No estado norte-americano do Mississippi, polo da luta por
direitos civis nos anos 1960, trabalhadores e comunidade cobram da montadora
Nissan democracia e respeito ao direito humano de se organizar.
Vagner Freitas (CUT), o deputado Evans e Cayres (CMN-CUT) em
frente ao parlamento de Jackson: solidariedade (Foto: Paulo Donizetti de Souza)
Por: Paulo Donizetti de Souza
Na noite de 12 de junho de 1963, o presidente norte-americano
fazia um discurso na TV. Ele lembrava que a lei da abolição ainda não bastava
para fazer os homens “enxergarem” o que é direito. “Enfrentamos uma questão
moral: se todos os americanos podem ter direitos e oportunidades iguais”, dizia
John Kennedy, admitindo que cidadãos americanos, por ter a pele escura, não
podiam comer num restaurante público, pôr os filhos em escola pública, votar
nem ter uma vida livre e completa. “Cem anos se passaram desde que Lincoln
libertou os escravos, mas seus herdeiros, seu filhos, não são livres dos
grilhões da injustiça nem da opressão social e econômica. Este país, apesar de
sua esperança e de seu orgulho, nunca será livre até seus cidadãos serem
livres.”
Pouco antes da fala de Kennedy, o ex-corretor de seguros
Medgar Wiley Evers estacionava na porta de casa num bairro de Jackson, capital
do estado do Mississippi. No quarto, sua mulher Myrlie via TV com os três
filhos pequenos, Darrell, James Van e Reene. Todos ouviram o estampido. Medgar
saía do carro quando a bala acertou-lhe as costas, entrou pela janela,
ricocheteou na geladeira, quebrou um bule e estacionou na pia da cozinha.
Medgar Evers era um batalhador. Quando adolescente, andava
quilômetros para cursar o ensino médio porque não podia ir no ônibus dos
brancos. Mas amava seu país. Em 1943, aos 18 anos, lutou na Segunda Guerra.
Voltou sargento, formou-se em Administração e engajou-se na luta pelos direitos
da população negra – ao voto, à educação, a frequentar estabelecimentos
comerciais, a oportunidades de sonhar o sonho americano.
Quando morreu, era liderança destacada da Associação Nacional
para o Progresso das Pessoas de Cor (Naacp, na sigla em inglês), uma das
maiores entidades civis do mundo, com mais de 500 mil associados e apoiadores.
Gerente da Nissan em Canton, Dan Bednarzyk, discursa em
cerimônia dos 10 anos da unidade, para palmas do governador Phil Bryant (dir).
Na pátria mãe do liberalismo, Bryant diz que a presença de um sindicato seria
negativa para fábricas da região
Na ocasião do assassinato, seu estado ainda resistia a
aplicar a lei federal de 1954 que assegurava direito de voto aos negros, e
Medgar liderava uma campanha de boicote a postos de gasolina onde os negros
podiam abastecer automóveis, mas ir ao banheiro, não.
O empresário do ramo de fertilizantes Byron De La Beckwith
era membro do Conselho de Homens Brancos da cidade e integrante da organização
racista Ku Klux Klan. Sabia que a suspeita sobre ele lhe conferiria prestígio
na elite branca, e ao mesmo tempo contava com a impunidade. Do outro lado da
rua, largou o rifle de mira telescópica no chão e sumiu. No dia do primeiro
julgamento, em 1964, do qual saiu livre, um ex-governador o cumprimentou
efusivamente no momento em que Myrlie Evers-Williams dava seu testemunho. O
crime e a impunidade causaram comoção e manifestações.
A casa de Medgar Evers permanece como estava em junho de 1963
e foi transformada em museu. Sua curadora é Minnie White-Watson, amiga da
família que mora até hoje na mesma rua.
“Os vizinhos não os aceitavam, não por não gostar deles, mas porque
tinham medo do ativismo. Medgar sabia dos perigos que corria. As crianças não
podiam brincar na rua. Os colchões ficavam no chão, por temor de atentados. Até
coquetel molotov já foi jogado aqui”, conta.
Território fértil
O Mississippi é famoso por fornecer talentos ao mundo. Entre
eles, deuses do blues e do jazz, como Robert Johnson, Muddy Waters, John Lee
Hoocker, Lester Young, Bo Diddley, B.B. King. Elvis Presley nasceu e viveu no
estado até os 12 anos, antes de se tornar o “rapaz de Memphis, Tennessee” e rei
do rock.
