Por: Maurício Thuswohl, especial para a Rede Brasil Atual
Rio de Janeiro – A queda de braço ideológica que os setores
mais conservadores das Forças Armadas tentam travar com o governo desde o
anúncio da criação da Comissão da Verdade teve seu ápice na quinta-feira (29),
quando o Clube Militar organizou no Rio de Janeiro a celebração “1964 – A
Verdade” pelos 48 anos do golpe militar. Com a presença de 300 pessoas –
oficiais da reserva e seus familiares eram maioria –, um debate reuniu alguns
dos maiores críticos à criação da comissão, como o jornalista Aristóteles
Drummond, o médico e escritor Heitor de Paola e o general Luiz Eduardo Rocha
Paiva, que ganhou notoriedade ao sugerir que a presidente Dilma Rousseff também
fosse convocada para depor sobre seus atos de resistência à ditadura militar.
A presença – na
calçada em frente ao Clube Militar, na região central do Rio – de cerca de 300
manifestantes contrários às celebrações pelo aniversário do golpe tornou ainda
maior o clima de beligerância com os militares que chegavam para o evento. Na
porta, indagado de longe – a entrada dos jornalistas não foi permitida – se
mantinha sua posição quanto à convocação de Dilma, o general Rocha Paiva
afirmou achar “justo que todos devam ser expostos à nação”. No debate, o
general criticou o governo federal: “Querem criar essa Comissão da Verdade 30
anos após os fatos. Isso porque hoje temos ex-militantes da luta armada
ocupando posições importantes no cenário político nacional e internacional”,
disse.
Também em comemoração ao aniversário do que chamam de
“revolução democrática de 31 de março de 1964”, dez coronéis paraquedistas
programaram para amanhã (31) um salto coletivo sobre a praia da Barra da
Tijuca, zona oeste do Rio. Segundo os organizadores, uma grande bandeira do
Brasil será pendurada no avião que levará os paraquedistas. Após o salto, todos
deverão cantar os hinos nacional e dos paraquedistas, antes de gritar o lema
“Brasil acima de tudo”. Segundo o coronel Luiz Oliveira, que assina a
convocatória para o salto coletivo, cada saltador também carregará consigo uma
bandeira do Brasil.
A ofensiva ideológica
dos militares se intensificou desde que o governo anunciou a criação da
Comissão da Verdade, mas as crises – maiores ou menores – com os setores que
defendem a ditadura acontecem desde o primeiro mandato do ex-presidente Luiz
Inácio Lula da Silva. Primeiro ministro da Defesa de Lula, José Viegas pediu
demissão em outubro de 2004 por se sentir enfraquecido após tentar abrir
investigação sobre os assassinatos do Araguaia e o então comandante do
Exército, general Francisco Albuquerque, ter divulgado uma nota que, em alguns
trechos, chegava a justificar a prática da tortura como forma de luta contra os
opositores do regime militar.
Ainda no governo de
Fernando Henrique Cardoso, os setores da reserva, sempre utilizando o Clube
Militar como trincheira ideológica, fizeram oposição sistemática aos trabalhos
da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos. Em 2001, a pressão dos
militares sobre FHC cresceu com a criação da Comissão de Anistia.
No governo Lula, após a saída de Viegas, o Ministério da
Defesa ficou diretamente ligado ao Palácio do Planalto, com a nomeação do
vice-presidente José Alencar como ministro. A mudança aplacou os ânimos entre
os militares pró-64, mas estes voltaram a se manifestar quando Lula nomeou
Waldir Pires para o cargo. O ex-governador da Bahia teve de enfrentar a dura
oposição até mesmo dos três ministros militares por causa da divergência de
opiniões quanto à negociação com os
controladores de voo (todos militares da Aeronáutica) nos dias que sucederam o
acidente com o avião A-320 da TAM, derrubado por um jato Legacy de uso
particular em 2007. O ministro não resistiu à pressão e caiu.
Ao convocar Nelson
Jobim, figura próxima aos militares, para o lugar de Waldir Pires, Lula
conquistou alguma serenidade com os oficiais da reserva. Ministro que ficou
mais tempo no cargo (quatro anos), Jobim ainda assim teve de conviver com algumas
saias-justas. O caso mais notório aconteceu quando o general Augusto Heleno
Ribeiro Pereira – ex-comandante das tropas brasileiras no Haiti e então
comandante militar da Amazônia – concedeu entrevistas fazendo pesadas críticas
à política indigenista do governo, assim como à ocupação das fronteiras ao
Norte. O caso se resolveu com a exoneração do general, em um raro caso de
punição direta após um confronto verbal. Atualmente, Heleno é comentarista de
segurança pública da Rede Bandeirantes.
