terça-feira, 13 de março de 2012

Em nome de Amélia


   
Escrito por João Santana  

Amélia é uma injustiçada; há algo mais ‘feminista’ e poético do que uma mulher preferir fazer amor com o seu marido do que gastar o dinheiro dele? Na história das sociedades, sempre existiram personagens injustiçados. A injustiça é uma coisa às vezes misteriosa de produzir e nem sempre fácil de explicar.
 A pior das injustiças é a que petrifica uma personagem em um bloco de gelo histórico, que nunca derrete. Isso acontece quando um equívoco é tão fortemente construído que não só congela a vítima como qualquer voz que se levante em sua defesa.
 Nessa moldura, a mulher mais injustiçada da nossa história é, sem dúvida, Amélia. Sim, ela mesmo, a mulher de verdade. Essa genial criação de Mario Lago, maquiada com maestria por Ataulfo Alves, transformou-se, por força de uma leitura equivocada, no símbolo mais popular da mulher burra e submissa.
 Difícil saber quem produziu esse monstruoso equívoco. Impossível continuar repetindo este absurdo. Basta ouvir a canção, sem preconceito, para ver que Amélia é exatamente o contrário do que falam. Ela é vítima de uma campanha negativa que precisa ser destruída. Trata-se de um bom tema para ser discutido na semana do Dia Internacional da Mulher.
 Quem, em sã consciência, pode encontrar na letra de “Ai, que saudades da Amélia” a descrição de uma deusa estúpida e cativa? A canção começa com o amado ressentido, dizendo, em tom quase pungente : “Nunca vi fazer tanta exigência/ nem fazer o que você me faz/ você não sabe o que é consciência/ nem vê que eu sou um pobre rapaz”.
 As duas palavras-chaves (exigência e consciência) e a expressão humilde e igualitária (pobre rapaz) já insinuam o sentido verdadeiro da queixa-revelação. Segue adiante: “Você só pensa em luxo e riqueza/ tudo que você vê você quer/ ai, meus Deus, que saudades da Amélia/ aquilo sim é que era mulher”.
 Peraí. Não estaria o amado a criticar, com toda a razão, a sua mulher atual, que é frívola, dependente e consumista? Não estaria criticando, sem nenhum sotaque machista, uma mulher que poderia, hoje, “brilhar” no reality show “Mulheres Ricas”? Como essa mulher frívola e bizarra venceu, no imaginário brasileiro, a figura solidária, carinhosa e sensual de Amélia?
 Amélia “às vezes passava fome ao meu lado/ e achava bonito não ter o que comer” e “quando me via contrariado, dizia ‘meu filho, o que se há de fazer?’”. O que é mais “feminista” e maravilhosamente poético? Passar fome, lutando de forma solidária e independente ao lado do amado, sendo seduzida e sedutora, sempre capaz de convidá-lo, sutilmente, para saciar no sexo a fome do estômago (é isso que está embutido no verso “o que se há de fazer?”) ou, ao contrário, fazer compras com o dinheiro do marido, em vez de fazer amor, com muito gosto e prazer, com ele?
 O que é mais “moderno” e mais pop? Ser naturalmente bela, sem a “menor vaidade”, ou ser uma megera neurótica, opressora, perdulária e exigente? Já está na hora de as mulheres e de os homens brasileiros recolocarem a maravilhosa Amélia no seu devido lugar: o nosso panteão de musas. Vamos erguer, hoje, um brinde a esta mulher de verdade e pedir perdão pelo que fizeram, injustamente, com sua memória.
 JOÃO SANTANA, 59, é consultor político. Foi coordenador de marketing das campanhas de Lula (2006) e Dilma (2010), entre outras. É também compositor popular

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