Roberto Amaral na Carta Capital
Completamos uma década de governo de centro-esquerda, o mais
longo e tranquilo período de governos progressistas, tanto do ponto de vista
institucional quanto social. Nada que nos lembre, sejam os anos 50 (marcados
pelo golpe reacionário que levou Vargas ao suicídio), seja o golpe
proto-fascista de 1964, com sua longa noite de horror. Nada que nos lembre,
sequer, o governo desenvolvimentista de JK, juncado por sucessivas tentativas
de golpes de Estado e insurreições militares, articuladas antes mesmo de sua
posse.
Na verdade, estamos, desde 1985, vivendo nosso mais longo
período de estabilidade democrática, de preeminência do poder civil e silêncio
dos quarteis, da história republicana.
O que avançamos à esquerda nesses dez anos só é comparável
(talvez até superando-o) ao que o país avançou nos governos Vargas e Jango e,
pela primeira vez, a direita não teve condições de interromper o processo de
ascensão das massas, embora cogitasse dessa aventura em 2005, da qual recuou em
face de seu medo contumaz da voz das ruas. Avançamos sobretudo em conquistas econômicas e sociais,
que ajudam a explicar a notável popularidade de Lula e de Dilma. Estamos,
todavia, ainda a pagar um preço absurdamente elevado pela “governabilidade”, o
nome elegante da construção da base de apoio parlamentar, preço que impede o
avanço político. Pois tudo tem seu preço.
A avaliação mais corrente ao período deita suas raízes no
plano econômico, considerado, à esquerda e à direita, como fiador da
popularidade dos governantes, financiador que é dos avanços sociais, os quais,
para poupar espaço, resumiremos na dupla pleno emprego-distribuição de renda:
42,5 milhões de brasileiros entraram no sistema financeiro e conheceram o
crédito, tornado acessível graças à intervenção política da presidente.
No segundo semestre de 2002, em plena campanha pela sucessão
presidencial, o presidente FHC convocou todos os candidatos para uma ‘reunião
de Estado’ (estive em uma delas, acompanhando o candidato Anthony Garotinho, à
época no PSB), para anunciar a falência do país. O governo, em seu outono,
correra uma vez mais ao FMI e precisava que o próximo presidente honrasse os
terríveis compromissos assumidos com a banca internacional. Passados 10 anos, o
Brasil, de devedor, tornou-se credor do FMI; a inflação anual caiu de 12,5%
para algo como 5%; as reservas cambiais são superiores a um ano de importações,
a realidade cambial foi restabelecida e a dívida pública líquida caiu como
fração do PIB. Acabou-se com a lengalenga de ‘Banco Central independente’,
independente do país e dependente dos banqueiros.
Outros excepcionais indicadores do amadurecimento de nossa
economia remetem ao reconhecimento internacional, cuja justa medida é o fato de
sermos, hoje, o quarto destino mundial de investimentos estrangeiros (65,3
bilhões de dólares, segundo a Unctad), e o Tesouro Nacional emitir (e vender)
títulos de 20 anos, pagando uma taxa de juros real inferior a 4%! E tudo isso –
e muito mais – mantendo a política de aumento real do salário-mínimo. A qual,
nesse governo, contrariando economistas da FGV, deixou de ser elemento
inflacionário. Aumentou-se o salário mínimo, aumentou-se a renda dos
assalariados, aumentou-se o crédito, derrubaram-se os juros, e a inflação
permaneceu sob controle.
Mas, o que mais
festejo são os ganhos políticos e o que mais critico é a timidez política, e
exatamente por isso elogio, finalmente, o pronunciamento da Presidente na
televisão, tão bom que irritou a direita impressa. Espero, porém, que esse
pronunciamento não seja o primeiro e último. Pois, se o grande mérito do
governo foi a decisão de governar para as grandes massas – decisão de que
decorrem os ganhos na economia – são tímidas as conquistas políticas e ainda
mais tímida a disposição do governo de enfrentar o debate político, esperando
que por ele falem os movimentos sociais, desarticulados e esvaziados,
exatamente pelo exílio da política.
Ilustra essa inapetência política a forma como foi anunciada
a queda dos juros pela qual clamavam sindicatos, empresários, a sociedade e a
boa política (jamais nos esqueçamos dos discursos de José Alencar), apresentada
que foi como mera medida econômica!
Ora, a queda dos juros foi decisão política da presidente,
para a obediência da tecnoburocracia econômico-financeira e da banca, como foi
sua decisão, política presidencial, determinar a correção no câmbio, o aumento
do crédito pessoal e cutucar, com a ação dos bancos estatais, a banca
refratária.
O governo, acossado
pela crise de 2005, optou pela composição a mais ampla possível – elástica
tanto do ponto de vista do espectro ideológico quanto do padrão ético –
abrigando sob suas asas desde a esquerda (PSB, PT, PCdoB e PDT) a partidos como
o PP de Maluf, o PTB de Roberto Jefferson e as armadilhas dos soi-disant
evangélicos, enfim, uma malta que tem sua grande homenagem no velho e notório
PMDB. A contra-prestação veio em termos, pois, se a governabilidade foi
assegurada (mas não só como efeito dessa composição), a maioria no Congresso,
hoje como ontem, é instável e rentista, sempre sujeita que é ao toma lá – dá
cá.
De outra parte, essa geleia, informe e contraditória política
e ideologicamente, privou o governo da ação das massas, que lhe são favoráveis,
desmobilizou os sindicatos e não ensejou o surgimento de movimentos sociais e
culturais capazes de trazer para a política os novos valores e as novas
aspirações. Isolando-se, o governo corre o risco de imolar-se nas teias das
transações da pequena política, a rainha do Parlamento de hoje, deixando a
política para os ‘outros’.
Tal privação talvez
explique a resistência de nossos governos em enfrentar a necessária reforma do
Estado, que só nós podemos patrocinar, democratizando-o e descondicionando-o da
destinação neoliberal para a qual foi moldado. Intocado, permanecerá o Estado
de ontem herdado do tatcherismo e da razzia dos dois Fernandos: anti-povo,
anti-nacional, o Estado da banca e dos privilégios, o Estado privatizado pelos
interesses do capital, uma estrutura, portanto, que resiste à modernidade, à
supremacia dos interesses nacionais e das grandes massas, alienado funcional e
ideologicamente.
Ao não politizar seus avanços e conquistas, o governo de
centro-esquerda renuncia à formulação de um corpus ideológico que daria
significado e permanência às conquistas alcançadas, a melhor maneira de
garantir no futuro a sobrevivência dos avanços de hoje.
No nosso silêncio fala a direita.
O povo, que apoia o governo que o beneficia, é alvo de uma
guerra ideológica sistemática levada a cabo pelos grandes meios de comunicação
de massa, ideologizados, partidarizados, reacionários. Trata-se, porém, de
guerra sem conflito, pois um só exército vomita fogo. Este é o preço da inércia
dos partidos, da inércia do que ainda resta de esquerda, esquecida de que, até
para ocupar caixinhas no organograma do governo, é indispensável travar a luta
política. Sem ela, ou perdemos o governo ou dele seremos apeados.
Veremos o que virá.
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