O ex-secretário Nacional de Justiça diz que o número de
presos por tráfico duplicou porque usuários vão para a cadeia e fala da
legalização da maconha aprovada em dois Estados americanos
por Natália Martino
DOIS PESOS
“No Brasil, a pessoa surpreendida com droga é considerada
traficante, se for pobre, e usuária, se for rica”, diz ele
O ex-secretário Nacional de Justiça Pedro Abramovay é um dos
principais nomes da sociedade civil na defesa da descriminalização do uso de
drogas. Ele esteve à frente da elaboração de um anteprojeto de lei com esse
teor que foi entregue em agosto à Câmara dos Deputados com a assinatura de mais
de 120 mil pessoas. Professor da disciplina violência e crimes urbanos na Faculdade
de Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV), também coordena o site Banco de
Injustiças, no qual registra histórias de usuários enquadrados como traficantes
por causa da atual Lei de Drogas, que ele acredita ser falha na definição dos
crimes de tráfico e uso de entorpecentes. Abramovay foi um dos coordenadores da
Campanha do Desarmamento e trabalhou na regulamentação do Sistema Penitenciário
Federal quando era assessor especial do então ministro da Justiça Márcio Thomaz
Bastos, no governo Lula.
Istoé - O que a legalização da maconha, que acaba de ser
aprovada em referendo em dois Estados americanos, representa para a política
mundial sobre drogas?
Pedro Abramovay - É um marco importantíssimo, principalmente
se o governo federal não interferir nessas decisões estaduais. Os Estados
Unidos sempre se comportaram como polícia nas convenções internacionais sobre o
assunto e, de repente, dois Estados dentro dessa nação que se coloca como
guardiã da “guerra contra as drogas” legalizam a maconha. No mínimo, eles perdem
a legitimidade para questionar propostas de mudanças que tendem a tirar o
problema da alçada exclusiva do direito penal. Abrirá espaço para discussões.
Se a estratégia da legalização será ou não positiva, teremos de avaliar com o
tempo.
Istoé - Legalizá-la em alguns Estados não pode gerar um
turismo de drogas no país?
Pedro Abramovay - Depende da maneira como isso será feito. É
importante lembrar que legalizar implica colocar regras, regular a venda,
definir idades, impostos, locais de venda. Isso em um campo no qual, na
prática, não existem regras há muito tempo. São grandes as chances de um
adolescente ter mais dificuldades para comprar maconha em um Estado onde a
droga é legalizada – e, portanto, os esforços de controle sobre ela são
organizados – do que em outro onde o comércio é todo ilegal.
Istoé - O que pensa da medida tomada pelo Uruguai, que
legalizou o uso da maconha, mas seu consumo será controlado pelo Estado?
Pedro Abramovay - Isso nunca foi tentado no mundo. O Uruguai
assumiu uma posição de ousadia para tentar enfrentar o problema. Para nós
brasileiros é fundamental acompanhar o que está acontecendo lá sem colorações
ideológicas. Se funcionar, a gente tem que se despir dos preconceitos e
discutir seriamente se essa é ou não uma alternativa viável para o Brasil.
Istoé - Qual a importância de ex-presidentes como Fernando
Henrique Cardoso (Brasil), Bill Clinton (EUA) e César Gavíria (Colômbia)
defenderem a legalização da maconha?
Pedro Abramovay - É enorme, principalmente porque influencia
a mídia. Há dois ou três anos era tabu debater o tema, quem tentava dizer algo
era logo tachado de maconheiro. Quando esses ex-presidentes resolveram falar do
assunto, chegaram mostrando estudos, pesquisas. Os argumentos já existiam, mas
não eram ouvidos. Eles poderiam ter feito isso quando estavam no poder, mas
antes tarde do que nunca. Abriram espaço para que atuais presidentes
defendessem na ONU mudanças nas políticas de drogas em direção à
descriminalização e à legalização. O Juan Manuel Santos, da Colômbia, o Otto
Pérez Molina, da Guatemala, e o José Alberto Mujica, do Uruguai, fizeram essa
defesa na ONU.
