Direitos da criança são ameaçados na TV
Por Vilson Vieira Junior
Em maio de 2009, a pequena Maisa, à época com apenas seis
anos de idade, protagonizou cenas constrangedoras ao lado do apresentador e
empresário Silvio Santos no quadro “Pergunte pra Maisa”. O palco foi um
programa dominical que leva o nome do “homem do baú”, no SBT. Numa das cenas,
que foi ar no dia 10 daquele mês, ele provocou choro e muitos gritos na menina
ao levar um garoto com o rosto pintado de monstro. Momentos antes, ela havia
contado ao apresentador que ficou com medo ao vê-lo no camarim. Todavia, o dono
do SBT quis fazer um teste e o chamou ao palco. Após ver o “menino-monstro” ao
seu lado, Maisa, em desespero e aos prantos, começou a correr diante das
câmeras acompanhada pelas gargalhadas sarcásticas de Silvio Santos.
Noutra ocasião, exibida uma semana depois, Maisa ficou
nervosa com as provocações do apresentador pelo que havia acontecido no
programa anterior. Ela deixou o palco correndo, bateu com a cabeça em uma câmera
e chorou reclamando de dores com a mãe. Não bastasse aquele absurdo, Silvio
Santos, em coro com o auditório, cantarolou: “Medrosa, medrosa, medrosa...” As
duas cenas lamentáveis saíram da TV para virar febre na internet e logo
ganharam as páginas de grandes jornais.
Resultado: a Vara da Infância e da Juventude da comarca de
Osasco – cidade onde estão sediados os estúdios do SBT –, a pedido do
Ministério Público Estadual, cassou a licença que permitia a participação da
menina no programa. Essa longa introdução é para mostrar que fatos como esses
envolvendo crianças não são isolados e, com frequência cada vez mais
preocupante, invadem os lares de milhões de brasileiros. E o mais recente
aconteceu no programa Raul Gil, no dia 3 de março deste ano, também no SBT.
Direitos da criança
Velho conhecido em apresentar calouros infantis para
alavancar a audiência, Raul Gil comanda aos sábados o quadro “Eu e as
Crianças”. Nele, as crianças interagem com o apresentador, cantam, dançam e
contam piadas. Tudo em clima de muita diversão. Mas uma cena chamou a atenção
por lembrar o ocorrido com Maisa há quase três anos. Desta vez, a vítima da
disputa sem limites pela audiência na TV aberta foi a pequena Manuela Munhoz,
que aparenta ter apenas quatro ou cinco anos de idade, embora seja bem
conhecida do público que assiste ao programa.
Ao ser provocada pelo apresentador, que a interrompia
voluntariamente quando ela tentava anunciar a próxima criança, começou a
chorar, pedindo: “Por favor, para de brincar comigo, vovô Raul!” Como ele não
atendeu aos pedidos da menina, ela disse: “Vovô Raul, eu já falei pra parar de
brincar comigo!” E soluçava compulsivamente, sendo consolada por duas colegas
que tinham acabado de chegar ao palco. O apresentador tentava minimizar o
sofrimento da pequena caloura entoando frases que rimavam com o nome dela. Mas
ainda chorando muito e com a voz embargada, Manuela teve que falar um texto
decorado, um slogan que promovia o apresentador e a emissora na qual se
apresentava.
Para muitos, tal episódio não passou de mais uma entre tantas
estratégias já empregadas na TV para entreter o público, em sua grande maioria
tão carente de diversão e lazer nos fins de semana. No entanto, crianças estão
no centro desses fatos inaceitáveis e de mau gosto. Crianças que, como todas as
outras, ao invés de serem objeto de exploração e chacota, merecem total
proteção e respeito quanto à sua integridade física, moral e psíquica. É o que
determina o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), mas que ainda parece
desconhecido por aqueles que fazem televisão no Brasil.
Liberdade, respeito e
dignidade
Vale sublinhar que o Estatuto motivou a ação do Ministério
Público Estadual de São Paulo contra o Sistema Brasileiro de Televisão (SBT),
em 2009, no caso Maisa. Sendo assim, não custa nada lembrá-los o que determina
o ECA em seus artigos 4º, 5º, 15, 17 e 18, com destaque para os três últimos:
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em
geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos
direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao
lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e
à convivência familiar e comunitária.
Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de
qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade
e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos
seus direitos fundamentais.
Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade,
ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e
como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e
nas leis.
Art. 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da
integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a
preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e
crenças, dos espaços e objetos pessoais.
Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e
do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento,
aterrorizante, vexatório ou constrangedor.
Desafio à
democratização da mídia
Ao serem analisados à luz da legislação, casos como os de
Maisa e Manuela só vêm confirmar a forma criminosa com que a TV aberta
comercial tem abordado a criança nos últimos tempos e refletem a inoperância do
Ministério das Comunicações na fiscalização do conteúdo veiculado pelas
concessionárias de televisão. Estas, além de não dedicarem o devido espaço ao
público infantil a partir de conteúdos educativos, de exibirem em qualquer
horário programas inadequados (burlando a Classificação Indicativa) e de
abusarem da publicidade direcionada a esse público, prestam um enorme
desserviço ao expor crianças em situações constrangedoras e humilhantes em
programas de auditório.
Em suma, o que aconteceu deve ser visto como um atentado às
crianças de todo o país, além de colocar em xeque, mais uma vez, o cumprimento
de obrigações legais e constitucionais por parte das emissoras de televisão.
Eis aí mais um desafio para os que defendem a democratização da mídia no
Brasil: preservar os direitos de crianças e adolescentes nos meios de
comunicação e reivindicar políticas de conteúdo que respeitem sua condição de
sujeitos em plena formação de valores éticos, sociais e intelectuais.
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