terça-feira, 13 de março de 2012

"Haverá racionamento de água em São Paulo daqui a dez anos"


Benedito Braga - Vice-presidente do Conselho Mundial da Água fala sobre alternativas para combater a escassez mundial e antecipa discussões que devem gerar polêmica na Rio+20
por Larissa Veloso 

RESPEITO

Braga é uma das maiores autoridades mundiais sobre o recurso natural
Benedito Braga, 62 anos, é o homem que mais entende de recursos hídricos no Brasil e uma das maiores autoridades sobre o tema no mundo. E não é só seu Ph.D. na Universidade de Stanford (EUA) que lhe confere tais títulos. Atual vice-presidente do Conselho Mundial da Água (WWC, na sigla em inglês), ele foi responsável pelos fóruns mundiais sobre o tópico nas discussões de Haia e Kyoto, além de liderar negociações a respeito do assunto diretamente na ONU. Também é membro da diretoria da Agência Nacional de Águas (ANA), entidade que procura aprimorar o uso da água no Brasil por meio de ações como a construção de cisternas no semiárido nordestino. Benedito Braga recebeu ISTOÉ em seu gabinete na Escola Politécnica da USP para falar do futuro de um recurso do qual depende toda a humanidade.
Istoé - Como a questão da água será tratada na Rio+20?
 Benedito Braga - Na Rio+20 existem duas discussões centrais: o crescimento verde e a erradicação da pobreza. Eu e o presidente do WWC, Loïc Fauchon, visitamos o Ban Ki-moon (secretário-geral da ONU) para conversar sobre a questão da água, porque entendemos que ela desempenha um papel muito importante nesses dois temas. E, para nossa surpresa, ele estava mais interessado nesse assunto do que nós e contou uma história. Ele estava em Darfur (no oeste do Sudão) em uma época muito turbulenta. Chegou com seus seguranças e tentou falar com uma multidão que o recepcionava. Todos estavam confusos, falando ao mesmo tempo. Então ele subiu num caixotinho e só conseguiu ser ouvido quando prometeu trazer água. Quando ele falou isso, todos pararam para escutar. Moon quis nos mostrar que esse tema é muito caro para ele.
 Istoé - Mas e as discussões sobre a água na Rio+20? Como as autoridades vão se preparar?
Benedito Braga - Entre os dias 12 e 27 deste mês realizaremos o sexto fórum do Conselho Mundial da Água em Marselha (França). Esse evento será uma forma de nos prepararmos para a Rio+20. Irão participar do encontro ministros de Estado, prefeitos, parlamentares, estudiosos e membros da sociedade civil, já que o WWC é uma plataforma de múltiplos atores.
Istoé - No Brasil temos água em abundância. Isso dificulta a adoção de políticas de não desperdício?
 Benedito Braga - Observamos o desperdício de água no Sul e no Sudeste. Mas no Nordeste ninguém lava a calçada com mangueira porque há a noção clara do valor desse recurso, por causa da escassez. Hoje, graças ao trabalho da ANA, essa região já tem melhorias que permitem passar períodos bem extensos sem aquela situação de morte de pessoas pela seca, como no passado. Mas a importância da água já está no inconsciente da população. Agora, existe uma diferença entre a água que está no rio e a água que está na torneira. Há um longo caminho entre esses dois pontos. Em São Paulo, por exemplo, temos regiões nas quais chove muito, mas com pouquíssima água encanada à disposição.
 Istoé - Qual é sua avaliação sobre a disponibilidade hídrica na capital paulista?
 Benedito Braga - São Paulo se desenvolveu nas cabeceiras do rio Tietê, uma região com pouca água. A cidade começou a crescer de forma muito intensa depois da construção da represa Billings e da hidrelétrica Henry Borden. Havia muita disponibilidade de energia elétrica e São Paulo explodiu, virou potência industrial. Na década de 70, já foi necessário criar um sistema para trazer o recurso de outro lugar para a região metropolitana. Para isso os rios Jaguari, Jacareí e Piracicaba – do outro lado da Serra da Cantareira – foram represados e a água foi trazida para abastecer a região metropolitana. Isso representa metade do consumo da cidade. Então hoje o cidadão gasta água na rua, mas não tem ideia de que daqui a dez anos não vamos ter esse recurso em São Paulo.

