Por Emiliano José
A primeira reportagem traça o perfil de Therezinha Zerbini,
sobre quem todos nós que lutamos contra a ditadura nos recordamos com muito
carinho e respeito. Lembro-me de ter estado na casa dela, nem me perguntem a
razão. A visita provavelmente dizia respeito a alguma ajuda que me desse
condições de suportar as agruras da resistência, que nunca eram pequenas. Era
militante estudantil, dirigente da União Brasileira dos Estudantes
Secundaristas (UBES). Estava acostumada a essas visitas. Recordo-me, e nem sei
se a memória é tão segura assim, que a filha dela estudava oboé, o que naquele
momento me impressionou, pelo inusitado. Para mim, inusitado. Eu mal sabia o
que era oboé. Depois, acompanhei sua dedicação, preso ou solto, em favor da
anistia. Tornou-se uma das mais célebres personalidades na batalha pela anistia
ampla, geral e irrestrita.
O livro engloba nove reportagens de fôlego, naturalmente
reescritas, atualizadas, repensadas, como Paulo Moreira Leite explica na
apresentação. Retrata a atuação de brasileiros e brasileiros na resistência à
ditadura, com exceção apenas do perfil de Lincoln Gordon, o embaixador
americano que contribuiu para o golpe militar de 1964, e que faz contraponto
aos demais personagens, no outro lado da margem do rio. Estive com Paulo
rapidamente no lançamento em Brasília, tendo merecido uma carinhosa
dedicatória. Eu o conhecia e o admirava de longe, e naquela noite, agosto deste
ano, nos vimos, cara a cara.
Reprodução
Antes que siga falando sobre o livro, registro que Paulo
Moreira Leite foi um dos poucos jornalistas da nossa velha mídia, da chamada
grande imprensa, que fez uma apreciação global crítica sobre o chamado
“mensalão”, especialmente do espetáculo midiático e dos absurdos cometidos pelo
STF no julgamento, ainda em curso enquanto escrevo esse texto. Afora os nossos
blogs sujos, afora CartaCapital, afora Jânio de Freitas, afora Bob Fernandes,
para lembrar algumas poucas exceções, a nossa mídia hegemônica trabalhou lado a
lado com o STF na política de condenar a qualquer custo os réus da Ação Penal
470.
Dei-lhe os parabéns. E manifestei uma preocupação, que não
repito aqui, por cuidados. Me respondeu que, na idade dele, queria apenas olhar
com tranquilidade para os seus filhos e netos, e dizer que fora digno de seu
tempo. Tem sido. E, se pudesse sugerir, já tomando a ousadia de sugerir,
pediria ao autor que nos entregasse um livro com tudo que escreveu em torno do
julgamento do STF, um julgamento nunca visto antes na história desse País, pelo
espetáculo e pelas mudanças objetivas no entendimento do nosso Código Penal,
mudanças que se continuadas condenarão muito mais gente pelo suposto domínio do
fato ou pela suposição, sempre presente, de que, pela posição do réu, “ele
tinha que saber”.
Terezinha Zerbini é uma heroína do tempo da resistência. E,
como perceberão, uma mulher forte, impositiva, dessas que, tendo clareza do que
pretende, vai fazendo o caminho ao caminhar, sabendo dos riscos vai
afrontando-os até atingir o que pretende, e quando a ditadura vinha buscá-la
não queria a ajuda do general Euryale de Jesus Zerbini, seu marido, cassado
pela ditadura. O general da casa era ela, e isso todos na família reconheciam.
Ela mesma considerava-se um perigo público, acometida de permanente loucura,
que ela definia como sagrada. Por isso, ficou presa quase um ano, e nunca
deixou de lado a luta pela anistia.
Com uma cuidadosa reportagem, o autor rende homenagem ao
pastor presbiteriano Jaime Wright, um dos principais parceiros do cardeal dom Evaristo
Arns no projeto “Brasil: Nunca Mais”, um volumoso levantamento sobre os crimes
da ditadura militar, revelador da imensidão da tortura ocorrida naqueles anos
de terror e medo. O irmão, Paulo Wright, foi meu companheiro de Ação Popular,
dirigente dessa organização revolucionária, assassinado no DOI-CODI em São
Paulo, em 1973. Só em 1991 a família foi informada oficialmente de sua morte.
Jaime sentiu profundamente a perda do irmão e, mais tarde, a
de Leila, filha mais velha de Paulo, morta a golpes de tesoura de maneira cruel
e violenta em sua casa, em Curitiba. No enterro da sobrinha, pela primeira vez
ficou mudo, cabeça baixa, a voz não saía, por mais que quisesse. Era dor
demais, que se não conseguia se expressar em lágrimas, revelava-se agora naquele
impressionante mutismo. Suas palavras de conforto, cheias de carinho,
solidárias, presente em tantas ocasiões, naquele dia sumiram. Represou sua dor,
guardou suas palavras. Morreu em 1999, aos 71 anos, de enfarte.