Istoé - A descriminalização total não poderia aumentar o
consumo?
Pedro Abramovay - Recentemente foi divulgada uma pesquisa na
Inglaterra que analisa 21 países que descriminalizaram o uso de drogas. Em
nenhum deles houve aumento do consumo.
Istoé - Há propostas em debate no Congresso Nacional para
mudar a Lei de Drogas, que aumentou as penas para o tráfico e acabou com a
prisão de usuários. Isso é positivo?
Pedro Abramovay - É preciso uma definição clara sobre quem é
usuário e quem é traficante. A lei atual diz que o juiz vai avaliar a partir
das circunstâncias sociais para dizer se a droga era para consumo pessoal ou
para venda. O que acontece é que, sem critério, uma grande massa nessa
fronteira acaba sendo presa como traficante, e colocar essas pessoas na prisão
significa entregá-las de bandeja para o crime organizado, que será sua única
opção quando saírem da cadeia. Para se ter a dimensão disso, desde que a lei
foi aprovada, em 2006, o número de presos por tráfico dobrou. Saímos de 62 mil
para 125 mil presos em 2011.
Istoé - Esse número não é uma vitória no combate ao tráfico?
Pedro Abramovay - Resolver o problema das drogas significa
diminuir o consumo e a violência relacionada ao tráfico. Nada disso está
acontecendo, o que indica que estamos prendendo as pessoas erradas. Mais de 60%
dos presos por tráfico carregavam pequenas quantidades, eram réus primários e
nunca tinham se envolvido em outros crimes. Não é atrás dessas pessoas que a
polícia tem que ir, mas do crime organizado. Para isso, é fundamental que se
discutam critérios mais claros para separar quem é usuário de quem é
traficante.
Istoé - Que tipos de critérios?
Pedro Abramovay - Vários países adotam a quantidade, não como
único critério, mas como parâmetro fundamental para não gerar a situação, que
acontece muito no Brasil, na qual a pessoa surpreendida com droga é considerada
traficante, se for pobre, e usuária, se for rica. Portugal, República Tcheca,
México, Inglaterra, alguns estados australianos, todos esses lugares optaram
por esse caminho e têm alcançado resultados melhores que o Brasil, onde a
decisão é do policial.
Istoé - Fixar quantidades não facilitaria, para os traficantes,
a distribuição de drogas, pois usariam vários “aviõezinhos” que nunca seriam
presos?
Pedro Abramovay - A polícia não tem mesmo que ir atrás dos
“aviõezinhos”, isso não faz nem cócegas no negócio das drogas. A energia tem
que ser revertida para o enfrentamento ao crime organizado e à violência.
Istoé - Se no Brasil está nas mãos dos policiais a decisão,
como eles têm feito a distinção entre traficantes e usuários?
Pedro Abramovay - O primeiro critério mais evidente é o de
classe. Quando a pessoa mora na favela, o endereço dela é, muitas vezes, sua
condenação. Existem decisões judiciais que falam que a pessoa foi flagrada com
droga e mora em um lugar dominado pelo tráfico, portanto é traficante. Outras
tentam estabelecer critérios mais concretos. Por exemplo, vão dizer que se a
pessoa carrega drogas divididas em papelotes, é traficante. Mas, se a droga é
vendida em papelotes, ela também é comprada assim.
Istoé - A lei brasileira permite penas alternativas. O
Judiciário não reverte os equívocos policiais com elas?
Pedro Abramovay - Muito raramente. O poder Judiciário de
primeira instância é muito mais duro nas decisões ligadas ao tráfico do que em
outros temas, desrespeitando muitas vezes até decisões do Supremo Tribunal
Federal. Por exemplo, a lei de 2006 inicialmente negava a liberdade provisória
em acusações de tráfico e o STF considerou a norma inconstitucional, pois ia
contra o princípio da presunção de inocência. Apesar disso, a pessoa acusada de
tráfico quase sempre espera o julgamento na prisão e isso já destrói sua vida –
ela perde o emprego e fica tachada como traficante. Sem contar que as pesquisas
mostram que, quase sempre, os únicos depoimentos levados em conta para a
condenação por tráfico são os dos PMs que prenderam o acusado.
