DANIEL LIMA
A bancada do programa
Roda Viva, da TV Cultura, apertou muito mais o arcebispo de São Paulo, Dom
Odilo Scherer, do que o irmão de Celso Daniel, Bruno Daniel Filho. Assisti aos
dois programas. Tenho-os gravado. Aliás, tenho-os gravado, por isso os assisti.
Fiquei surpreso com o tratamento diametralmente oposto. Bruno Daniel,
despreparado para defender uma causa onírica, fantasiosa, foi apenas levemente
acossado por perguntas que testaram a flacidez de seus argumentos. Dom Odilo
quase foi hostilizado por alguns membros da bancada.
O mundo está mesmo virado de ponta cabeça porque em situação
de normalidade o tom das questões delicadas endereçadas ao representante da
Igreja Católica deveria ser menos ácido, enquanto os malabarismos semânticos de
Bruno Daniel não poderiam dispensar contraditórios mais vigorosos.
Perguntará o leitor como faço para assistir a tanta coisa
assim na TV, já que confesso assídua audiência à novela das nove, ao futebol e
também ao BBB que acabou de acabar, felizmente com a execração pública (92%) da
entojada Fabiana? O segredo é unir o útil ao agradável, além de planejar o dia
para atividades diferentes, complementares e muitas vezes sobrepostas. Por
exemplo: ao Roda Viva e a outras programações reservo o tempo que passo
pedalando uma bicicleta ergométrica providencialmente instalada em frente ao
aparelho de televisão. Um cuidado com o corpo que divido com corridas pelas
ruas do Jardim do Mar, onde resido. Adoro correr nas ruas, mas nada melhor que
o revezamento com a ergométrica, exigindo de mim mesmo um pedalar forte. São
exercícios apenas aparentemente iguais, por isso, se completam.
Especialistas, a
diferença
Voltando ao Roda Viva, ainda estou tentando metabolizar as
razões do distanciamento conflitivo do tom daquelas duas entrevistas. A explicação mais plausível é que Dom Odilo
se submeteu a uma bancada de especialistas, vários dos quais em evidente rota de
colisão com os pressupostos da Igreja Católica, enquanto Bruno Daniel Filho se
viu diante de jornalistas que entendem muito pouco do caso Celso Daniel, porque
o caso Celso Daniel não tem especialistas na Imprensa, exceto, desculpem a
imodéstia, este jornalista.
Querem um exemplo demolidor? Quando Bruno Daniel Filho fala
em tortura, está redondamente enganado. Ouvi os especialistas que participaram
diretamente do caso e produzi a respeito textos densos sobre o que é uma coisa
e o que é outra coisa, ou seja, o que é tortura no sentido coercitivo para a
obtenção de alguma vantagem, e o que é tortura como especificação técnica de
traumas provocados por uma execução físico-criminal, como é o caso que envolveu
Celso Daniel. Esse é apenas um dos muitos buracos em que meteria a cabeça
desinformada de Bruno Daniel Filho sem que ele possa dizer que estou a
torturá-lo, porque a frase é apenas uma metáfora.
Os especialistas em religião não deram folga a Dom Odilo. O
combate foi quase desrespeitoso. Alguns dos convidados bateram para valer em
polêmicas da Igreja Católica. O crescimento McDonaldiano dos evangélicos, a
pedofilia, as vítimas de estupros, o uso de preservativos, tudo isso e muito
mais foram colocados ao representante católico com a incisiva força de
argumentos consolidados e também com o tom pouco amistoso a ma autoridade
eclesiástica. Com Bruno Daniel houve o tempo todo, ou quase o tempo todo,
questionamentos quase reverenciais. Quando falta conhecimento, sobra
ignorância, parente próximo de gentilezas vazias.
É por essas e por outras que quando me perguntam sobre o caso
Celso Daniel -- e há sempre alguém, para meu desespero, a me questionar sobre o
assunto, porque não consigo responder sem argumentar com base nas raízes das
informações que detenho, e isso consome tempo, muito tempo -- e o que seria o
destino de Sérgio Gomes da Silva caso vá a júri popular, fico realmente
preocupado com o acometimento de uma tremenda besteira. A mídia, toda a mídia,
uma mais que a outra, mas toda a mídia, cristalizou as mais estapafúrdias
conclusões sobre a morte do prefeito de Santo André, eternalizadas na Internet.
O derretimento das geleiras das idiotices que viraram verdades monolíticas é
uma operação praticamente improvável. A condenação de um inocente seria
compulsória, ou quase compulsória, apesar de todas as provas técnicas em
contrário. Fermentou-se um ambiente social em que a razão perde de goleada para
a emoção.
Quase hostilidade
Depois de ver e ouvir o que vi e ouvi enquanto consumia em
pedaladas enérgicas mais de uma dezena de quilômetros sem sair do lugar, ali em
frente ao aparelho de TV, enquanto o suor escorria em meu corpo inteiro, depois
de ver e ouvir o que vi o que fizeram com Dom Odilo e com Bruno Daniel Filho,
no Roda Viva, fiquei encafifado, para não dizer estupefato.
É verdade que a prática do jornalismo se deu de fato com Dom
Odilo, apesar de alguns excessos verbais domesticados pela civilidade, mas aos
telespectadores comuns o que transpareceu entre um programa e outro certamente
foi a impressão de que o representante da Igreja cometera algum pecado capital.
Já Bruno Daniel, leigo no caso Celso Daniel, assumiu uma postura de resgate da
memória do irmão com o qual conviveu tão pouco nos 10 anos anteriores à morte e
se beneficiou da baixa profundidade dos questionamentos, exceto das
intervenções do coordenador da bancada, o jornalista Mário Sérgio Conti.
Possivelmente o grande erro dos produtores do Roda Viva no
programa em que a estrela da noite foi Bruno Daniel Filho, uma estrela sem
brilho, é verdade, tenha sido a seleção dos perguntadores. A bancada foi às
compras de informações nos arquivos, tentou se preparar para transformar a
entrevista em embate esclarecedor, mas, exceto Mário Sérgio Conti, deram mole
demais ao irmão tardiamente arrependido, explicitamente preconceituoso,
claramente discriminador e ingenuamente crente na possibilidade de estar
abafando. Se Dom Odilo foi ao Roda Viva certo de que teria tratamento
semelhante ao de Bruno Daniel, deu-se mal, embora tenha se saído muito bem.
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