LUIZ MOREIRA
Equívocos conceituais transformaram o julgamento num processo
altamente sujeito a contestações várias, pois o STF não adotou corretamente nem
sequer o domínio do fato como fundamento teórico apropriado
Em 11 de novembro, a Folha publicou entrevista com o jurista
Claus Roxin em que são estabelecidas duas premissas para a atuação do
Judiciário em matéria penal. Uma é a comprovação da autoria para designar o
dolo. A outra é e que o Judiciário, nas democracias, é garantista.
Roxin consubstancia essas premissas nas seguintes afirmações:
1) "A posição hierárquica não fundamenta, sob nenhuma
circunstância, o domínio do fato. O mero ter que saber não basta. Essa
construção ["dever de saber"] é do direito anglo-saxão e não a
considero correta. No caso do Fujimori, por exemplo, foi importante ter provas
de que ele controlou os sequestros e homicídios realizados."
2) "É interessante saber que aqui também há o clamor por
condenações severas, mesmo sem provas suficientes. O problema é que isso não
corresponde ao direito".
Na seara penal, portanto, o Judiciário age como a instância
que garante as liberdades dos cidadãos, exigindo que o acusador demonstre de
forma inequívoca o que alega.
Assim, atribui-se ao Judiciário o desempenho de um papel
previamente estabelecido, pelo qual "fazer justiça" significa o
cumprimento correto dos procedimentos estabelecidos pelo ordenamento jurídico.
Com Roxin, sustento que cabe ao Judiciário se circunscrever
ao cumprimento de seu papel constitucional, de se distanciar da tentativa de se
submeter ao clamor popular e de aplicar aos jurisdicionados os direitos e as
garantias fundamentais.
Nesse sentido, penso que, durante o julgamento da ação penal
470, o STF se distanciou do papel que lhe foi confiado pela Constituição de
1988, optando em adotar uma posição não garantista, contornando uma tradição
liberal que remonta à Revolução Francesa.
Esses equívocos conceituais transformaram, no meu entender, a
ação penal 470 num processo altamente sujeito a contestações várias, pois o STF
não adotou corretamente nem sequer o domínio do fato como fundamento teórico
apropriado. Tais vícios, conceitual e metodológico, se efetivaram do seguinte
modo:
1) O relator criou um paralelo entre seu voto e um silogismo,
utilizando-se do mesmo método da acusação. O relator vinculou o consequente ao
antecedente, presumindo-se assim a culpabilidade dos réus.
2) Em muitas ocasiões no julgamento, foi explicitada a
ausência de provas. Falou-se até em um genérico "conjunto probatório",
mas nunca se apontou em que prova o dolo foi demonstrado.
Por isso, partiu-se para uma narrativa em que se gerou uma
verossimilhança entre a ficção e a realidade. Foi substituída a necessária
comprovação das teses da acusação por deduções, em que não se delineia a
acusação a cada um dos réus nem as provas, limitando-se a inseri-los numa
narrativa para chegar à conclusão de suas condenações em blocos.
3) Por fim, como demonstrado na entrevista de Roxin, como as
provas não são suficientes para fundamentar condenações na seara penal,
substituíram o dolo penal pela culpa do direito civil.
A inexistência de provas gerou uma ficção que se prestou a
criar relações entre as partes de modo que se chegava à suspeita de que algo
realmente acontecera. Ocorre que essas deduções são próprias ao que no direito
se chama responsabilidade civil, inaplicável ao direto penal.
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