Atritos com governo Dilma
A chegada à Presidência da República de uma ex-combatente
contra a ditadura, Dilma Rousseff, voltou a agitar o Clube Militar. Os temores
dos oficiais da reserva quanto ao atual governo se confirmaram com o início da
discussão sobre a criação da Comissão da Verdade, e os ânimos teriam novamente
se acirrado com a substituição de Jobim por Celso Amorim, ex-ministro das
Relações Exteriores e figura sabidamente de esquerda.
A primeira crise com
Amorim surgiu quando os presidentes dos clubes Militar (general Renato César
Tibau da Costa, Naval (almirante Ricardo Antônio da Veiga Cabral e da
Aeronáutica (tenente-brigadeiro Carlos de Almeida Baptista) divulgaram um
manifesto no qual criticavam a Comissão da Verdade e acusavam o PT e as
ministras Maria do Rosário (Secretaria de Direitos Humanos) e Eleonora
Menicucci (Secretaria das Mulheres) de pregar o desrespeito à Lei de Anistia.
A busca pelo confronto
ideológico fica clara: “O Partido dos Trabalhadores, ao qual a presidente
pertence, diz que estará empenhado junto com a sociedade no resgate de nossa
memória da luta pela democracia durante o período da ditadura militar. Pode-se
afirmar que a assertiva é uma falácia, posto que, quando de sua criação, o
governo já promovera a abertura política, incluindo a possibilidade de fundação
de outros partidos políticos, encerrando o bipartidarismo”, diz o manifesto,
cobrando ainda de Dilma que seja “presidente de todos os brasileiros, e não de
minorias sectárias ou de partidos políticos”.
A reação do governo foi
imediata, e o ministro Amorim determinou que os autores do manifesto fossem
punidos. Isso desencadeou uma reação ainda mais veemente dos militares e o
lançamento de um segundo manifesto, em tom mais agressivo, com o sugestivo
título “Eles que venham. Por aqui não passarão!” e que questiona a autoridade
do ministro da Defesa. Mesmo tendo sua retirada do site do Clube Militar
determinada pelo governo, esse segundo manifesto circulou pela internet e
ganhou força, com milhares de assinaturas de militares e civis.
O clima de provocação
com o governo aumentou com a realização do ato de ontem, já que a presidente
Dilma havia determinado aos ministros militares que não mais ocorressem no país
celebrações festivas do golpe de 1964. Em contrapartida, outros setores da
sociedade civil também se movimentam: o Ministério Público Federal anunciou que
dará entrada em ações criminais contra militares pelo desaparecimento de
dezenas de pessoas durante a ditadura e a Organização dos Estados Americanos
(OEA) abriu investigação para saber se houve negligência do Estado brasileiro
na punição pelo assassinato do jornalista Wladimir Herzog em 1975, durante o
regime militar.
Verdades e mentiras
Ex-ministro da
Secretaria de Direitos Humanos e ex-integrante da Comissão Especial de Mortos e
Desaparecidos, Nilmário Miranda lembra que a Comissão da Verdade “foi aprovada
com esmagadora maioria no Congresso” e critica os autores dos manifestos contra
o governo: “A maioria dos que assinam os manifestos são reformados e
participaram da ditadura. Vale lembrar que as Forças Armadas chegaram a ter 23%
do orçamento do país! O que implicava desviar recursos da saúde, da educação e
da ciência e tecnologia. Centenas deles ocupavam direções de estatais
desnecessárias e não tinham que prestar contas a ninguém. A situação hoje é
diferente, pois a maioria dos militares tem formação democrática”, escreveu o
ex-ministro em seu blog.
Em artigo publicado no
jornal O Globo, o jornalista Cid Benjamin – perseguido, preso e torturado pela
ditadura – lembra que o projeto aprovado da Lei da Anistia (em 1979) não
contava com o apoio da oposição democrática reunida no MDB nem de entidades
como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Associação Brasileira de
Imprensa (ABI). Por isso, diz, é mentirosa a iniciativa que quer passar à
opinião pública a versão de que a aprovação da lei foi um grande momento de
entendimento nacional: “Esquecer isso é tão absurdo como reescrever a história
de forma mentirosa e afirmar hoje que a consigna ‘ampla, geral e irrestrita’ tinha
como objetivo proteger torturadores e assassinos”.
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