Por Fernando Morais,
especial para o 247
A festa de celebração
dos 10 anos de governo do PT, realizada nesta quarta-feira, me fez lembrar de
um episódio ocorrido em 2002, durante a vitoriosa campanha de Lula.
No começo de junho
daquele ano fui chamado para um encontro com o ex-governador Orestes Quércia,
presidente do Diretório Estadual do PMDB, partido ao qual eu era – e sou –
filiado. Sem muitos prolegômenos, ele foi direto ao assunto: o partido me convidava
para ser candidato a governador de São Paulo. Ele, Quércia, disputaria uma das
duas vagas de senador em jogo naquelas eleições.
Mal refeito do susto,
respondi que era uma honra etc etc, e que eu aceitava – mas havia uma questão
que certamente inviabilizaria minha candidatura. Eu estava decidido a fazer a
campanha de Lula e votar nele para presidente, a despeito da decisão da direção
nacional do partido de apoiar José Serra. A aliança com os tucanos havia sido
cimentada com a indicação da senadora Rita Camata, do PMDB capixaba, para vice
de Serra. Para minha surpresa, Quércia topou, mesmo sabendo que sua decisão
poderia implicar em uma intervenção da direção nacional na Executiva paulista.
Estendeu-me a mão a anunciou: “Então está fechado. E você não vai sozinho com o
Lula. O PMDB paulista, como um todo, vai apoiá-lo para presidente.”
Durante dois meses eu
acordava todos os dias às seis da manhã, chovesse ou fizesse sol, pegava um
avião e saía pelo Estado pedindo votos. Nesse período devo ter percorrido mais
de cem municípios. Participei de um único debate, na TV Bandeirantes – do qual
saí com um processo movido contra mim pelo governador e candidato à reeleição
Geraldo Alckmin, do PSDB. Minha pele foi salva pelos craques Manuel Alceu
Afonso Ferreira e Camila Cajaíba, meus defensores. Derrotado na Justiça, o
governador ainda teve que pagar as custas do processo – os tais “honorários de
sucumbência” – dinheiro que eu pretendia que fosse doado ao MST, mas que acabou
sendo destinado ao Fundo Social de Solidariedade de São Paulo. Anos depois
recebi um polido telefonema de Alckmin, sugerindo que puséssemos uma pedra
sobre o assunto. Mas isso é outra história.
Minha campanha foi
muito difícil. Embora tivesse que enfrentar pesos-pesados com máquinas
poderosas, como Alckmin, Maluf e Genoíno, eu contava com pouquíssimos recursos
e estrutura muito precária. Com índices miseráveis nas pesquisas (acho que
nunca passei dos 5%), eu apostava no grande trunfo do PMDB: no horário
eleitoral eu iria dispor de cinco minutos diários – que na verdade eram dez
minutos, já que o programa era exibido duas vezes por dia. Quem quer que tenha
elementar noção do poder da televisão sabe que cinco minutos diários na TV são
uma eternidade. E era na TV que eu pretendia virar o jogo.
No dia 15 de agosto,
quando faltavam duas semanas para a estreia do horário eleitoral, liguei para o
marqueteiro contratado pelo PMDB para sugerir que começássemos a gravar meus
pilotos para o programa de televisão. Para meu espanto, o publicitário
respondeu que na primeira semana o horário do partido seria integralmente
ocupado por Quércia – que já dispunha dos três minutos destinados ao candidato
ao Senado. “São ordens do próprio
Quércia”, reiterou, “e eu obedeço ordens de quem paga as minhas contas”. Para
encurtar a conversa, no dia seguinte denunciei a tramoia publicamente e retirei
minha candidatura.
Entrei na campanha do
PT e passadas algumas semanas fui convidado a participar de um ato de artistas
e intelectuais em apoio a Lula no Rio de Janeiro. Ao chegar ao salão apinhado
de gente (acho que era na churrascaria Porcão), fui informado de que eu falaria
“em nome dos escritores”. Apanhado de surpresa, eu não sabia direito o que
dizer. Foi então que me lembrei que trazia na mochila uma preciosidade: um
poema escrito em 1926 por Gilberto Freyre que me fora mandado dias antes por
e-mail por uma amiga de Jaboatão dos Guararapes, em Pernambuco. Na verdade eu
ignorava que o autor de “Casa Grande e Senzala” era dado à poesia. Mas não
tinha dúvidas de que aqueles versos septuagenários de pouco mais de trezentas
palavras caíam como uma luva para o momento vivido pelo Brasil, na iminência de
eleger pela primeira vez um operário para a Presidência da República. O poema
parecia atual também pela circunstância de que dias antes a atriz Regina Duarte
aparecera no programa de TV de José Serra afirmando “ter medo” – medo, claro,
de que Lula ganhasse a eleição. Enquanto Regina falava em medo, Gilberto Freyre
semeava esperança.
