Se há algo bom de verdade nesta profissão de jornalista é ter
a oportunidade de conhecer gente sábia. Eu posso dizer que tive a honra de
conhecer alguns sábios ao longo da minha carreira. Um deles morreu hoje, aos 87
anos, mansamente, em sua casa em Cotia (SP): o geógrafo Aziz Ab’Saber. O Brasil
perde um grande intelectual e um ser humano maravilhoso.
Há oito anos recebi da editora Record a incumbência de fazer
um livro com o professor Aziz, “O Que É Ser Geógrafo”, um depoimento em
primeira pessoa voltado para universitários. Começou então a amizade entre a
jornalista de 30 e poucos que nada sabia de geografia além do que aprendera no
colégio, e o maior geógrafo brasileiro, de quase oitenta. Foram mais de 20
horas de entrevistas em sua sala no Instituto de Estudos Avançados da USP, na
verdade uma prosa prazerosa onde ele ia contando, de forma absolutamente
poética, a história de sua vida.
De olhos fechados, o professor ia lembrando e, não raro, se
emocionando, com os relatos que vinham do passado, de muito antes de ele
nascer, na aldeia do Líbano de onde partira seu pai, Nacib, em direção ao
Brasil. Era tão vívida e colorida a narrativa de Aziz Ab’Saber que me
transportava até suas memórias: o mercado no Líbano; a feira em São Luiz do
Paraitinga, cidade em que o professor nasceu; as excursões de campo, já na USP,
com os mestres franceses que formaram a primeira geração de uspianos e que ele
tanto admirava: Pierre Monbeig, Roger Bastide, Jean Tricart, Roger Dion, André
de Cailleux, Jean Dresch, Louis Papi.
Os papos se estendiam depois, na lanchonete da faculdade de
Letras ou do DCE –o professor sempre me convidava para um café com leite e um
pão com manteiga. Dava para perceber o quanto ele amava estar no ambiente
universitário, sobretudo entre os estudantes, que volta e meia vinham
cumprimentá-lo. Uma tarde, quando já havíamos terminado o ciclo de entrevistas,
ele passou em minha casa e disse: “Hoje você vai receber uma aula de
geomorfologia”. E me levou para um recorrido pelo interior de São Paulo, na região
de Itu, onde conheci o interessantíssimo parque do Varvito, um tipo de rocha
sedimentar única, formada pela sucessão repetitiva de lâminas ou camadas.
Em Salto, ele me mostrou a força das águas do Tietê, poluído
mas vivo, pulsante, ao contrário da placidez triste que o rio tem na capital.
Subimos o monumento à Nossa Senhora de Monte Serrat, onde Ab’Saber me explicou
in loco sua teoria dos redutos e refúgios: pedaços de paisagens que pertencem a
outro ecossistema. Em pleno interior paulista, me mostrou areia e mandacarus
típicos do Nordeste Seco. Sinal de que um dia houve caatingas também ali. Eu, a
discípula, arregalava os olhos e aguçava os ouvidos.
Aprendi muito com o professor. O principal, para mim, foi
descobrir que havia poesia na geografia. Nunca vou esquecer a linda expressão
que usava para definir a paisagem montanhosa de sua terra natal, São Luiz: “mar
de morros”. Inesquecível também a viagem a cavalo que me contou ter feito,
pequenino, dentro do jacá (cesto de vime), pela serra do Mar, descendo até o
litoral, em Ubatuba. Toda vez que vou à praia em São Paulo e percebo como é
úmida a mata atlântica, lembro do professor Aziz contando dos “pinguinhos” que
caíam no cesto de suas lembranças de menino e que, ele, curioso, se esforçava
para entender, por entre as tramas do jacá.
Aziz Ab’Saber era um homem de esquerda, no sentido mais
utópico do termo – nada a ver com partidos políticos, como as pessoas teimam em
confundir hoje em dia. Foi dele a ideia, que deu a Lula, de fazer pelo País as
caravanas da cidadania. E lembro de como ficou chateado por nunca ter sido
convidado para ir ao Palácio do Planalto, depois da posse… Mais triste ainda
ficou quando seu amigo operário foi capaz de dizer, em 2006, em tom de
pilhéria: “se você conhecer uma pessoa muito idosa esquerdista, é porque ela
tem problemas”. Ab’Saber foi de esquerda até o fim. Até o fim o centro de suas
preocupações como intelectual foram os mais necessitados, os que viviam longe
de tudo, os ribeirinhos, os catadores de papel, os moradores das favelas. Até o
fim desejou a inserção social dos humanos desamparados e se indignou com a
injustiça.
Sempre que eu ligava para sua casa, mal ouvia eu dizer “alô!”
e o professor Aziz respondia: “Cynara! Minha amiga”. As amizades são assim, não
importa quantos anos se tem, de onde se vem, onde se nasce. As almas se
reconhecem. Vou sentir saudades, professor. Se existe Paraíso, espero que tenha
vista para o mar de morros.
Ecos do Sino Grande
(Aziz Ab’Saber)
Ainda oiço. Trago na memória.
Na noite de São Luiz
Escuto ainda
As badaladas arrastadas
Do sino grande
Da matriz.
Coisa rara: tivemos que sair
Minha mãe, minha madrinha e eu
Para arejar o pequeno Iussef
Que estava com tosse comprida.
Ruas desertas. Escuridão
Barro e chuvinha
Cheiro do mato vindo da outra banda
Do rio.
No alto do morro
O cruzeiro iluminado que meu pai,
Poeta introvertido,
Mandou iluminar.
Primeiras elétricas luzes,
Que antecediam
O pontilhado imenso que
marcava as luzes do universo.
Saudades de menino
Entes queridos.
Lembranças sentidas.
E, para completar
As badaladas arrastadas do sino grande
Que saudades, Deus meu!
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