Pesquisador e professor de antropologia do Museu Nacional
(UFRJ) e sócio fundador do Instituto Socioambiental (ISA), Viveiros insiste em
que só pela educação avançaremos rumo a uma sociedade mais democrática. “A
falta de educação é o nó cego responsável por esse conservadorismo reacionário
de boa parte da população”, diz ele. Vai além: arrisca dizer que haveria uma
conspiração para impedir os brasileiros de ter acesso a educação ou conexão de à
internet de qualidade – conquistas que permitiriam ampliar o acesso a produtos
e bens culturais.
Viveiros insiste em políticas que reduzam a desigualdade e
favoreçam novos padrões de consumo. “É um absurdo afirmar que produzir mais
carros é sinal de pujança, utilizar esse dado como indicador de melhoria
econômica.”
Para o antropólogo, a
mobilização pelas causas ambientais é importante, mas ainda está longe de
corresponder à gravidade do problema. É preciso ampliar o universo dos que se
preocupam, lembrar “que saneamento básico, dengue e lixo são problemas
ambientais”. Viveiros está alarmado: “as pessoas fingem não saber o que está
acontecendo, mas o fato é que temos que nos preparar para o pior”. O raciocínio
é semelhante ao de Fernando Meirelles, diretor de Ensaio sobre a Cegueira:
“Apenas cegos, cínicos ou oportunistas recusam-se a enxergar”.
Viveiros de Castro considera que as corporações não são
capazes de ir além do “capitalismo verde”, fingindo responsabilidade social e
ambiental. Os dois se alinham, contudo, na esperança depositada nas redes
sociais como canais de expressão, opinião, colaboração e mobilização.
“Não existe um rumo
Brasil”, alerta Viveiros de Castro, ao falar sobre a fratura que marca a
sociedade brasileira contrapondo as forças vivas do autoritarismo e do racismo
aos setores que buscam a inovação. “O Brasil é um país escravocrata, racista,
que não fez reforma agrária, e precisa fazê-la”, diz.
Qual é sua percepção
sobre a participação política do brasileiro?
Preferiria começar por uma desgeneralização: vejo a sociedade
brasileira como profundamente dividida no que concerne à sua visão do país e do
futuro. A ideia de que existe um Brasil, no sentido não-trivial das ideias de
unidade e de brasilidade, parece-me uma ilusão politicamente conveniente
(sobretudo para os dominantes) mas antropologicamente equivocada. Existem no
mínimo dois, e, a meu ver, bem mais Brasis. O conceito geopolítico de
Estado-nação unificado não é descritivo, mas prescritivo. Há fraturas profunda
na sociedade brasileira. Há setores da população com uma vocação conservadora
imensa; eles não integram necessariamente uma classe específica, embora as
chamadas “classes médias”, ascendentes ou descendentes, estejam bem
representadas ali. Grande parte da chamada sociedade brasileira — a maioria,
infelizmente, temo — se sentiria muito satisfeita sob um regime autoritário,
sobretudo se conduzido mediaticamente pela autoridade paternal de uma
personalidade forte. Mas isso é uma daquelas coisas que a minoria libertária
que existe no país, ou mesmo uma certa medioria “progressista”, prefere manter
envolta em um silêncio embaraçado. Repete-se a todo e a qualquer propósito que
o povo brasileiro é democrático, “cordial”, amante da liberdade, da igualdade e
da fraternidade – o que me parece uma ilusão muito perigosa. É assim que vejo a
“participação política do povo brasileiro”: fraturada, dividida, polarizada,
uma polarização que não está necessariamente em harmonia com as divisões
politicas oficiais (partidos etc.). O Brasil permanece uma sociedade
visceralmente escravocrata, renitentemente racista, e moralmente covarde.
Enquanto não acertarmos contas com esse inconsciente, não iremos “para a
frente”. Em outros momentos, é claro, soluços insurreicionais esporádicos, e
uma certa indiferença pragmática em relação aos poderes constituídos, que se
testemunha sobretudo entre os mais pobres, ou os mais alheios ao teatro montado
pelo andar de cima, inspiram modestas utopias e moderados otimismos por parte
daqueles que a historia colocou na confortável posição de “pensar o Brasil”.
