Em entrevista, Paula Freire Santoro analisa a perda da
Cinelândia Paulistana e defende espaços urbanos democráticos e políticas
urbanas articuladas com as de cultura
Por Danillo Oliveira
No centro de São Paulo, o fechamento dos cinemas de rua da
chamada Cinelândia Paulistana reflete a perda da relação dos moradores da
cidade com seu espaço público. A arquiteta e urbanista Paula Freire Santoro
pensou essa realidade, estudando a relação das antigas salas de cinema com o
espaço urbano. Doutora pela FAUUSP, Paula também trabalha como assistente
técnica do Ministério Público do Estado de São Paulo. Em entrevista ao
SPressoSP, ela alerta para a necessidade de políticas culturais de estímulo aos
cinemas de rua. Segundo a pesquisadora, a revisão do Plano Diretor de São Paulo
prometida para o ano que vem, 2013, vai trazer a questão sobre que cidade
queremos. Será uma boa oportunidade para debater propostas de incentivos
urbanísticos para espaços culturais. “As políticas urbanas têm de ser
articuladas com políticas de cultura, não dá para ter uma sem ter a outra, pois
elas são uma só”, diz. Confira abaixo.
SPressoSP – Qual é o
impacto do fechamento dos cinemas de rua da Cinelândia para o espaço urbano de
São Paulo, especialmente a região central?
Paula Freire Santoro - A configuração da Cinelândia
Paulistana, vivida na região central de São Paulo entre o final dos anos 30 até
o final dos 50, foi, na minha opinião, o momento ápice da relação entre a sala
de cinema e o espaço urbano em que está inserida. Atualmente, há um descompasso
nesta relação, o cinema fica dentro do shopping, cuja relação com a rua, com o
espaço urbano é nula. Houve um desligamento. Hoje, praticamente predominam
espaços privatizados e com controle de acesso, na grande maioria dos cinemas.
No momento da Cinelândia, foi possível articular o urbanismo
de Prestes Maia, onde havia um projeto de cidade cosmopolita comprometida com a
imagem de cidade verticalizada, vivida por automóveis, veloz. O Plano de
Avenidas acontecia, na prática, através da abertura de novas avenidas
acompanhadas de uma legislação que propunha uma volumetria para os edifícios no
seu entorno.
O cinema, e outros programas como restaurantes, bares, etc.,
seriam os provedores de significados urbanos para estas novas avenidas. O Plano
tinha Av. São João e São Luís como radiais e a Av. Ipiranga como parte do
primeiro anel proposto, para elas foi proposto um modelo urbanístico com
padrões rígidos e foram dados incentivos aos que dessem usos públicos aos
térreos edificados. Os cinemas concentraram-se nestas novas avenidas, alinhados
nesta vias, e depois através da abertura das galerias internas aos edifícios,
formando uma agitação urbana, conhecida como Cinelândia Paulistana. Ainda era
um momento onde se propunha um projeto estético para as cidades, onde o cinema
funcionava quase como equipamento “âncora” da região, promovendo agitação
urbana e dando vida ao projeto de cidade cosmopolita.
Se a Cinelândia é um exemplo da articulação entre edificado e
espaço urbano para desenhar a cidade cosmopolita desejada (e vivida!), o
fechamento dos cinemas é sintomático. Hoje quem vai aos cinemas prioriza um
projeto de cidade calcado na privatização dos espaços, o enclausuramento entre
muros para buscar “segurança”, e ainda um lugar onde haja estacionamento, pois
o deslocamento se dá essencialmente por automóvel, nos congestionamentos. Este
novo modo de vida colabora para morte dos espaços públicos que misturam classes
sociais, raças, crenças e com isso, colabora para a morte dos cinemas de rua,
que ao serem fechados diminuem a agitação destes espaços, alimentando esta
morte.
SPressoSP - O resgate
desses espaços culturais poderia também revitalizar o centro?
Paula Freire Santoro - O Centro tem vida! De que vidas
estamos falando? Esta é uma brincadeira que merece um resgate histórico. Eu
mostro no meu mestrado que a Cinelândia Paulistana foi criada ao mesmo tempo
que a metrópole paulistana passou a ter o maior número de salas, o maior número
de assentos de cinema, e cinemas espalhados por toda a cidade, muitos cinemas
de bairro, cinemas na periferia, nas favelas… O cinema era uma atividade
habitual, cotidiana. Se houve uma expansão neste período, também é possível
dizer que houve uma diferenciação destes espaços. Nesta diferenciação, a
Cinelândia Paulistana ocupava o lugar das elites, das salas lançadoras de
filmes, dos eventos cinematográficos, das novas tecnologias sonoras, acústicas.
Era um espaço elitizado, no Centro, onde a classe média morava e de onde ela
saiu. Mas se a classe média migrou do Centro nos anos 1960 em diante, isso não
significa que o lugar ficou sem vida, mas sim que ficou monofuncional, há pouca
habitação e há uma forte resistência em transformar o espaço reconhecendo a população
que hoje o vive e o ocupa.