O veterano ator Morgan Freeman, a popularíssima
entrevistadora Ophra Winfrey e a polêmica Britney Spears também são de lá. Mas
não foi a fertilidade cultural e artística do território nem a grandeza de
caráter como o de Evers o que atraiu empresas transnacionais à região nas
últimas décadas do século 20. O estado que já foi o maior exportador agrícola
do século 19 tem hoje a menor renda per capita dos Estados Unidos, cerca de US$
25 mil por ano.
O ambiente de miséria formado após o fim da escravidão se
consolidou com a falta de empregos de qualidade. Progrediram a concentração de
renda e a desigualdade social. E a pobreza é território fértil para as más
condições de trabalho, com pouca ou nenhuma margem de negociação entre o
empregador e os empregados. Para instalar uma fábrica na cidade de Canton em
2003, por exemplo, e ali criar 4 mil postos de trabalho, a montadora japonesa
Nissan, controlada pela francesa Renault, obteve do estado subsídios fiscais de
US$ 425 milhões e 30 anos de desoneração tributária.
Hoje, prestes a se completarem 50 anos da morte de Medgar
Evers, organizações estudantis, igrejas, associações comunitárias e
parlamentares comprometidos com causas sociais se ocupam de novos desafios, sem
perder de vista aqueles provocados pela opressão racial. A luta por direitos
humanos como serviços públicos de educação, saúde, cultura ocupa como nunca a
agenda dos movimentos do Mississippi. Inclusive a liberdade dos trabalhadores
de se organizar por trabalho decente.
Nos Estados Unidos, não há legislação trabalhista
consistente. Direitos como férias, licença-maternidade, auxílio-acidente,
seguro-saúde, aposentadoria, participação nos resultados, indenização por
demissão imotivada, 13º salário – tão elementares para os trabalhadores formais
no Brasil – só são possíveis aos norte-americanos em duas situações: por
liberalidade da empresa ou por negociação firmada por sindicatos.
“Mas se os direitos
não são protegidos por contrato, por meio da negociação coletiva, não há
liberalidade que os garanta. Nada define se determinada empresa vai manter,
reduzir ou excluir certos direitos quando bem entender”, afirma o diretor do
United Auto Workers (UAW) Richard Bensinger, que coordena na região campanha
pelo direito à sindicalização na Nissan.
O UAW é o sindicato que representa metalúrgicos dos Estados
Unidos, Canadá e Porto Rico. No país de Barack Obama, para que uma entidade
seja representante dos funcionários de uma fábrica, a filiação precisa ser
referendada por 50% mais um do quadro de pessoal. E, para que essa votação
aconteça, tem de ser reivindicada formalmente por pelo menos 30% dos
empregados. Não é fácil. Apenas 7% dos trabalhadores do setor privado
norte-americano estão protegidos por acordos coletivos firmados entre entidades
sindicais e empresas no país. É o mais baixo índice de sindicalização da
história é resultado dos ataques aos movimentos desferidos nos últimos 30 anos.
No caso da Nissan, a dificuldade é ainda maior. A montadora,
segundo os dirigentes do UAW, mantém um clima ameaçador em suas dependências. E
produz uma anticampanha no interior da fábrica em Canton, pela qual dissemina
recados intimidadores, do primeiro contato com o RH, no momento da admissão, a
reuniões periódicas nos locais de trabalho.
A prática causa reações iradas no Mississippi, onde a
montadora desfruta de agrados tributários. A luta pelo direito à sindicalização
une parte dos políticos locais e movimentos sociais. “Queremos apenas o direito
a uma eleição limpa e que cada parte expresse seu ponto de vista
democraticamente”, diz o deputado estadual Jim Evans, do Partido Democrata.
Medgar estaria aqui
Movimentos de juventude e estudantis põem pilha na campanha.
No final de janeiro, o UAW promoveu eventos com a comunidade de Jackson.
Movimentos de juventude e estudantis põem pilha na campanha.
