pesquisador pode contribuir para o
reconhecimento definitivo do corpo. Ele mostra, por exemplo, uma entrevista
publicada no “Jornal Opinião”, de Goiás, na década de 1990, na qual o sargento
do Exército identificado como J. Pereira, que combateu no Araguaia, admite que
seu grupo matou três guerrilheiros. “Foi tiro pra lá, tiro pra cá. No final,
três guerrilheiros estavam mortos”, disse J. Pereira, que ainda está vivo. O
sargento fez outras revelações importantes. Ele conta que deixou os corpos dos
guerrilheiros no mesmo local em que os restos mortais foram encontrados agora
pelo GTA. O sargento revelou também que Preto Chaves carregava no peito um
cordão de terecô, um patuá da religião afro cujo “terreiro” era frequentado
pelo ex-marinheiro. “Tínhamos informações de que o guerrilheiro negro era
considerado feiticeiro”, disse J. Pereira, que se referiu ainda a “uns cordões
amarrados” usados pelo guerrilheiro.
A revelação do sargento sobre os cordões de terecô no peito
de Chaves coincide com a informação prestada pelo militante Micheas Gomes de
Almeida ou “Zezinho do Araguaia” ao pesquisador do Instituto Maurício Grabois.
Zezinho, que conheceu e combateu na selva ao lado de Chaves, contou em 2007 que
ele frequentava as sessões de umbanda na região do conflito e que carregava o
patuá no peito. À ISTOÉ, Zezinho confirmou a participação de guerrilheiros em
cultos de religiões afro. “O Chaves João Amazonas (principal líder do PCdoB),
por exemplo, puxava um terço danado”, revela Zezinho. De acordo com fontes do
GTA, essas informações são preciosas para o reconhecimento oficial do corpo de
Preto Chaves. “É muito pouco provável que um guerrilheiro negro, o que era
raro, fosse enterrado, naquele mesmo local, com os cordões de terecô sem ser o
Chaves”, afirmou um dos integrantes do GTA.
Antes do Araguaia, há algumas informações mais precisas sobre
Chaves. Em 1935, ele participou do levante comunista contra o governo de
Getúlio Vargas. Preso e torturado, foi trancafiado por meses no presídio da
Ilha Grande ao lado de Graciliano Ramos. O escritor faz referência ao
marinheiro em seu livro “Memórias do Cárcere”. Na década de 1960, Chaves
filiou-se ao PCdoB. A partir daí, sua trajetória é obscura.
O episódio envolvendo Preto Chaves ilustra bem como os órgãos
de segurança ainda tratam as informações sobre os ex-militantes comunistas e
reforçam as críticas de que os militares têm sido pouco colaborativos. Até
outubro do ano passado, a Marinha se recusava a tornar público o prontuário do
ex-funcionário e ninguém do GTA tinha nenhuma informação sobre o guerrilheiro.
Nem mesmo sua ficha de entrada na Marinha existia (ele entrou para a corporação
militar em 1º de julho de 1928). Depois de intensas negociações, apareceu uma
tímida folha da Polícia Civil do Distrito Federal que trazia algumas
informações sobre Chaves. “É inconcebível que não exista nenhuma informação
sobre a história de um ex-militar que serviu durante 33 anos, foi expulso e
chegou a receber pensão. A Marinha tem a obrigação de abrir seus arquivos”,
defende Júnior.
Fotos: Kelsen Fernandes; Arquvo Ag. Istoé; ICHIRO GUERRA
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