Nós, em suma.
O que é preciso para
mudar isso?
Falar, resistir, insistir, olhar por cima do imediato – e,
evidentemente, educar. Mas não “educar o povo”, como se a elite fosse muito
educada e devêssemos (e pudéssemos) trazer o povo para um nível superior; mas
sim criar as condições para que o povo se eduque e acabe educando a elite, quem
sabe até livrando-se dela. A paisagem educacional do Brasil de hoje é a de uma
terra devastada, um deserto. E não vejo nenhuma iniciativa consistente para
tentar cultivar esse deserto. Pelo contrário: chego a ter pesadelos
conspiratórios de que não interessa ao projeto de poder em curso modificar
realmente a paisagem educacional do Brasil: domesticar a força de trabalho, se
é que é isso mesmo que se está sinceramente tentando (ou planejando), não é de
forma alguma a mesma coisa que educar.
Isto é só um pesadelo, decerto: não é assim, não pode ser
assim, espero que não seja assim. Mas fato é que não se vê uma iniciativa de
modificar a situação. Vê-se é a inauguração bombástica de dezenas de
universidades sem a mínima infra-estrutura física (para não falar de boas
bibliotecas, luxo quase impensável no Brasil), enquanto o ensino fundamental e
médio permanecem grotescamente inadequados, com seus professores recebendo uma
miséria, com as greves de docentes universitários reprimidas como se eles
fossem bandidos. A “falta” de instrução — que é uma forma muito particular e
perversa de instrução imposta de cima para baixo — é talvez o principal fator
responsável pelo conservadorismo reacionário de boa parte da sociedade
brasileira. Em suma, é urgente uma reforma radical na educação brasileira.
“A floresta e a
escola”, sonhava Oswald de Andrade. Infelizmente, parece que deixaremos de ter
uma e ainda não teremos a outra. Pois sem escola, aí é que não sobrará floresta
mesmo.
Por onde começaria a
reforma na educação?
Começaria por baixo, é lógico, no ensino fundamental – que
continua entregue às moscas. O ensino público teria de ter uma política unificada,
voltada para uma – com perdão da expressão – “revolução cultural”. Não adianta
redistribuir renda (ou melhor, aumentar a quantidade de migalhas que caem da
mesa cada vez mais farta dos ricos) apenas para comprar televisão e ficar vendo
o BBB e porcarias do mesmo quilate, se não redistribuímos cultura, educação,
ciência e sabedoria; se não damos ao povo condições de criar cultura em lugar
de apenas consumir aquela produzida “para” ele. Está havendo uma melhora do
nível de vida dos mais pobres, e talvez também da velha classe média – melhora
que vai durar o tempo que a China continuar comprando do Brasil e não tiver
acabado de comprar a África. Apesar dessa melhora no chamado nível de vida, não
vejo melhora na qualidade efetiva de vida, da vida cultural ou espiritual, se
me permitem a palavra arcaica. Ao contrário. Mas será que é preciso mesmo
destruir as forças vivas, naturais e culturais, do povo, ou melhor, dos povos
brasileiros para construir uma sociedade economicamente mais justa? Duvido.
Nesse cenário, quais os
temas capazes de mobilizar a sociedade brasileira, hoje?
Vejo a “sociedade brasileira” imantada, pelo menos no plano
de sua auto-representação normativa por via da midia, por um ufanismo oco, um
orgulho besta, como se o mundo (desta vez, enfim) se curvasse ao Brasil. Copa,
Olimpíadas… Não vejo mobilização sobre temas urgentíssimos, como esses da
educação e da redefinição de nossa relação com a terra, isto é, com aquilo que
está por baixo do território. Natureza e Cultura, em suma, que hoje não apenas
se acham mediadas, mediatizadas pelo Mercado, mas mediocrizadas por ele. O
Estado se aliou ao Mercado, contra a Natureza e contra a Cultura.
Esses temas ainda não
mobilizam?
