Contra a Democracia
Um dos pilares do
paradigma liberal é a crença de que livre-mercado e democracia são termos que
nunca podem entrar em contradição.
Segundo essa vulgata,
por meio do livre-mercado garante-se a liberdade individual de empreender e
defender seus próprios interesses.
Neste mundo, ser livre
equivaleria a poder estabelecer contratos de maneira "não
coercitiva", seja para vender a força de trabalho, seja para alugar o
útero, seja para contrair matrimônio, seja para relacionar-se com o Estado por
meio dos impostos ou para tomar empréstimos no banco. Diga-se de passagem,
todas essas ações são, para os liberais, pensadas a partir de uma mesma lógica
unidimensional.
Nesse contexto, "democracia"
só pode significar "o regime que não interfere nos contratos firmados por
pessoas livres". Quanto menos interferência estatal, mais liberdade; é o
que diz o velho mantra. No entanto, foi esse mantra que levou o mundo a uma das
piores crises do capitalismo. Por isso, sair da crise só será possível à
condição de pararmos de nos deixar enfeitiçar por ele.
Se uma ideia ruiu nos
últimos anos, foi exatamente a que vê, no livre-mercado, o modelo de uma
sociedade civil livre. Deixado a si mes-mo, o mercado é o regime que extorque
contratos dos que não têm força social para afirmar sua liberdade, dos que não
têm escolha real por estarem submetidos ao risco constante da precariedade e da
vulnerabilidade. Por isso, o velho Hegel dizia que a sociedade civil nunca é
suficientemente rica para acabar com a pobreza.
Tal extorsão mostra,
nos dias de hoje, sua face mais clara quando vemos bancos e seus
"experts" da grande imprensa mundial aterrorizarem populações com a
ameaça do caos econômico, caso suas dívidas não sejam encampadas pelos Estados
nacionais e transformadas em dívidas soberanas.
Ao aceitarem tal
ameaça, os Estados destroem o sistema de segurança social que permitia um
mínimo de liberdade à população diante da espoliação pelos economicamente mais
fortes. Mas ao fazerem isso, eles destroem as verdadeiras bases da democracia.
Ou seja, a crise que o
mundo vive hoje é a prova maior de que livre-mercado e democracia não andam
necessariamente juntos, que há situações nas quais o primeiro pode destruir o
segundo.
Com sua influência
desproporcional, o sistema financeiro é, atualmente, a maior ameaça à
democracia ocidental. Salvar tal sistema nos levará a uma nova forma de
sociedade totalitária: a sociedade da precariedade generalizada
Artigo do professor
Vladimir Safatle, da Filosofia da USP.
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