O lugar do
ex-presidente João Goulart na história do Brasil começa a ganhar contornos mais
nítidos
Emiliano José
Penso que o lugar do
ex-presidente João Goulart na história do Brasil começa a ganhar contornos mais
nítidos. Fui alertado pela primeira vez sobre os equívocos históricos em torno
do papel dele quando me deparei há alguns anos com o livro de Moniz Bandeira:
"O governo Goulart – as lutas sociais no Brasil: 1961-1964", numa
edição da Civilização Brasileira, de 1977. Ali, comecei a repensar não só a
singularidade da atuação do ex-presidente, como de toda uma geração que lutou,
a seu modo, para construir um país soberano e mais justo.
Waldir Pires,
protagonista político do Brasil desde o início dos anos 50, foi outro a me fazer
repensar o papel do ex-presidente. Já não eram mais leituras, mas o testemunho
pessoal de quem conviveu com Goulart até os últimos instantes de sua presença
na presidência da República, e que o acompanhou em sua dura experiência de
exílio, vivida também por Waldir. Agora, fui surpreendido com uma
extraordinária biografia: "João Goulart", também da Civilização
Brasileira, de 2011, do professor Jorge Ferreira, da Universidade Federal
Fluminense, já em terceira edição.
Não há a pretensão de
produzir uma resenha. O livro já é conhecido. Limito-me, aqui, a impressões,
quem sabe a autocríticas, a revisões históricas provocadas pela riqueza do
livro. Não tenho, com esse texto, quaisquer pretensões acadêmicas. Diria que
ele tem mais uma face militante, de quem está imerso na política e que sobre
ela procura refletir para não se ver engolfado por cláusulas pétreas
conceituais e nem pelos modismos do momento, o que não é fácil. Quem está na
política, corre os dois riscos, e não sei qual o mais prejudicial. Talvez, a
rigor, nunca consigamos nos livrar deles.
Goulart, se me lembro
bem, aparecia para nós, os que havíamos aderido à luta armada contra a
ditadura, com nossas múltiplas concepções estratégicas e táticas, como um
reformista da pior espécie – e por reformista entendia-se, então, tanto aqueles
que se vinculavam ao PCB, o Partidão, quanto um político burguês, como Goulart.
Ou, se quisermos ir adiante na caracterização, como um populista. O populismo,
desenvolvendo-se como conceito histórico, pretendeu dar conta de múltiplas
experiências da América do Sul, especialmente do Brasil e Argentina, com
destaque para as figuras de Vargas e Perón.
Das leituras que
fazíamos então, em geral muito aligeiradas, quase restritas a orelhas ou a
comentários de terceiros, surgiu com destaque, em 1968, o livro de Octavio
Ianni, O colapso do populismo no Brasil. A interpretação dele sobre o golpe de
1964 virou uma espécie de cláusula pétrea – tanto as causas estruturais quanto
o diagnóstico dos personagens passaram a ser vistos a partir daquela visão, ao
menos para nós, os que divergíamos da linha do Partidão. E o termo populismo
passou a explicar o período da emergência das massas urbanas, da
industrialização do Brasil, e de manipulação dos trabalhadores por parte das
lideranças políticas – lideranças populistas, naturalmente.
Já disse: Moniz
Bandeira me salvou dessa armadilha. Me livrou da cláusula pétrea. Quem disse
que a idéia de populismo dá conta de tudo e que pode enquadrar cada personagem
daquele rico período? Não pode. Não consegue ser um conceito totalizante, por
obviedade. Carrega uma boa dose de visão estruturalista, calcada numa abordagem
quase estereotipada da luta de classes e que, ao mesmo tempo, subestima a
própria capacidade da classe operária por dá-la como absolutamente susceptível
à manipulação de líderes que não tinham quaisquer compromissos com a melhoria
real das condições de vida do povo, salvo para aproveitar-se dele.
Curiosamente, uma abordagem marxista que desconsiderava a possibilidade de
intervenção política da classe operária, tão subserviente aos líderes
populistas.
O livro de Jorge
Ferreira é outra excepcional contribuição ao entendimento do período, e repõe a
figura de Goulart com outro olhar, como um político profundamente comprometido
e ligado aos trabalhadores durante toda sua vida, sem desconhecer suas
contradições, ou suas ambigüidades, como ele a chama. Contradições que não
faltam a nenhuma pessoa humana e naturalmente a nenhuma liderança política.
Ajudou-me em minha
jornada de compreensão do Brasil recente, a entender como foi possível, em tão
pouco tempo, construir-se um País industrial, à base de um projeto que
pressupunha também distribuição de renda, projeto que fixou seus objetivos mais
claramente a partir de 1950, quando Goulart começa a despontar com uma
liderança profundamente vinculada aos trabalhadores, para além de sua condição
pessoal. Goulart era um homem rico, como se sabe, e sempre teve talento para
ganhar dinheiro, como a biografia revela. E revela, também, que nunca se
apropriou do dinheiro público para proveito pessoal.
