Os Estados Democráticos de Direito adotam a concepção de que
o sistema processual (para que se tenha um processo justo), deve supor uma
relação triangular entre acusação, defesa, Juiz e ainda garantir o desinteresse
pessoal do juiz, a respeito do que está em jogo no processo. A pressão exercida
de forma massificante pela mídia para a condenação dos réus da Ação Penal 470
introduziu uma quarta ponta neste triângulo. O “partido nazista” nos processos
judiciais da Alemanha de Hitler e o “partido stalinista” na velha URSS eram a
“quarta ponta do triângulo” nas suas respectivas épocas históricas. O artigo é
de Tarso Genro.
Tarso Genro (*)
A nota da Executiva
Nacional do PT sobre os resultados da ação penal 470, tornou-se um marco mais
importante para o futuro democrático do país do que o próprio resultado do
processo judicial, por três motivos relevantes: compõe sua crítica com
argumentos extraídos dos próprio fundamentos do Estado de Direito e não ataca a
legitimidade daquela Corte superior do Estado; mostra que a decisão foi
motivadamente política, portanto, alheia –em relação aos líderes do PT- ao que
consta nos autos do processo; e não defende que os réus deveriam ser
absolvidos, provadas as condutas ilícitas que lhe foram imputadas.
O conteúdo da nota, certamente, levou em consideração que
criticava, ao meu ver corretamente, a mesma instituição que decidiu
brilhantemente sobre as pesquisas com células tronco e sobre a demarcação –que
entendeu contínua- da reserva “Raposa Serra do Sol”, decisões que honram a
parte da história democrática e humanista daquele Tribunal.
É óbvio que, no imediato do cenário político nacional, a nota
terá pouca influência. No entanto, à medida que o tempo passar e vierem outros
julgamentos à tona, vai ficar claro que se foi um fato relevante, para o Estado
de Direito, a proposição de ação penal contra figuras elevadas da República,
esta relevância ficou pela metade. O próprio Supremo - no discurso técnico do
processo - admitiu abertamente que foi invertido o ônus da prova: os réus, que
já estavam condenados pelo linchamento midiático, é que deveriam provar a sua
inocência, pois já tinham sua culpa definida na consciência média da sociedade.
O rigor das penas e a execração pública dos réus como
criminosos provados, a tentativa de desqualificação permanente dos Juízes que
esboçavam mínimas divergências com a visão de “direito penal máximo”, adotada
pelo Relator, completam este quadro de desequilíbrio entre a potência
acusatória -social e judicial- e o exercício do direito de defesa. Culpados ou
não, os réus, neste contexto jurídico e político, foram “mal julgados”. E isso
não é certamente um avanço para o Estado de Direito, pois em cada julgamento
-sejam os réus cidadãos importantes ou não da República- o Direito inteiro está
presente e o Estado, por inteiro, avança na salvaguarda dos seus fundamentos
democráticos ou transpõe os limites que separam a legalidade e o arbítrio.
Quero fundamentar, para que não fique como uma mera acusação
vazia ao Supremo - e em respeito a ele- os motivos que dão base ao entendimento
de que a condenação foi fundamentalmente política. Faço-o, através dos próprios
fundamentos da teoria do processo no nosso sistema de garantias. Trata-se da
concepção universal, nos Estados Democráticos de Direito, de que o sistema
processual (para que se tenha um processo justo que tenda para um resultado
justo), deve supor - como diz Ferrajoli - a configuração “de uma relação
triangular entre sujeitos” (acusação, defesa, Juiz) e ainda garantir o
“desinteresse”, a “indiferença” pessoal do juiz, a respeito do que está em jogo
no processo.
A pressão exercida de forma massificante pela mídia para a
condenação dos réus - aceita em nosso sistema de leis e não estranha ao Estado
Democrático de Direito- , e a “premiação”, com prestígio político espetacular
outorgado ao Relator e aos que votaram pelas condenações, se não torna o
processo nem ilegal nem ilegítimo (porque o sistema de Justiça supõe que os
Juízes devem ser imunes a estas pressões), pode redundar em sentenças injustas.
Em determinadas circunstâncias concretas as condições do
julgamento livre são tão alteradas que podem mudar o circuito processual que
garante um julgamento justo: um quarto sujeito (no caso concreto a mídia),
torna-se tão ou mais importante do que o sujeito acusatório formal, o
Ministério Público, pois tem força para unificar o juízo forjado na sociedade
com o juízo produzido no processo, independentemente das provas.
A peça acusatória formal, assim, passa a ter muito mais
chances de aceitação pelo público e pelos julgadores do que as razões de
defesa. Não se trata, portanto, necessariamente, nem do “caráter”, nem de
compromisso prévio de Juízes com preconceitos políticos, dos quais todos os
seres humanos não estão livres. Trata-se de reconhecer a criação programada da
desigualdade de condições dos réus, para enfrentarem o processo.
A presença dominante de uma “quarta ponta do triângulo” -
acusação do Estado, defesa e juiz, no caso mais mídia como “quarta”, instiga
que seja exigido dos réus que comprovem sua inocência, liberando Ministério
Público de apresentar as provas que confortem os tipos penais da acusação. A
partir daí configura-se um “vale tudo” judicial porque e fundamentação da
justiça da sentença já está incorporada pelo senso comum.
