domingo, 18 de novembro de 2012

Para urbanista, São Paulo vive ditadura dos edifícios fechados em si mesmo

Em entrevista, Paula Freire Santoro analisa a perda da Cinelândia Paulistana e defende espaços urbanos democráticos e políticas urbanas articuladas com as de cultura

Por Danillo Oliveira

No centro de São Paulo, o fechamento dos cinemas de rua da chamada Cinelândia Paulistana reflete a perda da relação dos moradores da cidade com seu espaço público. A arquiteta e urbanista Paula Freire Santoro pensou essa realidade, estudando a relação das antigas salas de cinema com o espaço urbano. Doutora pela FAUUSP, Paula também trabalha como assistente técnica do Ministério Público do Estado de São Paulo. Em entrevista ao SPressoSP, ela alerta para a necessidade de políticas culturais de estímulo aos cinemas de rua. Segundo a pesquisadora, a revisão do Plano Diretor de São Paulo prometida para o ano que vem, 2013, vai trazer a questão sobre que cidade queremos. Será uma boa oportunidade para debater propostas de incentivos urbanísticos para espaços culturais. “As políticas urbanas têm de ser articuladas com políticas de cultura, não dá para ter uma sem ter a outra, pois elas são uma só”, diz. Confira abaixo.

SPressoSP – Qual é o impacto do fechamento dos cinemas de rua da Cinelândia para o espaço urbano de São Paulo, especialmente a região central?

Paula Freire Santoro - A configuração da Cinelândia Paulistana, vivida na região central de São Paulo entre o final dos anos 30 até o final dos 50, foi, na minha opinião, o momento ápice da relação entre a sala de cinema e o espaço urbano em que está inserida. Atualmente, há um descompasso nesta relação, o cinema fica dentro do shopping, cuja relação com a rua, com o espaço urbano é nula. Houve um desligamento. Hoje, praticamente predominam espaços privatizados e com controle de acesso, na grande maioria dos cinemas.

No momento da Cinelândia, foi possível articular o urbanismo de Prestes Maia, onde havia um projeto de cidade cosmopolita comprometida com a imagem de cidade verticalizada, vivida por automóveis, veloz. O Plano de Avenidas acontecia, na prática, através da abertura de novas avenidas acompanhadas de uma legislação que propunha uma volumetria para os edifícios no seu entorno.

O cinema, e outros programas como restaurantes, bares, etc., seriam os provedores de significados urbanos para estas novas avenidas. O Plano tinha Av. São João e São Luís como radiais e a Av. Ipiranga como parte do primeiro anel proposto, para elas foi proposto um modelo urbanístico com padrões rígidos e foram dados incentivos aos que dessem usos públicos aos térreos edificados. Os cinemas concentraram-se nestas novas avenidas, alinhados nesta vias, e depois através da abertura das galerias internas aos edifícios, formando uma agitação urbana, conhecida como Cinelândia Paulistana. Ainda era um momento onde se propunha um projeto estético para as cidades, onde o cinema funcionava quase como equipamento “âncora” da região, promovendo agitação urbana e dando vida ao projeto de cidade cosmopolita.

Se a Cinelândia é um exemplo da articulação entre edificado e espaço urbano para desenhar a cidade cosmopolita desejada (e vivida!), o fechamento dos cinemas é sintomático. Hoje quem vai aos cinemas prioriza um projeto de cidade calcado na privatização dos espaços, o enclausuramento entre muros para buscar “segurança”, e ainda um lugar onde haja estacionamento, pois o deslocamento se dá essencialmente por automóvel, nos congestionamentos. Este novo modo de vida colabora para morte dos espaços públicos que misturam classes sociais, raças, crenças e com isso, colabora para a morte dos cinemas de rua, que ao serem fechados diminuem a agitação destes espaços, alimentando esta morte.

SPressoSP - O resgate desses espaços culturais poderia também revitalizar o centro?

Paula Freire Santoro - O Centro tem vida! De que vidas estamos falando? Esta é uma brincadeira que merece um resgate histórico. Eu mostro no meu mestrado que a Cinelândia Paulistana foi criada ao mesmo tempo que a metrópole paulistana passou a ter o maior número de salas, o maior número de assentos de cinema, e cinemas espalhados por toda a cidade, muitos cinemas de bairro, cinemas na periferia, nas favelas… O cinema era uma atividade habitual, cotidiana. Se houve uma expansão neste período, também é possível dizer que houve uma diferenciação destes espaços. Nesta diferenciação, a Cinelândia Paulistana ocupava o lugar das elites, das salas lançadoras de filmes, dos eventos cinematográficos, das novas tecnologias sonoras, acústicas. Era um espaço elitizado, no Centro, onde a classe média morava e de onde ela saiu. Mas se a classe média migrou do Centro nos anos 1960 em diante, isso não significa que o lugar ficou sem vida, mas sim que ficou monofuncional, há pouca habitação e há uma forte resistência em transformar o espaço reconhecendo a população que hoje o vive e o ocupa.