Esse projeto de
construção de um Brasil soberano e socialmente justo, pretensão do governo
Goulart, especialmente em sua fase final, que dava seqüência ao projeto de
Vargas, foi interrompido pelo golpe militar – golpe que teve o apoio de
políticos de direita, da Igreja Católica, e de vastos setores das camadas
médias, assustadas com a movimentação operária e popular, com as articulações e
movimentos de políticos de esquerda, como Brizola e Julião, para citar dois
deles. A discussão sobre as causas do golpe ainda se arrastarão por algum
tempo, certamente.
É inegável, no entanto,
que Goulart, como diria Darcy Ribeiro, cai por seus méritos, e não por seus
defeitos. Na fase final de seu governo, viu-se numa encruzilhada: ou rendia-se
à proposta dos militares de afastar-se dos comunistas, de Arraes, de Julião, de
Brizola e tantos outros setores de esquerda, ou, então, levava à frente a idéia
de implantar as chamadas reformas de base, entre as quais a reforma agrária.
Com o comício de 13 de março de 1964, ele revelou ao país sua posição.
Parecia que a presença
daquelas 200 mil pessoas no Comício da Central do Brasil evidenciava uma
correlação de forças favorável às reformas de base. Dali em diante, tudo correu
aceleradamente, e Goulart cai no dia 1º de abril, e segue logo depois para o
Uruguai, certo de que não havia quaisquer condições para a resistência, nem
entre os militares, nem entre as forças de esquerda, como se comprovou.
Durante algum tempo,
uma historiografia precária, fundada numa visão individualista da história,
pretendeu culpá-lo pela não resistência. Os fatos que se seguiram demonstraram
o quanto era inconsistente essa interpretação. O chamado esquema militar do
governo não existia – e aí, sem dúvida, houve falhas, e graves, de Goulart – e
não havia praticamente nada de organização popular para o enfrentamento do
golpe – nem os "grupos dos onze" de Brizola, nem as ligas camponesas
de Julião, nem as forças sindicais, nada. Os golpistas e os EUA haviam se preparado
para uma resistência prolongada. Equivocaram-se. Havia mais barulho que
realidade.
É evidente que a
movimentação das massas era ampla. Que o proletariado urbano dava seus mais
fortes sinais de organização do pós-guerra. Que havia um início de movimentação
de trabalhadores e camponeses no campo. Nada, no entanto, que autorizasse a
visão triunfalista de um Brizola, de um Julião, até de um Prestes. Goulart,
naquele 13 de março, já estava isolado. O golpe caminhava celeremente, tinha
bases sociais, e apesar de ter sido deflagrado por um general desacreditado,
Olímpio Mourão Filho, e parecer sem força nas primeiras horas, consolidou-se
diante da fraqueza e desorganização das chamadas forças populares e de
esquerda.
A revolução faltou ao
encontro. Não resisto à tentação de recuperar título de um livro de Daniel
Aarão Reis filho. Dito de outra maneira, o que chamávamos revolução brasileira,
nossa musa inspiradora, sofria uma derrota de grande impacto. Um impacto de 21
anos. A democracia só voltaria em 1985. Vivemos, de lá até os dias de hoje, o
maior período democrático de nossa história, que devemos celebrar.
E quero dizer, ainda,
para brincar com as palavras, se me permitirem, que a revolução voltou a nos
encontrar. E pelos caminhos da democracia, do debate de projetos, e da
consolidação de um desses projetos, ao menos nesses últimos quase dez anos,
desde que Lula venceu as eleições, por decisão livre do povo brasileiro.
O projeto neoliberal
foi derrotado. E desenvolve-se, desde lá, o que alguns importantes autores, como
Juarez Guimarães, chamam revolução democrática. E há, no curso dessa revolução,
onde se afirmam direitos democráticos, onde há distribuição de renda como nunca
houvera antes, onde há emprego, onde se afirma a soberania do País, um
reencontro de gerações. Não sei se ironia da história, mas pode-se afirmar que
muito daquilo que foi sonhado por Goulart, por aquele projeto generoso dos anos
50, está em curso hoje.
Finalizo, embora
desnecessário pelo valor intrínseco da obra, agradecendo ao professor Jorge Ferreira.
É uma bela obra. Para além desses aspectos mais gerais, de natureza política,
dá uma lição de como fazer uma biografia. O indivíduo surge com toda sua
complexidade, revelado em sua singularidade, em sua humanidade, mas nunca
desconectado do quadro histórico mais amplo. No singular, entre tantas
revelações, é dramática a revelação de que Goulart morreu de tristeza, um mal
geral que Freud a seu modo detectou. Um mal específico, e dele me falou também
Waldir, que costuma afetar os exilados quando não conseguem voltar à sua terra
natal. Nunca os militares permitiram que Goulart pisasse novamente o seu solo.
Só pôde fazê-lo morto. Um homem a quem o País deve muito, com sua memória aos
poucos recuperada.
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