Traça também o perfil do filho de empregada doméstica,
auxiliar de barbeiro, engraxate, jornaleiro, vendedor ambulante que se tornou
um dos mais importantes intelectuais brasileiros. Fala com muito carinho e
admiração de Florestan Fernandes que encarnou à perfeição a figura do
intelectual orgânico, por sua coerência, seu alinhamento ao lado dos explorados
e oprimidos, sem que nunca perdesse, no entanto, o rigor científico em suas
obras, grande parte das quais autênticos clássicos da sociologia, fundamentais
para o entendimento do Brasil, destacando-se “A Revolução Burguesa no Brasil”,
que o professor Wanderley Guilherme dos Santos definiu como uma das “cinco
obras mais importantes escritas no país nos últimos 50 anos”.
Transita, ainda, em outras reportagens, pela sensibilidade,
amor pelos livros, de José Mindlin; pela inteligência política e heterodoxia
comunista de Armênio Guedes; pelo quatrocentão cheio de radicalismo Plínio de
Arruda Sampaio; pelo contraditório e instigante Henry Sobel; pelo amante da
humanidade e da natureza Washington Novaes e, na última reportagem, mergulha no
espírito golpista de Lincoln Gordon. Sobre este, duas ou três palavras, a
partir da reportagem de Paulo Moreira Leite.
O papel dos EUA no
golpe
Ninguém tem mais dúvidas de que os EUA patrocinaram com muito
gosto o golpe militar de 1964. Atendendo pedido do embaixador Lincoln Gordon, o
presidente Lyndon Johnson reconheceu a ditadura instalada já no dia 1º de abril
de 1964, com um telegrama de calorosas saudações aos golpistas. A 7 de abril de
1964, o New York Times dizia, em editorial, ser difícil saber quem estaria mais
satisfeito com a queda de Goulart: se os brasileiros ou o Departamento de
Estado do governo americano. O sinal verde para o golpe militar fora dado por
Kennedy, numa reunião realizada na Casa Branca em 30 de junho de 1962, com a
participação do presidente, de Lincoln Gordon, e de Richard Goodwin.
Kennedy mandou ainda que se providenciasse dinheiro para as
ações golpistas, para ajudar os partidos de oposição nas eleições. Para esse
caixa, evidentemente um caixa dois, Lincoln Gordon pediu oito milhões de
dólares, logo deixando claro que não seria possível esperar uma prestação de
contas rigorosa. Ele sabia em que mãos o dinheiro cairia. O udenismo, de
discurso moralista, ontem como hoje, nunca primara por qualquer cuidado com o
dinheiro que lhe caísse à mão. Kennedy achou a conta muito alta, e fechou o
acordo em cinco milhões.
Na reunião de 1962, Richard Goodwin fortaleceu a solicitação
de Lincoln Gordon, lembrando o precedente da ajuda milionária do governo americano
à democracia cristã na Itália, indispensável para vencer o PCI nas eleições do
pós-guerra. Logo após a reunião, nomeou-se um novo adido militar na embaixada
brasileira, o coronel Vernon Walters, experiente militar golpista, que conhecia
os militares que iriam dirigir o golpe desde a campanha da Itália, na Segunda
Guerra. Tudo combinado. E em 1964 se iniciava a longa noite de terror, que
durou 21 anos – de 1964 a 1985. Com a participação decisiva de Lincoln Gordon,
sob a orientação direta do governo americano.
O querido amigo, companheiro, agora vereador por Salvador,
Waldir Pires, quando lhe perguntam sobre o “mensalão”, este que imputaram ao
PT, diz que já o conhecia desde há muito. Sabia do dinheiro que havia irrigado
o IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) e o IPES (Instituto de
Pesquisa e Estudos Sociais). Essas entidades, nitidamente golpistas, se
parecem, sem tirar nem pôr, com as atividades do atual Instituto Millenium,
dirigido por empresários e jornalistas ligados à nossa velha mídia, que
procuram requentar notícias já ultrapassadas, todas destinadas a minar a
extraordinária popularidade do ex-presidente Lula.
Como diria Paulo Moreira Leite, em artigo publicado em 3 de
novembro, em sua coluna eletrônica “Vamos Combinar”, quem não tem povo caça com
Valério. Vamos combinar que também neste caso, Paulinho tem toda razão. O
Instituto Millenium e a nossa velha mídia, um parentesco indissolúvel, têm
perdido todas ultimamente, uma década de derrotas. Basta a velha mídia se
colocar ao lado, pobre do Serra, e lá vem vitória do outro lado, e sempre o
diabo do PT e seu aliados. Assim, ninguém aguenta: só chamando o Valério. As
fontes da velha mídia pioram a cada dia. Antigamente, havia mais critério para
escolher a quem se ouvia.
E vamos combinar também que as similitudes do IBAD e do IPES,
lá pelo início dos anos 60, do pré-golpe, com os movimentos da nossa velha
mídia atual, de nítida inspiração golpista, são muito grandes. Só que a
história se repete em duas condições: numa é tragédia, e a de 1964 não foi
pequena. Nesta, a da tentativa de golpe de hoje, aparece como farsa. Vamos
combinar que uma farsa burlesca. Boa leitura a todos. Perdem os que não o
lerem.
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