O dilema (ou seria a polêmica?) sobre o destino do Centro de São Paulo e da retomada destes equipamentos no Centro é: eles são capazes de fazer reviver o modo de vida anterior, calcado no uso de espaços públicos, na rua como espaço de encontro, de tolerância? Certamente que não será apenas com a abertura de equipamentos culturais que isto vai se dar e certamente não será com projetos de demolição tipo “terra-arrasada” com a construção de mais espaços privatizados, que a vida nas ruas vai voltar.

Basta ver a polêmica em torno do Cine Belas Artes… Para o mercado (dono), o imóvel vale mais e deve ser alugado para outros usos, mesmo processo que foi vivido na Cinelândia pós anos 1960, onde os cinemas viraram lojas de roupa, grandes magazines, igrejas, estacionamentos. Ou mesmo recentemente, por exemplo, a Livraria Cultura no Conjunto Nacional ocupa o que era um cinema. Mas o importante, o que eu acho importante e queria deixar dito aqui, é que não queremos apenas a preservação física da sala, muitas vezes elas nem têm relevância arquitetônica ou estética. Queríamos preservar o uso e, no bojo desta preservação, garantir a permanência de um modo de vida urbano: que possamos andar na rua para ir ao cinema, pegar uns pingos de chuva, vento na cara, ir de bicicleta ou transporte público e voltar para casa sempre acompanhado da agitação da vida urbana, seguros. Estes espaços vão sobreviver à ditadura do mercado se nossa vivência urbana for feita de opções conscientes, se formos a estes cinemas, não a despeito das melhores poltronas ou sons deixando nossos recursos para os cinemas de shoppings, mas equilibrando nosso investimento priorizando deixar nossos recursos para os que promovem a cidade que queremos. Consumo consciente é importante. Muito revolucionário? Por que fazemos isso em Nova York, Paris e não podemos fazer aqui?

SPressoSP -  Como o poder público (municipal e estadual) pode incentivar a volta desses espaços culturais?

Paula Freire Santoro - Logicamente, que é possível que políticas incentivem a volta destes espaços culturais e, inclusive, algumas delas já existem. O vereador Nabil Bonduki propôs uma lei municipal interessante que dá descontos de IPTU aos cinemas de rua. Parece que o Senado discutia uma lei de incentivo à construção de salas de cinema, com isenção de outros impostos. Mas podemos ir muito além disso.

Em termos urbanísticos, acho que a revisão do Plano Diretor de São Paulo prometida para o ano que vem, 2013, vai trazer a questão: que cidade queremos? Propostas arrojadas podem e devem ser discutidas. Como ideias soltas no ventilador: poderíamos propor incentivos urbanísticos aos que em seus empreendimentos proponham cinemas no térreo, “a la Prestes Maia”, permitindo maiores coeficientes construtivos, diferentes recuos das edificações, possibilitando que não sejam ofertadas vagas de veículos agindo na contra-mão da concepção atual de acessibilidade centrada no carro. Poderíamos restringir o uso de alguns imóveis ao uso com cinema, como se fosse uma reserva de uso que proteja os usos menos rentáveis da ditadura do “melhor e maior uso” imposta pelo mercado, como se deu no caso do Belas Artes. Fazemos isso para habitação, será que é possível fazer para o uso com exibição de filmes? Poderíamos propor uma política de periferização do cinema, dando estímulos para a atividade e para imóveis com estes usos, garantindo que sejam espaço de manifestação da cultura da periferia. Deveríamos lutar pela garantia de espaços urbanos democráticos, pela ampliação de espaços urbanos confortáveis e seguros, justos e belos. Deveríamos nos manifestar contra a ditadura dos edifícios fechados em si mesmo, dos quais só conseguimos fazer o contorno. Precisamos ter boas condições de mobilidade para podermos ir ao cinema com frequência, para que possa existir lazer, sem que estas horas sejam gastas no ir-e-vir. Dá para fazer muita coisa.

E as políticas urbanas têm de ser articuladas com políticas de cultura, não dá para ter uma sem ter a outra, pois elas são uma só. Temos que reviver nossa história e nossa cultura, fazendo emergir o cinema marginal, a pornochanchada, a diversidade da nossa cinematografia e dos espaços de exibição destes. Precisamos apresentar aos paulistanos quem somos, nossa história, eles nem sequer sabem que tivemos uma Cinelândia Paulistana! E muitas vezes não têm chance de saber sequer se querem conhecer.

Enfim, não basta pintar os edifícios de cinema e fazer o evento de inauguração, é preciso sustentar uma política urbano-cultural, onde estes têm o seu espaço.

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