O dicionário define
maniqueísmo, em seu sentido extensivo, como uma “doutrina que se funda
em princípios opostos, bem e mal”. Suas origens remontam a uma concepção
religiosa surgida na Pérsia e disseminada pelo mundo, mas não é minha intenção
aqui ir além dessa consideração histórica. Importa-me, nesta oportunidade,
perceber que tal visão – presente como fundamental em praticamente todas as
religiões - espalha-se para outros
domínios, sendo exaustivamente
encontradas nas narrativas mais antigas e nas contemporâneas, nos dramas
de então e de agora, em um rol de dicotomias de tipo mais que variado. Pense,
por exemplo, na Cinderela e na madrasta má do conto infantil, no lobo e na
ovelha da fábula, no lado luminoso e no escuro da Força na Guerra das Estrelas.
Pense nas incontáveis histórias que envolvem os bons terráqueos e os terríveis
extraterrenos. Pense nos fundamentalismos maniqueístas espalhados pelo mundo,
no Oriente e no nosso Ocidente. Pense em
Carminha e Nina, se quiser... .
O problema é que, a partir dessa visão dualista, um lado
sempre se arvora como representativo ou
exemplificativo do Bem, reservando para o outro as características negativas,
tudo isso cercado de profunda radicalização absolutista.
Li em algum lugar – como exemplo dessa ótica enraizada desde
tenra idade nas nossas mentes e nos corações
– a história de um pai que, ao perguntar
à sua filha de 4 anos o que era o Bem, ouviu dela, com a honestidade que
cerca as palavras das crianças, a
resposta : “Ué, o Bem somos nós”...
O dia a dia nos apresenta no mundo de hoje diversos exemplos
dessa visão maniqueísta que parte de dois princípios antagônicos e
irredutíveis. No futebol, centenas de exemplos copiam o carioca Vasco x
Flamengo ou o gaúcho Grêmio x Internacional,
para ficarmos apenas em mínimos exemplos da realidade nacional. Como em outras
esferas, ouso dizer que em todas elas, o pensamento e as ações alheias são
desqualificadas como malignas, negativas, irreversivelmente dignas de repúdio,
e as nossas ideias ,atitudes e gostos, mesmo estranháveis, têm sempre uma
justificativa positiva...
Vendo a vida e o mundo por um único e inarredável prisma,
temos profunda dificuldade em reconhecer as virtudes do Outro, ou a existência
de uma zona cinzenta onde a razão e a verdade se diluem através das
contribuições de ambos os lados. Na História do mundo, é recorrente esse
posicionamento de negar validade aos valores alheios, invariavelmente “errados”
diante dos nossos “acertos”. Os “bárbaros” de todo gênero, os arrogantes
romanos conquistadores, os fanáticos
cruzados da Idade Média, os brutais
colonizadores espanhóis, os
ingênuos soldados americanos de muitas
invasões, e os iludidos soldados nazistas alemães, por exemplo, provavelmente se enxergaram como agentes do
Bem...
Por tudo isso, o raciocínio maniqueísta – enraizado na
maioria das cabeças – é , para muitos espertos,
um instrumento de manipulação de pessoas incapazes de distinguir , entre todas as cores e seus matizes, algo
além do preto e do branco. Estigmatizando os outros como exemplares do Mal,
pretensiosos representantes do Bem já levaram massas humanas à desgraça, ao
sofrimento, quando não à destruição.
A política é um campo fértil para o germinar do maniqueísmo e
todos devemos estar sempre atentos diante desse perigoso inimigo do homem. Não
me excluo dessa atenção e, embora
procure sempre ter cuidado ao despir minhas posições de sectarismos ou
reducionismos, talvez nem sempre o consiga, no afã de defender uma causa que
julgo justa ou de criticar posturas que considero indignas.
Esses comentários vêm a propósito da indisfarçável intenção,
por parte de alguns setores da mídia nacional, de estigmatizar todo um segmento
político-ideológico, em uma falsa generalização a partir de erros cometidos por
alguns. São pessoas e organizações que usam da sua influência e de um
posicionamento nem sempre meritório que a democracia ironicamente lhes confere para demonizar todo um projeto
que busca, através de programas sociais, mitigar (na impossibilidade de extinguir
) as profundas desigualdades sociais que recheiam a nossa realidade.
Para essa turma, a corrupção
foi introduzida no país pelos segmentos de esquerda que foram levados ao
poder pela “equivocada” eleição popular.
Para eles, a corrupção jamais existiu antes entre nós, e seguramente não
existirá no futuro, desde que consumada a derrubada do Mal encastelado no atual
poder, se possível por um golpe sutil que se vá construindo vagarosamente. Para esses hipócritas do Bem, antes não se
compraram votos de congressistas para permitir reeleição de Presidente, não se
escreveu a triste história da Privataria
Tucana, e, mais recentemente, não jorraram as pérfidas águas de uma
cachoeira de malfeitos da quadrilha goiana, não existiu um cada vez mais
sepultado mensalão mineiro, Arruda e Demóstenes foram seres de ficção,
provavelmente inventados pelo Mal.
Estamos no limiar de momentos sérios por que passarão a
cidadania e a democracia brasileiras. Há indícios de um conluio (uma
quadrilha?) para provocar a instabilidade social e, como objetivo final, o descrédito do Governo, através de uma
posição fundamentalista de causar inveja às seitas mais radicais. Para nos
convencer de que esse perigo não existe, é muito simples: queremos um poder
judiciário, um Supremo, que nos mostre, com ações tão contundentes quanto as de
agora, que não se encontra a serviço desse tal maniqueísmo, enxergando as
falcatruas, fraudes e corrupções onde quer que estejam, principalmente no seio
de falsos representantes do Bem.
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