O dilema (ou seria a polêmica?) sobre o destino do Centro de
São Paulo e da retomada destes equipamentos no Centro é: eles são capazes de
fazer reviver o modo de vida anterior, calcado no uso de espaços públicos, na
rua como espaço de encontro, de tolerância? Certamente que não será apenas com
a abertura de equipamentos culturais que isto vai se dar e certamente não será
com projetos de demolição tipo “terra-arrasada” com a construção de mais
espaços privatizados, que a vida nas ruas vai voltar.
Basta ver a polêmica em torno do Cine Belas Artes… Para o
mercado (dono), o imóvel vale mais e deve ser alugado para outros usos, mesmo
processo que foi vivido na Cinelândia pós anos 1960, onde os cinemas viraram
lojas de roupa, grandes magazines, igrejas, estacionamentos. Ou mesmo
recentemente, por exemplo, a Livraria Cultura no Conjunto Nacional ocupa o que
era um cinema. Mas o importante, o que eu acho importante e queria deixar dito
aqui, é que não queremos apenas a preservação física da sala, muitas vezes elas
nem têm relevância arquitetônica ou estética. Queríamos preservar o uso e, no
bojo desta preservação, garantir a permanência de um modo de vida urbano: que
possamos andar na rua para ir ao cinema, pegar uns pingos de chuva, vento na
cara, ir de bicicleta ou transporte público e voltar para casa sempre
acompanhado da agitação da vida urbana, seguros. Estes espaços vão sobreviver à
ditadura do mercado se nossa vivência urbana for feita de opções conscientes,
se formos a estes cinemas, não a despeito das melhores poltronas ou sons
deixando nossos recursos para os cinemas de shoppings, mas equilibrando nosso
investimento priorizando deixar nossos recursos para os que promovem a cidade
que queremos. Consumo consciente é importante. Muito revolucionário? Por que
fazemos isso em Nova York, Paris e não podemos fazer aqui?
SPressoSP - Como o poder público (municipal e estadual)
pode incentivar a volta desses espaços culturais?
Paula Freire Santoro - Logicamente, que é possível que políticas
incentivem a volta destes espaços culturais e, inclusive, algumas delas já
existem. O vereador Nabil Bonduki propôs uma lei municipal interessante que dá
descontos de IPTU aos cinemas de rua. Parece que o Senado discutia uma lei de
incentivo à construção de salas de cinema, com isenção de outros impostos. Mas
podemos ir muito além disso.
Em termos urbanísticos, acho que a revisão do Plano Diretor
de São Paulo prometida para o ano que vem, 2013, vai trazer a questão: que
cidade queremos? Propostas arrojadas podem e devem ser discutidas. Como ideias
soltas no ventilador: poderíamos propor incentivos urbanísticos aos que em seus
empreendimentos proponham cinemas no térreo, “a la Prestes Maia”, permitindo
maiores coeficientes construtivos, diferentes recuos das edificações,
possibilitando que não sejam ofertadas vagas de veículos agindo na contra-mão
da concepção atual de acessibilidade centrada no carro. Poderíamos restringir o
uso de alguns imóveis ao uso com cinema, como se fosse uma reserva de uso que
proteja os usos menos rentáveis da ditadura do “melhor e maior uso” imposta
pelo mercado, como se deu no caso do Belas Artes. Fazemos isso para habitação,
será que é possível fazer para o uso com exibição de filmes? Poderíamos propor
uma política de periferização do cinema, dando estímulos para a atividade e
para imóveis com estes usos, garantindo que sejam espaço de manifestação da
cultura da periferia. Deveríamos lutar pela garantia de espaços urbanos
democráticos, pela ampliação de espaços urbanos confortáveis e seguros, justos
e belos. Deveríamos nos manifestar contra a ditadura dos edifícios fechados em
si mesmo, dos quais só conseguimos fazer o contorno. Precisamos ter boas
condições de mobilidade para podermos ir ao cinema com frequência, para que possa
existir lazer, sem que estas horas sejam gastas no ir-e-vir. Dá para fazer
muita coisa.
E as políticas urbanas têm de ser articuladas com políticas
de cultura, não dá para ter uma sem ter a outra, pois elas são uma só. Temos
que reviver nossa história e nossa cultura, fazendo emergir o cinema marginal,
a pornochanchada, a diversidade da nossa cinematografia e dos espaços de
exibição destes. Precisamos apresentar aos paulistanos quem somos, nossa
história, eles nem sequer sabem que tivemos uma Cinelândia Paulistana! E muitas
vezes não têm chance de saber sequer se querem conhecer.
Enfim, não basta pintar os edifícios de cinema e fazer o
evento de inauguração, é preciso sustentar uma política urbano-cultural, onde
estes têm o seu espaço.
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