Quando chamaram meu
nome, subi ao palco e anunciei que, em vez de fazer um discurso, eu leria uma
ode à esperança, o poema de Freyre:
O outro Brasil que vem
aí
Gilberto Freyre, 1926
Eu ouço as vozes
eu vejo as cores
eu sinto os passos
de outro Brasil que vem
aí
mais tropical
mais fraternal
mais brasileiro.
O mapa desse Brasil em
vez das cores dos Estados
terá as cores das
produções e dos trabalhos.
Os homens desse Brasil
em vez das cores das três raças
terão as cores das
profissões e regiões.
As mulheres do Brasil
em vez das cores boreais
terão as cores variamente
tropicais.
Todo brasileiro poderá
dizer: é assim que eu quero o Brasil,
todo brasileiro e não
apenas o bacharel ou o doutor
o preto, o pardo, o
roxo e não apenas o branco e o semibranco.
Qualquer brasileiro
poderá governar esse Brasil
lenhador
lavrador
pescador
vaqueiro
marinheiro
funileiro
carpinteiro
contanto que seja digno
do governo do Brasil,
que tenha olhos para
ver pelo Brasil,
ouvidos para ouvir pelo
Brasil,
coragem de morrer pelo
Brasil,
ânimo de viver pelo
Brasil,
mãos para agir pelo
Brasil,
mãos de escultor que
saibam lidar com o barro forte e novo dos Brasis
mãos de engenheiro que
lidem com ingresias e tratores europeus e
norte-americanos a
serviço do Brasil
mãos sem anéis (que os
anéis não deixam o homem criar nem trabalhar).
mãos livres
mãos criadoras
mãos fraternais de
todas as cores
mãos desiguais que
trabalham por um Brasil sem Azeredos,
sem Irineus
sem Maurícios de
Lacerda.
Sem mãos de jogadores
nem de especuladores
nem de mistificadores.
Mãos todas de
trabalhadores,
pretas, brancas, pardas,
roxas, morenas,
de artistas
de escritores
de operários
de lavradores
de pastores
de mães criando filhos
de pais ensinando
meninos
de padres benzendo
afilhados
de mestres guiando
aprendizes
de irmãos ajudando
irmãos mais moços
de lavadeiras lavando
de pedreiros edificando
de doutores curando
de cozinheiras
cozinhando
de vaqueiros tirando
leite de vacas chamadas comadres dos homens.
Mãos brasileiras
brancas, morenas,
pretas, pardas, roxas
tropicais
sindicais
fraternais.
Eu ouço as vozes
eu vejo as cores
eu sinto os passos
desse Brasil que vem
aí.
Emocionado, e diante da
emoção daquela multidão, não resisti e repeti o verso final:
Eu ouço as vozes
eu vejo as cores
eu sinto os passos
desse Brasil que vem
aí.
À saída Lula me pediu
uma cópia do poema, que passou a ler no encerramento de todos os comícios dali
em diante. Na primeira entrevista depois
de eleito, ele declarou aos jornalistas: “O mais importante é que a esperança
venceu o medo” – expressão que o ágil marqueteiro Duda Mendonça havia
transformado em bordão de campanha.
Seria arriscado afirmar
que o poema de Gilberto Freyre tenha sido profético em relação à Revolução de
30 – até porque a primeira providência do grande sociólogo, após a chegada de
Vargas ao poder, foi asilar-se em Portugal. Nem acredito que Freyre, se vivo
fosse, estaria ao lado dos petistas. Mas ao reler “O outro Brasil que vem aí” é
impossível deixar de pensar que o país sonhado no poema começou com Lula. E
continua com Dilma.
Fernando Morais,
jornalista e escritor, é autor, entre outros, dos livros “Olga”, “Chatô” e “Os
últimos soldados da Guerra Fria”.
Postado por Na Ilharga
Nenhum comentário:
Postar um comentário