Responsabilidade de quem ?
Fábio Konder Comparato, no Conversa Afiada
A discussão a respeito do prolongado silêncio do atual Papa
em relação os crimes de terrorismo de Estado na Argentina, cometidos durante o
regime empresarial-militar de 1976 a 1983, merece uma reflexão à luz da
história do cristianismo.
São Paulo, ele próprio cidadão romano e grande propagador da
fé cristã no vasto território do império dos Césares, em carta dirigida
justamente aos cristãos residentes em Roma (capítulo 13, versículos 1 e 2),
ordenou:
“Todo homem se submeta às autoridades constituídas, pois não
há autoridade que não venha de Deus, e as que existem foram estabelecidas por
Deus. De modo que aquele que se revolta contra a autoridade, opõe-se à ordem
estabelecida por Deus. E os que se opõem atrairão sobre si a condenação.”
Esse mandamento tem sido incessantemente observado pelas
autoridades eclesiais nas várias igrejas cristãs, em todos os tempos e lugares,
qualquer que seja o regime político, ainda que altamente criminoso. No século XX, por exemplo, a
Igreja Católica colaborou oficialmente, por meio de concordatas ou mesmo da
união política, com o fascismo italiano e espanhol, com o Estado nazista na
Alemanha e em outros países por ela dominados. As inúmeras ditaduras
latino-americanas, desde o século XIX, salvo raríssimas exceções, contaram com
o apoio oficial do Vaticano.
Ora, na Argentina existe de há muito a união política oficial
da Igreja com o Estado. O atual papa lá foi o provincial (ou seja, o chefe
local) dos jesuítas, entre 1973 e 1979, antes de ser nomeado arcebispo e depois
Cardeal de Buenos Aires. Ou seja, exerceu a autoridade eclesiástica durante
todos os anos tenebrosos do regime de terrorismo de Estado, durante os quais
foram exterminados pelo menos 30.000 opositores políticos, e exiladas cerca de
um milhão e duzentas mil pessoas.
Pois bem, não se trata de saber se, alguma vez, Dom
Bergoglio, agora Papa Francisco, colaborou explicitamente com atos hoje
qualificados como crime contra a humanidade; tais como o assassínio de
opositores políticos (com ou sem desaparecimento do cadáver), as sessões de
tortura (com ou sem mutilações), ou o seqüestro e a entrega a estranhos de
recém-nascidos, cujos pais foram exterminados. O que importa, perante a
consciência ética universal, é saber se alguma vez o atual Sumo Pontífice
manifestou publicamente o seu protesto contra todos esses horrores.
Durante o governo dos dois Kirchner, o então Cardeal de
Buenos Aires não deixou de condenar duramente a oficialização do aborto, do
casamento de homossexuais e das medidas de controle da natalidade. Tais atos
seriam, porventura, mais imorais do que aquele conjunto de atrocidades
cometidas durante sete anos pelos sucessivos governos do regime
empresarial-militar?
Uma coisa, porém, é incontestável. Se a Igreja Católica
estava oficialmente unida ao Estado durante aquele regime – assim como
permanece unida até hoje –, as vítimas dos atos de terrorismo estatal têm o
direito de agir em juízo, conjuntamente contra o Estado e a Igreja Católica,
pleiteando a justa indenização pelos terríveis danos sofridos.
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