No final de janeiro, o UAW promoveu uma semana de eventos com a comunidade de
Jackson, que parece abraçar a causa. Das reuniões com vários atores sociais –
nas sedes dos Poderes Legislativos locais, em universidades, com estudantes e
acadêmicos – participaram os sindicalistas brasileiros Vagner Freitas,
presidente da CUT, e João Cayres, secretário de Relações Internacionais da
Confederação Nacional dos Metalúrgicos (CNM-CUT).
O senso de integração está expresso no mote da campanha: Do
better together, façamos melhor juntos. “O bem-estar dos trabalhadores está
diretamente associado ao bem-estar da comunidade”, afirma a professora Daphne
Chamberlain, diretora do instituto Cofo, hoje mantido pela Universidade do
Mississippi. “Os trabalhadores merecem fazer valer seu direito humano de se
organizar e poder sentar à mesa em seu local e trabalho com o empregador para
negociar a solução de conflitos”, diz um documento distribuído por jovens da
Aliança Estudantil pela Justiça (SJA).
Vagner Freitas disse
aos estudantes que considera sua participação um exemplo de maturidade. “Não há
educação plena se a instituição escolar se descola da realidade. E a luta pelos
direitos civis prossegue em outro patamar, quando o estudante de hoje se tornar
o trabalhador amanhã. Então, construir um movimento sindical e respeitado
também é missão do movimento estudantil”, afirmou o presidente da CUT.
A vice-reitora da Universidade Tougaloo, Betty Parker-Smith,
associou o apoio ao movimento à própria história da instituição. Ela lembra que
o campus existe há 144 anos, instalado após a Guerra Civil e a derrota dos
escravocratas num local que era sede de fazenda escravagista. “Os prédios são
os mesmos, e há sangue de afro-americanos em toda parte. Os antigos
proprietários devem se revirar no túmulo. Esta escola criada para abrigar
jovens recém-colocados em liberdade tornou-se um santuário dos movimentos
sociais. Trazer essa luta pelo direito de sindicalização para cá faz parte da
preparação dos alunos para o mundo globalizado”, diz Betty.
Danny Glover lembrou Medgar Evers, cuja casa virou museu em
memória da luta pelos direitos civis; Minnie cuida do acervo
Numa manifestação que lotou o auditório da universidade com
mais de 500 pessoas, Cayres, da CMN-CUT, disse que a postura da empresa na
região surpreende.
“Existe uma unidade da
Renault no Brasil, onde já existe sindicato, e outra da Nissan prestes a ser
instalada, onde também já há sindicato. É uma surpresa que nos Estados Unidos,
supostamente a maior democracia do mundo, haja esse tipo de restrição”, criticou.
O ator Danny Glover, conhecido por sua atuação em filmes como
Máquina Mortífera ou a Cor Púrpura e também por sua participação em causas
sociais, era um dos oradores mais esperados no ato da Tougaloo. “Estou aqui
para ser parte do que vocês estão fazendo. O movimento prospera com apoio
externo. Vocês não estão sós. Eu penso que Medgar Evers, que tinha apenas 37
anos quando morreu, estaria exatamente aqui e agora”, disse.
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Direitos globalizados
“Numa economia
globalizada, os direitos também têm de ser globalizados.” Assim o presidente da
CUT, Vagner Freitas, justifica o apoio da central ao movimento do UAW.
Para os sindicalistas, a política da Nissan tem de ser vista
com apreensão e como ameaça de retrocesso aos padrões da relação
capital-trabalho do século 19.
Por isso a briga caminha para uma dimensão internacional. “Se
não interrompermos essas estratégias de ataque aos sindicatos nos Estados
Unidos, as multinacionais e seus aliados políticos passarão a usá-las em outras
economias em desenvolvimento”, alerta o presidente da entidade, Bob King.
Para o professor Lance Compa, da Universidade de Cornell,
estado de Nova York, a fábrica está errada. “Em outras regiões onde sindicatos
e empresas se relacionam democraticamente, se constroem bons acordos e as
empresas vão muito bem”, critica. O professor lembra que a companhia fere
princípios básicos de convivência entre empregadores e empregados estabelecidos
por organismos como a Organização Internacional do Trabalho (OIT), que reúne
representantes do capital e do trabalho e de governos, e a Organização para a
Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), associação de 34 países ricos,
com sede na França.