Existe alguma preocupação da opinião pública com a questão
ambiental, um pouco maior do que com a educacional – o que não deixa de ser
para se lamentar, pois as duas vão juntas. Mas tudo me parece “too little, too
late”: muito pouco, e muito tarde. Está demorando tempo demais para se espalhar
a consciência ambiental, o sentido de urgência absoluta que a situação do
planeta impõe a todos nós. Essa inércia se traduz em pouca pressão sobre os
governos, as corporações, as empresas – estas investindo cada vez mais na
historia da carochinha do “capitalismo verde”. E pouca pressão sobre a grande
imprensa, suspeitamente lacônica, distraída e incompetente quando se trata da
questão das mudanças climáticas.
Não se vê a sociedade realmente mobilizada, por exemplo, por
Belo Monte, uma monstruosidade provada e comprovada, mas que tem o apoio desinformado
(é o que se infere) de porções significativas da população do Sul e Sudeste,
para onde irá boa parte da energia que não for vendida a preço de banana paras
as multinacionais do alumínio fazerem latinha de sakê, no baixo Amazonas, para
o mercado asiático. Faz falta um discurso politico mais agressivo em relação à
questão ambiental. É preciso sobretudo falar aos povos, chamar a atenção de que
saneamento básico é um problema ambiental, dengue é problema ambiental, lixão é
problema ambiental. Não é possível separar desmatamento de dengue e de
saneamento básico. É preciso convencer a população mais pobre de que melhorar
as condições ambientais é garantir as condições de existência das pessoas. Mas
a esquerda tradicional, como se está comprovando, mostra-se completamente
despreparada para articular um discurso sobre a questão ambiental. Quando suas
cabeças mais pensantes falam, tem-se a sensação de que estão apenas “correndo
atrás”, tentando desajeitadamente capturar e reduzir ao já-conhecido um tema novo,
um problema muito real que não estava em seu DNA ideológico e filosófico. Isso
quando ela, a esquerda, não se alinha com o insustentável projeto ecocida do
capitalismo, revelando assim sua comum origem com este último, lá nas brumas e
trevas da metafísica antropocêntrica do Cristianismo.
Enquanto acharmos que melhorar a vida das pessoas é dar-lhes
mais dinheiro para comprarem uma televisão, em vez de melhorar o saneamento, o
abastecimento de água, a saúde e a educação fundamental, não vai dar. Você ouve
o governo falando que a solução é consumir mais, mas não vê qualquer ênfase
nesses aspectos literalmente fundamentais da vida humana nas condições
dominantes no presente século.
Não se diga, por suposto, que os mais favorecidos pensem
melhor e vejam mais longe que os mais pobres. Nada mais idiota do que esses
Land Rovers que a gente vê a torto e a direito em São Paulo ou no Rio, rodando
com plásticos do Greenpeace e slogans “ecológicos” colados nos pára-brisas.
Gente refestelada nessas banheiras 4×4 que atravancam as ruas e bebem o
venenoso óleo diesel, gente que acha que “contato com a natureza” é fazer rally
no Pantanal…
É uma situação difícil: falta instrução básica, falta
compromisso da midia, falta agressividade política no tratar da questão do
ambiente — isso quando se acha que há uma questão ambiental, o que está longe
de ser o caso de nossos atuais Responsáveis. Estes mostram, ao contrário e por
exemplo, preocupação em formar jovens que dirijam com segurança, e assim ao
mesmo tempo mantêm sua aposta firme no futuro do transporte por carro
individual numa cidade como São Paulo, em que não cabe nem mais uma agulha. Um
governo que não se cansa de arrotar grandeza sobre a quantidade de veiculos
produzidos por ano. É um absurdo utilizar os números da produção de veiculos
como indicador de prosperidade econômica. Isso é uma proposta podre, uma visão
tacanha, um projeto burro de país.
Você está dizendo que
muitos apelos ao consumo vêm do próprio governo. Mas também há um apelo muito
grande que vem do mercado. Como você avalia isso?