Nesta hipótese a relação interna ao processo judicial, que
foi alterada pela mídia, é dominada por um outro (quarto e novo) pólo
acusatório - mais forte socialmente do que o próprio Ministério Público - e que
constituiu um processo paralelo ao processo judicial: o inquisitório da cena
pública. Neste -pela sua “partidarização” explícita- não só não está garantido
o direito de defesa dos réus, mas faz presente no juízo judicial que decide as
penas, a pré-disposição condenatória pelo reconhecimento de um “clamor popular”
devidamente forjado. O “partido nazista” nos processos judiciais da Alemanha de
Hitler e o “partido stalinista” na velha URSS eram a “quarta ponta do
triângulo” nas suas respectivas épocas históricas.
Acompanhei partes do processo pela TV Justiça e não vi estes
argumentos serem brandidos pela defesa. São argumentos que partiriam “da
política para o Direito”, ou seja, os réus fariam a sua defesa a partir da
política para apresentar os seus argumentos de direito, com a convicção já
formada de que o seu julgamento seria decidido politicamente, como o foi.
Talvez os argumentos a que me refiro tenham sido apresentados
pela defesa, mas convém repeti-los (se o foram), pois o tema condensa duas
questões chaves da democracia contemporânea: o direito à livre formação da
opinião e o poder da “grande mídia”, para moldar uma democracia, segundo os
interesses que ela representa no cenário nacional.
O ponto de partida valorativo que formou o convencimento
majoritário na Suprema Corte foi político, mas a sua fundamentação abrigou-se,
obviamente, num discurso jurídico coerente. Mas este discurso de coerência já
foi moldado para dar curso à tomada decisão, eminentemente política, de
condenar os réus. Para a crítica adequada da sentença, no entanto, o caminho
deve ser inverso: deve-se partir de argumentos jurídicos internos ao que deve
ser -no Estado Democrático de Direito- um processo judicial penal dentro do
sistema de garantias constitucionais, como fez a nota do PT, para chegar à
crítica política da sentença judicial, que representou um juízo “total” sobre o
PT e também sobre os governos do Presidente Lula.
Quero asseverar, ainda, que a decisão do Supremo que
interpretou a Lei da Anistia e reconheceu o seu alcance para impedir o
processamento de assassinos, torturadores e estupradores -criminosos comuns,
portanto- a serviço da ditadura militar (como decisão política para uma
“transição generosa e negociada”) foi muito mais grave para o futuro do país,
do que os resultados da Ação Penal 470.
Naquela oportunidade ocorreu também um julgamento
predominantemente político e a reação dos partidos de esquerda à decisão do
Supremo, incluindo do próprio PT, esteve à beira da indigência. À distância
temporal dos fatos históricos, por mais relevantes que sejam, tornam-se menos
dramáticos. Quando eles se repetem, porém, no seu conteúdo mais íntimo, –ou
seja, um novo julgamento fundamentalmente político num processo penal
importante- é necessário unificar certos episódios históricos para darmos
coerência ao discurso democrático.
O episódio atual tem uma carga mais dramática, porque a
própria movimentação da mídia exigindo a condenação dos réus, tornou os ataques
ao PT como conjunto e aos governos do Presidente Lula, uma questão do
cotidiano, que abalou moralmente milhões de pessoas que nos admiram e defendem
nossos projetos para o país. O julgamento que envolvia a Lei de Anistia
reportava-se a fatos que, para a maioria, pareciam longínquos e não envolviam
diretamente os principais dirigentes políticos que estavam na cena pública.
Lamentavelmente aquela decisão do Supremo foi subvalorizada pelos democratas de
todas as extrações ideológicas do país, que não se deram conta (ou não viram
por conveniência) que a cultura jurídica em formação sufocava a evolução democrática
das instituições.
Pouquíssimos registravam na sua agenda a questão do
julgamento e eventual punição dos torturadores como questão importante para o
país e para os seus mandatos parlamentares. Mas a sombra da Teoria do Domínio
Funcional dos Fatos começou ali. Só que começou ao inverso: para punir os
torturadores, temeu a maioria do Supremo que o “domínio funcional dos fatos”
levasse ao encadeamento de uma linha de responsabilidades, que poderia parecer
provocação aos militares da época, responsáveis diretos pelos laços de comando
do regime. No processo atual, a cadeia de comando e do “domínio dos fatos”,
reconhecidamente não provados -meramente presumidos- promoveu penas indevidas
ou, no mínimo, desproporcionais para a maioria dos réus: um processo devido e
legal com um resultado manifestamente injusto.
A agenda da reforma política com a valorização dos partidos,
a consagração das alianças verticais e a proibição do financiamento privado das
campanhas, combinada com a democratização dos meios de comunicação, são as
tarefas do próximo período. Consagrar o direito das comunidades formarem suas
opiniões num contraditório livre e sem censura -tanto do poder econômico como
do próprio estado- é o pré-requisito de um modelo autenticamente democrático de
um Estado de Direito contemporâneo. Se isso não ocorrer à médio prazo a “quarta
ponta do triângulo”, que dominou nesta ação penal, pode dominar a política e o
Estado como um todo. E aí todos, sempre, seremos réus ideológicos, como diria
Drummond, de um mundo caduco.
(*) Governador do Rio
Grande do Sul
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