Istoé - Mais do que falha na lei, isso não evidencia
problemas no Judiciário?
Pedro Abramovay - Quando temos um critério tão subjetivo fica
muito difícil para todo o sistema. Tem o policial contando uma história e a
família dizendo outra coisa. Em quem acreditar? Todo esse processo é produto da
falta de critérios da lei. O Judiciário quer dar respostas à sociedade e prende
pessoas que têm problemas com drogas mas nunca cometeram crimes. Colocar essas
pessoas na cadeia em vez de tratá-las é uma resposta errada e ineficiente. O
problema de drogas deveria ser tratado não como uma questão criminal, mas de
saúde. O usuário precisa ser abordado por assistentes sociais, não pela
polícia.
Istoé - O nosso sistema de saúde está preparado para essa
demanda?
Pedro Abramovay - O Estado já tem a obrigação de tratar o
problema de dependência de drogas, a demanda existe, não podemos pensar nisso
como um custo novo. A estrutura que temos hoje não está preparada, mas mudar as
leis pode provocar o Estado a deixar de esconder o problema e passar a
enfrentá-lo.
Istoé - É possível erradicar o trafico?
Pedro Abramovay - É impossível, mas temos de reduzir o
consumo de drogas e a violência do tráfico, e isso já sabemos como. Temos que
admitir que a criminalização não funcionou. A única droga que teve seu consumo
diminuído com políticas públicas foi o tabaco, que é lícito. A regulamentação
parece ter funcionado melhor do que a repressão.
Istoé - Como avalia o
plano antidrogas do governo federal?
Pedro Abramovay - O Plano de Enfrentamento ao Crack e outras
Drogas tem um cardápio de soluções do qual Estados e municípios escolhem a
política a ser adotada. O problema é que dentro desse cardápio tem coisas
positivas e outras que podem ter efeitos muito negativos. E não há nada que
induza a escolha das opções mais eficientes. Por exemplo, tem uma quantidade
importante de dinheiro para consultórios de rua, que funcionam muito bem. Mas
tem muito dinheiro para internação, o que pode ser muito perigoso. Em alguns
casos, ela é necessária, mas essa não pode ser a principal resposta de
tratamento. A internação, para os mais otimistas, tem uma taxa de sucesso de
10%. Não podemos focar todos os nossos esforços em um tratamento que tem uma
taxa de sucesso tão baixa.
Istoé - Por que essas taxas são
baixas?
Pedro Abramovay - Não basta desintoxicar a pessoa para, como
em um passe de mágica, resolver a questão. É algo muito mais complexo e está
ligado à relação do usuário com o meio em que ele vive. Se ele está
desempregado, não tem apoio da família e seus amigos têm no uso de droga sua
principal atividade, as chances de ele se tornar um usuário problemático são
enormes. Se ele é internado, desintoxicado e devolvido para o mesmo meio que
gerou a dependência, ele vai voltar a usar drogas. A única maneira de acabar
com a dependência é trabalhar no meio em que ela está.
Istoé - E como isso pode ser feito?
Pedro Abramovay - Nos consultórios de rua, por exemplo, onde
a pessoa pode ir, receber terapia, desintoxicação e ser ajudada, não
artificialmente fora do mundo em que ela vive, mas dentro desse universo para
que ela possa se libertar das razões que a levaram à dependência. A assistente
social pensa maneiras de ajudar o usuário a se reintegrar na sociedade de forma
produtiva. Não funciona de uma hora para outra. É um problema no qual não há
tiro de canhão. O tratamento é demorado, difícil, mas tem muito mais chances de
sucesso do que a internação. Já existem experiências positivas nesse sentido no
Brasil, como em São Bernardo do Campo, que tem investido muito no tratamento
ambulatorial e no trabalho de assistentes sociais.
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