O Brasil é um país capitalista periférico. O capitalismo
industrial-financeiro é considerado por quase todo mundo hoje como uma
evidência necessária, o modo incontornável de um sistema social sobreviver no
mundo de hoje. Entendo, ao contrário de alguns companheiros de viagem, que o
capitalismo sustentável é uma contradição em termos, e que se nossa presente
forma de vida econômica é realmente necessária, então logo nossa forma de vida
biológica, isto é, a espécie humana, vai-se mostrar desnecessária. A Terra vai
favorecer outras alternativas.
A ideia de crescimento negativo, ou de objeção ao
crescimento, a ética da suficiência são contraditórias com a lógica do capital.
O capitalismo depende do crescimento contínuo. A ideia manutenção de um
determinado patamar de equilíbrio na relação de troca energética com a natureza
não cabe na matriz econômica do capitalismo.
Esse impasse, queiramos ou não, vai ser “solucionado” pelas
condições termodinâmicas do planeta em um período muito mais curto do que
imaginávamos. As pessoas fingem não saber o que está acontecendo, preferem não
pensar no assunto, mas o fato é que temos que nos preparar para o pior. E o
Brasil, ao contrário, está sempre se preparando para o melhor. O otimismo
nacional diante de uma situação planetária para lá de inquietante é
extremamente perigoso, e a aposta de que vamos nos dar bem dentro do
capitalismo é algo ingênua, se é que não é, quem sabe, desesperada.. O Brasil
continua sendo um país periférico, uma plantation relativamente high tech que
abastece de produtos primários o capitalismo central. Vivemos de exportar nossa
terra e nossa água em forma de soja, açúcar, carne, para os países
industrializados – e são eles que dão as cartas, controlam o mercado. Estamos
bem nesse momento, mas de forma alguma em posição de controlar a economia
mundial. Se mudar um pouco para um lado ou para o outro, o Brasil pode
simplesmente perder esse lugar à janela onde está sentado hoje. Sem falar, é
claro, no fato de que estamos vivendo uma crise econômica mundial que se tornou
explosiva em 2008 e está longe de acabar; ninguém sabe onde ela vai parar. O
Brasil, nesse momento da crise, está em uma espécie de contrafluxo do tsunami,
mas quando a onda quebrar vai molhar muita gente. Essas coisas têm de ser
ditas.
E como você avalia a
relação dessa realidade macropolítica, macroeconômica, com as realidades do
Brasil rural, dos ribeirinhos, dos indígenas?
O projeto de Brasil que tem a presente coalizão governamental
sob o comando do PT é um no qual ribeirinhos, índios, camponeses, quilombolas
são vistos como gente atrasada, retardados socioculturais que devem ser
conduzidos para um outro estágio. Isso é uma concepção tragicamente equivocada.
O PT é visceralmente paulista, seu projeto é uma “paulistanização” do Brasil.
Transformar o interior do país numa fantasia country: muita festa do peão
boiadeiro, muito carro de tração nas quatro, muita música sertaneja, bota,
chapéu, rodeio, boi, eucalipto, gaúcho. E do outro lado cidades gigantescas e
impossíveis como São Paulo. O PT vê a Amazônia brasileira como um lugar a se
civilizar, a se domesticar, a se rentabilizar, a se capitalizar. Esse é o velho
bandeirantismo que tomou conta de vez do projeto nacional, em uma continuidade
lamentável entre as geopolítica da ditadura e a do governo atual. Mudaram as
condições políticas formais, mas a imagem do que é uma civilização brasileira,
do que é uma vida que valha a pena ser vivida, do que é uma sociedade que
esteja em sintonia consigo mesma, é muito, muito parecida. Estamos vendo hoje,
numa ironia bem dialética, o governo comandado por uma pessoa perseguida e
torturada pela ditadura realizando um projeto de sociedade encampado e
implementado por essa mesma ditadura: destruição da Amazônia, mecanização,
transgenização e agrotoxificação da “lavoura”, migração induzida para as
cidades. Por trás de tudo, uma certa ideia de Brasil que o vê, no início do
século XXI, como se ele devesse ser o que os Estados Unidos foram no século XX.
