Rodrigo Vianna, direto de Caracas, no Escrevinhador
A multidão nas ruas nem sempre é boa medida para avaliar um
sistema político. Existem as multidões enfurecidas, as multidões conduzidas por
ditadores. As multidões amorfas.
Acima, vemos a multidão vermelha (foto) que tomou as ruas de
Caracas para se despedir de Chávez. Do alto, imagem que impressiona. Mas é
preciso baixar à rua e olhar a história da América Latina para compreender de
que multidão se trata.
De táxi, eu tentava me aproximar do Forte Tiúna – sede do
comando das Forças Armadas da Venezuela, onde ocorre o velório de Hugo Chávez.
O motorista que me conduzia olhava a multidão nas ruas e dizia: “quanto estão
pagando a essa gente para vir até aqui?” Ah, os taxistas…
Desci do carro, segui a pé com o cinegrafista Josias Erdei.
Multidões desciam dos morros. Mães com crianças de colo, homens jovens de mãos
dadas com as mães já alquebradas pelas idade, pais conduzindo famílias inteiras
pelas ruas. Tristeza, sim, mas sem desespero. E os gritos: “Chávez vive, la
lucha sigue”.
Essa é a multidão da democracia, tantas vezes pisoteada na
América Latina. Pisoteada no assassinato de Gaitán na Colômbia em 1948, no
suicídio de Vargas em 54, nos golpes militares do Cone Sul dos anos 60 e 70. A
multidão vermelha de Caracas é a mesma que baixou dos morros, em 2002, e
garantiu o mandato de Chávez. Os golpistas tinham as televisões, os
empresários, a classe média. Chávez tinha o povão. Ou seria o contrário: o
povão tinha Chávez, e dele não abriu mão.
É preciso lembrar sempre: a multidão precede Chávez na
história da Venezuela. Não foi Chávez que inventou a multidão, mas a contrário:
a multidão é que inventou Chavez.
1989. O governo neoliberal venezuelano anuncia um aumento
geral de tarifas. A multidão, sem líder, sem controle, põe fogo em Caracas. O
Caracazo era o sintoma de que a multidão retomava o fio da história que os
idiotas neoliberais imaginavam extinto.
A multidão do Caracazo gerou o Chávez de 92: líder de uma rebelião
frustrada. Depois, viria a vitória chavista nas urnas em 1998. E um governo
sustentado pela multidão. Sempre.
Chávez é filho da multidão, por mais que dezenas de pessoas
com as quais conversei nas ruas de Caracas tendam a ver o contrário: “era como
um pai para nós”. Ah, a eterna necessidade humana de se proteger à sombra de um
pai poderoso e justo. Mas quantas vezes são os filhos que – sem perceber –
conduzem os pais!
A multidão vermelha de Caracas tem o fio da história nas
mãos. Vejo cenas emocionantes nas ruas: gente que chora ao falar o nome de
Chávez. E um bordão que se repete, mas que não se desgasta: “Chávez somos todos
nós, Chávez é a multidão”.
Na fila que passa lentamente ao lado do caixão, senhoras
desesperadas se debruçam, fazem o sinal da cruz. Soldados fardados batem
continência. Mas às vezes tudo se inverte: o soldado chora, e mulheres batem
continência ao “comandante”.
O taxista do começo do texto, coitado, faz parte de um outro
mundo. Preso à lógica mercantil, acredita que as pessoas só se movem quando são
“pagas”. Mas a multidão de Caracas se move por outros caminhos. A multidão de
Caracas parece disposta a conduzir o fio da história.
Discursos derramados na TV. E de repente o aviso (chocante
para mim, confesso) de que Chávez será “embalsamado”. Que apego à figura do
líder! Chávez, preso numa urna de cristal, não pode fazer nada. É apenas uma
alegoria – algo fantasmagórica – num país em que a história se escreve pelas
multidão: em 89 no Caracazo, em 2002 na reação ao golpe, em tantas e tantas
eleições… E agora também na despedida do líder.
Dia seguinte, sexta-feira: a multidão interrompe sua lenta
caminhada ao largo do saguão onde ocorrre o velório. Agora são os chefes de
Estado que prestam homenagem a Chávez. Simbolicamente, Nicolás Maduro ergue uma
réplica da espada de Bolívar. E a deposita sobre o caixão.
Bolívar conduzia a multidão. Chávez foi conduzido por ela. A
multidão vermelha de Caracas faz história.
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