Istoé - E como será?
 Benedito Braga - Viveremos um rodízio. Um dia com, um dia sem. Vai ter o maior problema do mundo, se não começarmos hoje as obras para trazer a água de outro local, além do sistema que existe hoje. Atualmente temos 60 metros cúbicos por segundo abastecendo a cidade, mas o consumo continua crescendo. 
Istoé - Essa água foi tirada do outro lado da Serra da Cantareira. O que aconteceu com este local?
 Benedito Braga - O comitê da bacia do Piracicaba agora reivindica essa água. Mas o comitê da bacia do Alto Tietê também quer. Porque os recursos hídricos estão se tornando cada vez mais escassos. Em 2004 essa autorização de trazer a água para São Paulo venceu. Quando aconteceu a renovação, eu era diretor da ANA. Tivemos que conversar com todas as partes, uma discussão muito complicada. Conseguimos renovar a outorga por dez anos, mas em 2014 vai vencer novamente. Então teremos que fazer outra grande negociação. Precisamos falar mais de água. Quando falamos em meio ambiente, todo mundo pensa em floresta e nos animais. Mas o problema é a água. Em qualquer grande cidade do mundo, Bombaim, Pequim, Xangai, o maior problema é a poluição hídrica na zona urbana. Precisamos limpar os nossos rios, dar água potável para a população.
 Istoé - O que o sr. pensa sobre o reúso da água?
 Benedito Braga - É uma questão de percepção. Muito da água consumida no Brasil, que sai da torneira, vem da captação feita no esgoto, de rios poluídos. O governo trata a água, ela chega limpa à torneira. Mas há o que chamamos de micropoluentes, que os sistemas tradicionais de limpeza não tiram. É preciso uma tecnologia muito avançada. Cingapura, por exemplo, está usando esse processo para tornar a água do esgoto potável novamente. A Califórnia (Estado americano), por exemplo, faz o reúso. Mas eles não jogam direto na linha (no sistema de abastecimento da cidade) como Cingapura faz, como a Namíbia faz. Eles jogam no solo, ela infiltra, e aí eles retiram de um poço, bombeiam. Isso por uma questão de percepção da população.
 Istoé - Há quem diga que a próxima guerra mundial será pela disputa de água. Qual é a sua opinião?
Benedito Braga - Ainda não temos exemplos concretos de guerras travadas pela água. O que existe é uma disputa entre Palestina e Israel, por exemplo, que é conhecida. Um general israelense dizia que é muito mais barato dessalinizar a água do que ir à guerra para usar o recurso. Então o conflito é muito mais caro do que outra solução. Mas já não é esse o caso no Egito. O país, dizem, é uma dádiva do Nilo e não existiria se não fosse esse rio. Anuar Sadat (presidente egípcio na década de 70) já dizia que o Egito só iria à guerra se tirassem a água do Nilo.
 Istoé - A diplomacia pode ser decisiva?
Benedito Braga - É evidente que, antes de acontecer uma guerra, há um processo de cooperação. Se a Etiópia e o Sudão começarem a usar a água do Nilo para irrigação, por exemplo, você terá menos água disponível. Acredito que o rio será motivo de guerra caso os dois países construam reservatórios de água que prejudiquem o consumo no Egito. Aquilo que Anuar Sadat previu vai se tornar realidade, porque aquilo é vital. Agora, afirmar que as futuras guerras serão pela água é exagerar um pouco.
 Istoé - O sr. crê que o homem chegaria a ponto de invadir um país pela água, pensando em um cenário de escassez mundial?
Benedito Braga - Não, não acredito nisso. O Brasil, por exemplo, tem 12% da água doce do mundo. Ninguém invadiria o País para tomar esse recurso, porque seria muito mais caro você usá-lo em outro território. Transportamos o petróleo a longas distâncias por décadas. No caso de alguém vir aqui na Amazônia para encher um navio de água, sai mais barato você retirar do mar e dessalinizar. O Brasil não corre esse risco. 
Istoé - A dessalinização seria uma solução para a escassez hídrica no Nordeste brasileiro?
Benedito Braga - Hoje já temos dessalinizadores para pequenas comunidades. No Nordeste é preciso ter diferentes níveis de solução de problemas. Por exemplo, você não pode resolver o problema em Fortaleza da mesma maneira que trata o de um povoado de dez ou 100 pessoas no semiárido. Para essa população rural dispersa, a água encanada é muito cara, não dá para fazer. Então em 2001 a ANA lançou o programa das cisternas, de coleta de água de chuva e um sistema de armazenamento, que dá para dessedentação. Dá para beber, mas não é suficiente para irrigar. Mas pelo menos o homem não morre de sede. Em povoados um pouco maiores, você tem dessalinizadores que usam membranas. Eles operam com energia solar, é um ótimo sistema. Sobra o resíduo, o sal. Então a Embrapa descobriu que existe uma planta chamada atriplex que vive muito bem com esse sal. E o gado come o atriplex.
 Istoé - Qual a sua opinião sobre a polêmica em torno da construção da hidrelétrica de Belo Monte?
Benedito Braga - Belo Monte não pode ser vista como uma iniciativa solta no meio da Amazônia, e sim num contexto mais amplo. O País está crescendo, está reduzindo sua pobreza, e é com o suprimento de energia que a sua economia cresce. Se nós, brasileiros, aceitarmos esse paradigma de que precisamos crescer e precisamos de energia, teremos que lidar com Belo Monte. Existem pessoas que questionam esse conceito de crescimento, que acham que temos de parar de consumir, comer menos, gastar menos e viver mais próximo dos indígenas. Bom, é uma filosofia de vida. Mas não me parece ser o pensamento da maioria da população brasileira.
 Istoé - A solução para a demanda de energia é investir em novas hidrelétricas?
Benedito Braga - Que fontes energéticas o País tem? O Brasil tem água, urânio, um carvão que não é muito bom, porque tem muito enxofre e precisa ser bem trabalhado para ser usado. E temos o vento e o sol. O primeiro é um recurso intermitente, uma alternativa que pode entrar de forma suplementar. Já a geração solar é mais adequada para aquecimento. Então contamos mesmo é com a água e o urânio para a produção de energia elétrica. E aí, no fim das contas, a pergunta que deve ser feita é: o que devemos erguer, Angra 3 ou Belo Monte?

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