A imagem que o Brasil tem de si mesmo é, sob vários aspectos, aquela projetada
pelos Estados Unidos nos filmes de Hollywood dos anos 50 – muito carro, muita
autoestrada, muita geladeira, muita televisão, todo mundo feliz. Quem pagava
por tudo isso éramos, entre outros, nós. (Quem nos pagará, agora? A África,
mais uma vez? O Haiti? A Bolivia?). Isso sem falarmos na massa de infelicidade
bruta gerada por esse modo de vida para seus beneficiários mesmo.
É isso que vejo, uma tristeza: cinco séculos de abominação
continuam aí. Sarney é um capitão hereditário, como os que vieram de Portugal
para saquear e devastar a terra dos índios. O nosso governo dito de esquerda
governa com a permissão da oligarquia e dos jagunços destas para governar, ou
seja, pode fazer várias coisas desde que a parte do leão continue com ela. Toda
vez que o governo ensaia alguma medida que ameace isso,o congresso, eleito
sabe-se como, breca, a imprensa derruba, o PMDB sabota.
Há uma série de impasses para os quais não vejo saída, não
vejo como sair por dentro do jogo político tradicional, com as presentes regras
– vejo mais como sendo possível pelo lado do movimento social. Este está
desmobilizado; se não está, o que mais se ouve é que ele está. Mas se não for
por via do movimento social, vamos continuar vivendo nesse paraíso subjuntivo,
aquele em que um dia tudo vai ficar ótimo. O Brasil é um país dominado
politicamente por grandes proprietários e grandes empreiteiros, que não só
nunca fez sua reforma agrária, como onde se diz que já não é mais preciso
fazê-la.
Você acha que as coisas
vão começar a mudar quando chegarem a um limite?
A crise econômica mundial vai provavelmente pegar o Brasil no
contrapé em algum momento próximo. Mas o que vai acontecer com certeza é que o
mundo todo vai passar por uma transição ecológica, climática e demográfica
muito intensa nos próximos 50 anos, com epidemias, fomes, secas, desastres,
guerras, invasões. Estamos vendo as condições climáticas mudarem muito mais
aceleradamente do que imaginávamos, e é grande a possibilidade de catástrofes,
de quebras de safras, de crises de alimentos. Por ora, hoje, isso está até
beneficiando o Brasil. Mas um dia a conta vai chegar. Os climatologistas, os
geofísicos, os biólogos e os ecólogos estão profundamente pessimistas quanto ao
ritmo, as causas e as consequências da transformação das condições ambientais
em que se desenvolve hoje a vida da espécie. Porque haveria eu de estar
otimista?
Penso que é preciso insistir que é possível ser feliz sem se
deixar hipnotizar por esse frenesi de consumo que a mídia nos impõe. Não sou
contra o crescimento econômico no Brasil, não sou idiota a ponto de achar que
tudo se resolveria distribuindo a grana do Eike Batista entre os camponeses do
semi-árido nordestino ou cortando os subsídios aos clãs político-mafiosos que
governam o país. Não que isso não fosse uma boa ideia. Mas sou contra, isso
sim, o crescimento da “economia” mundial, e sou a favor de uma redistribuição
das taxas de crescimento. Sou também obviamente a favor de que todos possam
comprar uma geladeira, e, por que não, uma televisão — mas sou a favor de que
isso envolva a máxima implementação das tecnologias solar e eólica. E teria
imenso prazer em parar de andar de carro se pudéssemos trocar esse meio absurdo
de transporte por soluções mais inteligentes.
E como você vê o jovem
nesse contexto?
É muito difícil falar
de uma geração à qual não se pertence. Na década de 60 tínhamos ideias confusas
mas ideais claros, achávamos que podíamos mudar o mundo, e sabíamos que tipo de
mundo queríamos. Acho que, no geral, os horizontes utópicos se retraíram
enormemente.
Algum movimento recente
no Brasil ou no mundo chamou sua atenção?
No Brasil, a aceleração da difusão do que podemos chamar de
cultura agro-sulista, tanto à direita como à esquerda, pelo interior do país.
Vejo isso como a consumação do projeto de branqueamento da nacionalidade, esse
modo muito peculiar da elite dominante acertar suas contas com o próprio
passado (passado?) escravista.