O presidente da CUT lembra que os planos da montadora no
Brasil estão associados ao bom momento econômico, com nível de emprego e de
renda em alta há dez anos. “Se o momento em nosso país é bom para a estratégia
da empresa, será bom também se conseguirmos expandir essa campanha até lá”, diz
Freitas. A Força Sindical também participará da próxima reunião internacional
programada pelo UAW para este mês de março, no Mississippi, com centrais do
mundo todo. A ideia é disseminar as denúncias das práticas autoritárias da
Renault-Nissan nos demais mercados consumidores onde atua.
Em Curitiba, onde fica a fábrica da Renault, e em Resende
(RJ), onde a Nissan se instalará, os sindicatos locais são ligados à Força. A
unidade de Resende terá investimentos de R$ 2,5 bilhões para entrar em
atividade em 2014 e meta de produzir 200 mil veículos por ano para elevar sua
participação, de menos de 2% para 5%, no mercado brasileiro. “Boa parte desses
investimentos sairá de linhas de crédito do BNDES. Será importante conversarmos
com o principal banco de fomento do país para que os empréstimos tenham como
contrapartida a garantia de trabalho decente, no Brasil e no mundo”, defende o
presidente da CUT.
No início de fevereiro, em Washington, o ex-presidente Luiz
Inácio Lula da Silva foi convidado a fazer o discurso de abertura de uma
conferência do UAW. E ganhou um reforço mundialmente respeitado a sua campanha.
“Como se pode falar em democracia e em liberdade se não há liberdade de o
trabalhador se organizar?”, criticou.
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Aos que vierem depois
Não fosse pelo asfalto no lugar da poeira e pelos automóveis
no lugar das diligências, caminhar pelo centro de Canton remeteria a um cenário
de filme de caubói.
A população tem menos de 14 mil habitantes e quase um terço
trabalha na Nissan. Três em cada quatro funcionários da companhia são negros. A
elite mais bem paga reside em casas de alto padrão em condomínios bem
ajeitados, enquanto a maioria vive em vilarejos periféricos. O poder político
do coronelismo branco também lembra o tempo das diligências.
Recentemente, o governador do Mississippi, o republicano Phil
Bryant, teria dito num evento em Oxford que a existência de sindicato tem
efeitos negativos para as indústrias automobilísticas na região sul e
encorajaria o setor a se opor radicalmente aos processos de sindicalização.
O operário Lee Ruffin, técnico em manutenção na fábrica,
sugere que o governador deveria “descer aqui embaixo para trabalhar” e
verificar a realidade. Lee chegou a ser acomodado com as condições de trabalho,
mas nos últimos anos tornou-se ativo defensor da sindicalização. “As coisas
começaram a descer ladeira abaixo”, conta. “Houve perda de benefícios, aumento
do valor do seguro-saúde, interrupção de contribuições da empresa ao fundo de
pensões e, de outro lado, aceleração do ritmo de trabalho, aumentos dos
acidentes e da tensão.”
Lee e sua mulher, Patricia, receberam a reportagem em sua
casa. Contam que se tornaram árduos defensores de um processo limpo e
democrático para que os empregados decidam por si próprios pela entrada do UAW
na fábrica. “Sem um acordo coletivo negociado que tenha força de lei, nossos
direitos nunca estarão garantidos. Ontem tinha, hoje não tem. E sem sindicato
não há acordo coletivo”, diz Patricia, analista de processos e contratada desde
a instalação da fábrica, em 2003. “A empresa insiste que a maioria não quer o
sindicato, mas não se expões às urnas.”
Eles se sentem inseguros. “Estou para completar dez anos de
casa e prestes a ter direito a duas semanas de férias – quem tem entre cinco e
dez anos tem direito a uma. Não duvido nada que mexam com minha contagem de
tempo para reduzir minha férias. Sem acordo coletivo, ditam as regras”,
preocupa-se Lee.
Patricia também receia que as atividades do casal provoquem
retaliações e isolamento. “Acabamos de comprar esta casa e temos a vida toda
pela frente para pagar.” Mas ambos preferem ter lutar a esperar que as coisas
aconteçam. “Lutamos por dois grandes sonhos: um é poder se aposentar e ter mais
tempo para cuidar do nosso jardim. Mas antes disso queremos alcançar o direito
de sindicalizar, para que os que vierem depois tenham maior força e segurança
para ir atrás de seus sonhos.”
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