Músico Tom Zé lembra histórias do ex-deputado federal
Fernando Sant'Anna, falecido semana passada; para ele, apenas, "tio
Fernando"
Cláudio Leal, na Terra Magazine
Na sala, os velhos sobreviviam ao jantar, numa conversa de
comer o sono das crianças. As mulheres e os vaqueiros caíam dentro da prosa dos
senhores, na hora em que os pratos são recolhidos e os farelos grudam no suor
do braço. Tom Zé, o Antonio José Santana Martins, mirava. Um dos palreadores
era o tio Fernando. Comunista, "mulato feijoada", tipão de sertanejo
com brilhantina. De Salvador ele trazia outros amigos do partido, gente
estrangeira. Almas vermelhas.
Garoto não se metia nas salivações dos adultos. "A
língua falada era a moeda mais valorizada", lembrará o sobrinho, o qual
seguia para a cama "mosto" das conversas, tanto quanto Baco dormitava
"mosto da uva". Esse tio Fernando começara nas mesmas lidas do
pequeno Antonio. No armazém da família, em Irará, interior da Bahia. Negócio
vindo do pai, Pompílio. A infância se aboletava no balcão. Os exercícios de
caligrafia no papel de embrulho.
"As crianças eram um investimento da família. Não
existiam para consumir brinquedos", Tom Zé relembra. "A vizinha da
frente fazia bonecos muito pobres, mas era uma vez na vida e outra na morte. O
brinquedo era trabalhar. E trabalhar no trabalho do pai era um orgulho. Tio
Fernando cuidou do armazém de fumo. E eu fiquei na loja, onde aprendi o mundo
não-aristotélico, o mundo do homem da roça". Desse universo iraraense ele
será resgatado pelos tios Gilka e Fernando Sant'Anna.
Como na música Baião Atemporal, de Gilberto Gil, "um da
família Santana" viajou "no último pau-de-arara de Irará" - e
aportou no Centro Popular de Cultura (CPC), em Salvador. Antes de engajar-se na
Tropicália, Tom Zé atuou nas agitações políticas em companhia do amigo Nemésio
Salles, além de frequentar a fauna de comunistas, simpatizantes e demais
membros da linha auxiliar. "O CPC foi meu emprego até o golpe de
1964". Na lista dos primeiros cassados pelos militares, constava o nome do
tio Fernando, que havia discursado contra a ditadura nascente, agarrado a um
microfone da Câmara Federal. O navio iugoslavo Bojyni o conduziria para o
exílio.
Sempre de terno branco, ainda mais alvo quando justaposto à
gravata vermelha, alto e másculo até a ponta do cigarro, o comunista se tornara
"uma inspiração" para os artistas da família. "Fernando comia
aquelas moças do oriente dos pés à cabeça. Tinha um cabelo quase duro. O pente
precisava ser bem duro para puxar. Um encanto. Nós todos, os sobrinhos,
namorávamos Fernando. Era uma paixão, só saberíamos depois". Sedutor, no
palanque e na Rua Chile.
"Claro que a arte dele era a da política. Mas Augusto
Boal dizia que a política é a mais importante das artes, porque o povo depende
dela para comer", Tom Zé argumenta. "O comunismo significava um
constante trabalho de fornecer opções à vida, em substituição ao modelo
capitalista. Na campanha, ele não fazia discursos, mas conferências sobre o
interesse mundial em não permitir a exploração do petróleo no Brasil. Com
palavras maravilhosas".
Em Irará, se uma menina "dava", naquele outro
sentido do verbo dar, culpava-se o credo vermelho. "O comunismo era um
desregramento sexual. Mas Luís Carlos Prestes, o líder comunista, casou virgem!
Que diabo é esse?", espanta-se o músico. Na cidade dos Sant'Anna, até a
conservadora UDN (União Democrática Nacional) se convertia no "partido
mais revolucionário".
O tempo não livrou Tom Zé das feições do menino que assistia
aos debates dos homens feitos. Em 1989, Fernando convocou o sobrinho para uma
conversa, na Bahia, depois de saber da proposta do músico britânico David Byrne
para lançar a obra do tropicalista nos Estados Unidos (o marco do ressurgimento
do compositor). Ao transmitir o principal conselho, Fernando parecia
desconhecer a obsessão do artista por trabalho:
- Cumpra horários!
Da cadeira, nas cadências maviosas de orador, o velho expôs
uma teoria:
- No Brasil, somente três classes cumprem o horário: os
padres, por causa da liturgia; os militares, pela disciplina; e os comunistas,
para não serem presos.
Essas memórias deram piparotes em Tom Zé neste 1º de março, o
dia em que o tio Fernando Sant'Anna tirou definitivamente os sapatos (como era
hábito), aos 96 anos, na Cidade da Bahia. Conclusão, não há. Nem perdas:
"O que resulta é a soma de todos os fatos determinantes da vida".
Partida de quem cumpre horário.
Nenhum comentário:
Postar um comentário