Outra mudança importante foi a consolidação de uma cultura
popular ligada ao movimento evangélico. O evangelismo das igrejas universais do
reino de Deus e congêneres está evidentemente associado à religião do consumo,
aliás.
E como você vê o
surgimento das redes sociais, nesse contexto?
Isso é uma das poucas coisas com que estou bastante otimista:
o relativo e progressivo enfraquecimento do controle total das mídias por cinco
ou seis grandes grupos. Esse enfraquecimento está acontecendo com a
proliferação das redes sociais, que são a grande novidade na sociedade
brasileira e que estão contribuindo para fazer circular um tipo de informação
que não tinha trânsito na imprensa oficial, e permitindo formas de mobilização
antes impossíveis. Há movimentos inteiramente produzidos dentro das redes
sociais, como a marcha contra a homofobia, o churrasco da “gente diferenciada”
em Higienópolis, os vários movimentos contra Belo Monte, a mobilização pelas
florestas. As redes são nossa saída de emergência para a aliança mortal entre
governo e mídia. São um fator de desestabilização, no melhor sentido da palavra,
do arranjo de poder dominante. Se alguma grande mudança no cenário político
brasileiro vier a acontecer, creio que vai passar por essa mobilização das
redes.
Por isso se intensificam as tentativas de controlar essas
redes por parte dos poderes constituídos – isso no mundo inteiro. Pelo controle
ao acesso ou por instrumentos vergonhosos, como o “projeto” brasileiro de banda
larga, que começa pelo reconhecimento de que o serviço será de baixa qualidade.
Uma decisão tecnolotica e política antidemocrática e antipopular, equivalente
ao que se faz com a educação: impedir que a população tenha acesso pleno à
circulação cultural. Parece mesmo, às vezes, que há uma conspiração para
impedir que os brasileiros tenham uma educação boa e acesso de qualidade à
internet. Essas coisas vão juntas e têm o mesmo efeito, que é o aumento da
inteligência social, algo que, pelo jeito, é preciso controlar com muito
cuidado.
Você imagina um novo
modelo político?
Um amigo que trabalhava no ministério do Meio Ambiente na
época de Marina Silva me criticava dizendo que essa minha conversa de ficar
longe do Estado era romântica e absurda, que tínhamos que tomar o poder, sim.
Eu respondia que, se tínhamos de tomar o poder, era preciso saber manter o
poder depois, e era aí que a coisa pegava. Não tenho um desenho político para o
Brasil, não tenho a pretensão de saber o que é melhor para o povo brasileiro em
geral e como um todo. Só posso externar minhas preocupações e indignações, e
palpitar, de verdade, apenas ali onde me sinto seguro.
Penso, de qualquer forma, que se deve insistir na ideia de
que o Brasil tem – ou, a essa altura, teria – as condições ecológicas,
geográficas, culturais de desenvolver um novo estilo de civilização, um que não
seja uma cópia empobrecida do modelo americano e norte-europeu. Poderíamos
começar a experimentar, timidamente que fosse, algum tipo de alternativa aos
paradigmas tecno-econômicos desenvolvidos na Europa moderna. Mas imagino que,
se algum país vai acabar fazendo isso no mundo, será a China. Verdade que os chineses
têm 5000 anos de historia cultural praticamente continua, e o que nós temos a
oferecer são apenas 500 anos de dominação europeia e uma triste historia de
etnocídio, deliberado ou não. Mesmo assim, é indesculpável a falta de
inventividade da sociedade brasileira, pelo menos das suas elite políticas e
intelectuais, que perderam várias ocasiões de se inspirarem nas soluções
socioculturais que os povos brasileiros historicamente ofereceram, e de assim
articular as condições de uma civilização brasileira minimamente diferente dos
comerciais de TV. Temos de mudar completamente, para começar, a relação
secularmente predatória da sociedade nacional com a natureza, com a base
físico-biológica da própria nacionalidade. E está na hora de iniciarmos uma
relação nova com o consumo, menos ansiosa e mais realista diante da situação de
crise atual. A felicidade tem muitos caminhos.
Postado por produto da mente
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