Escrito por João
Santana
Amélia é uma
injustiçada; há algo mais ‘feminista’ e poético do que uma mulher preferir
fazer amor com o seu marido do que gastar o dinheiro dele? Na história das
sociedades, sempre existiram personagens injustiçados. A injustiça é uma coisa
às vezes misteriosa de produzir e nem sempre fácil de explicar.
A pior das injustiças é a que petrifica uma
personagem em um bloco de gelo histórico, que nunca derrete. Isso acontece
quando um equívoco é tão fortemente construído que não só congela a vítima como
qualquer voz que se levante em sua defesa.
Nessa moldura, a mulher mais injustiçada da
nossa história é, sem dúvida, Amélia. Sim, ela mesmo, a mulher de verdade. Essa
genial criação de Mario Lago, maquiada com maestria por Ataulfo Alves,
transformou-se, por força de uma leitura equivocada, no símbolo mais popular da
mulher burra e submissa.
Difícil saber quem produziu esse monstruoso
equívoco. Impossível continuar repetindo este absurdo. Basta ouvir a canção,
sem preconceito, para ver que Amélia é exatamente o contrário do que falam. Ela
é vítima de uma campanha negativa que precisa ser destruída. Trata-se de um bom
tema para ser discutido na semana do Dia Internacional da Mulher.
Quem, em sã consciência, pode encontrar na
letra de “Ai, que saudades da Amélia” a descrição de uma deusa estúpida e
cativa? A canção começa com o amado ressentido, dizendo, em tom quase pungente
: “Nunca vi fazer tanta exigência/ nem fazer o que você me faz/ você não sabe o
que é consciência/ nem vê que eu sou um pobre rapaz”.
As duas palavras-chaves (exigência e
consciência) e a expressão humilde e igualitária (pobre rapaz) já insinuam o
sentido verdadeiro da queixa-revelação. Segue adiante: “Você só pensa em luxo e
riqueza/ tudo que você vê você quer/ ai, meus Deus, que saudades da Amélia/
aquilo sim é que era mulher”.
Peraí. Não estaria o amado a criticar, com
toda a razão, a sua mulher atual, que é frívola, dependente e consumista? Não
estaria criticando, sem nenhum sotaque machista, uma mulher que poderia, hoje,
“brilhar” no reality show “Mulheres Ricas”? Como essa mulher frívola e bizarra
venceu, no imaginário brasileiro, a figura solidária, carinhosa e sensual de
Amélia?
Amélia “às vezes passava fome ao meu lado/ e
achava bonito não ter o que comer” e “quando me via contrariado, dizia ‘meu
filho, o que se há de fazer?’”. O que é mais “feminista” e maravilhosamente
poético? Passar fome, lutando de forma solidária e independente ao lado do
amado, sendo seduzida e sedutora, sempre capaz de convidá-lo, sutilmente, para
saciar no sexo a fome do estômago (é isso que está embutido no verso “o que se
há de fazer?”) ou, ao contrário, fazer compras com o dinheiro do marido, em vez
de fazer amor, com muito gosto e prazer, com ele?
O que é mais “moderno” e mais pop? Ser
naturalmente bela, sem a “menor vaidade”, ou ser uma megera neurótica,
opressora, perdulária e exigente? Já está na hora de as mulheres e de os homens
brasileiros recolocarem a maravilhosa Amélia no seu devido lugar: o nosso panteão
de musas. Vamos erguer, hoje, um brinde a esta mulher de verdade e pedir perdão
pelo que fizeram, injustamente, com sua memória.
JOÃO SANTANA, 59, é consultor político. Foi
coordenador de marketing das campanhas de Lula (2006) e Dilma (2010), entre outras.
É também compositor popular
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