Presidente da Venezuela desde 1999, Hugo Chávez, morto na
terça-feira 5, foi uma figura polarizadora, capaz de gerar amor e ódio em seu
país e na América do Sul. Críticas a suas tendências por vezes autoritárias e
ao desprezo a outros poderes da democracia são corriqueiras, mas, após sua
morte, o ponto de maior discórdia deve ser a respeito do que Chávez fez pelos
pobres venezuelanos. Segundo números do Banco Mundial, entre 2003 e 2011 o
índice de pobreza no país caiu pela metade (de 62,1% para 31,9%). Para muitos
analistas, é um feito e tanto. Para outros, não foi suficiente, pois faltou a
Chávez ser capaz de institucionalizar mudanças que poderiam colocar a Venezuela
numa rota sustentável de redução da desigualdade.
Para Luiz Fernando Sanná Pinto, ex-professor da Escola de
Sociologia e Política de São Paulo (Fesp-SP) e hoje pesquisador visitante do
Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade Columbia (Estados
Unidos), o maior legado de Chávez supera essa discussão. Para Pinto, que morou
na Venezuela entre 2011 e 2012, Chávez provocou alterações profundas na
Venezuela. Depois de sua passagem pelo poder, ficou impossível para qualquer
força política, chavista ou não, ignorar o povo. Ainda segundo o pesquisador a
saída de cena de Chávez não vai diminuir a polarização da política venezuelana.
O chavismo terá um perfil mais discreto, mas vai continuar forte.
CartaCapital: Qual é
o legado de Hugo Chávez?
Luiz Fernando Sanná Pinto: O legado de Chávez, de certa
forma, é o resgate de uma população que ficou totalmente esquecida depois de
mais de 20 anos de crises econômicas recorrentes após o grande boom da década
de 1970. Essas crises econômicas se tornaram uma crise político-institucional,
momento em que os venezuelanos não só empobreceram como perderam alguns
direitos. Chávez não só teve essa virtù de resgatar o povo esquecido durante as
décadas de 1980 e 1990 como também teve a sorte de contar com um cenário
internacional bastante favorável por conta dos preços do petróleo. Isso
garantiu todas as condições para criar a ideia, na figura do Chávez, muito
carismática, de algo equivalente ao “pai dos pobres” venezuelano. É uma ideia
mitológica de Chávez, como sendo ele próprio a expressão do povo. Após Chávez,
tanto para o governo como para a oposição, não é mais possível fazer política
sem povo na Venezuela, como ocorreu a partir da década de 1980, quando a
política no país se tornou uma questão de cúpula.
CC: Com a morte de
Chávez, o chavismo continuará a existir?
LFSP: Sim, pois o chavismo como tal é muito forte na
Venezuela. Muitos dizem que o chavismo é muito mais do que uma força política,
é quase uma forma de pensar hoje de boa parte da população venezuelana, sobre
como deve ser a relação entre o Estado e parte dos cidadãos. Sobretudo agora
neste primeiro momento vai haver uma unidade muito forte no chavismo e
provavelmente eles devem ganhar as eleições sem grandes problemas, mas sem
Chávez o chavismo vai ser outra coisa, bem diferente do que foi quando ele
estava vivo.
CC: Quais serão as
diferenças do novo chavismo, caso continue no poder?
LFSP: O novo governo chavista deve ser diferente dos governos
Chávez, entre outras coisas, porque as próprias articulações políticas dentro
do chavismo vão ser totalmente diferentes. Provavelmente haverá muito mais
conflito por poder, digamos assim, do que existiu até hoje com uma única
liderança inconteste e impossível de ser suplantada por outra figura. A
influência do chavismo é grande e essa nova relação entre o povo e o Estado não
vai ser mudada, nem mesmo no médio prazo, tanto que a oposição tem modificado
seu discurso para se adequar ao que foi criado por Chávez e pelo movimento
chavista.
CC: O que Chávez fez
para garantir a perpetuação do chavismo mesmo sem sua presença?
LFSP: O principal foi alterar a estrutura do Estado no
sentido de garantir que parte da renda petrolífera, que aumentou muito nos
últimos anos, tanto em função das mudanças no preço do petróleo como em função
da legislação petrolífera e dos royalties na Venezuela, passasse a ser, de
forma muito mais direta, transferida à população por meio de programas sociais,
principalmente na área da saúde e também, de forma indireta, como subsídios
para certos alimentos e produtos considerados essenciais. Nenhuma força
política na Venezuela, seja ela chavista ou não, vai alterar essa política
social. Podem até mudar a forma, mas o conteúdo dela dificilmente seria
alterado, porque a população espera isso.
CC: Você mencionou
uma disputa de poder dentro do chavismo. As principais figuras agora serão
Nicolás Maduro e Diosdado Cabello?
LFSP: Na eleição certamente a única figura do chavismo que
vai aparecer é Nicolás Maduro. Neste momento de comoção o chavismo vai se unir
para garantir sua vitória. No governo Maduro, no entanto, possivelmente algumas
figuras vão querer aparecer e jogar politicamente para isso. Uma delas deve ser
Diosdado Cabello, com uma ascendência muito grande sobre o setor militar, que é
importante na Venezuela, mas existem outras também ainda sem muita evidência ou
ascensão, como é o caso de Elias Jaua [ex-vice-presidente, agora chanceler] e
de Rafael Ramirez, o todo-poderoso da PDVSA [estatal petrolífera], muito
importante na máquina do Estado venezuelano. Mas esses conflitos não devem
aparecer agora, pois o chavismo trabalhou muito nos últimos meses para garantir
o mínimo de unidade e ganhar outra eleição.
CC: Uma figura como
Maduro pode atenuar a polarização da política venezuelana?
LFSP: O Maduro seria uma figura bastante pragmática. Do ponto
de vista do estilo ele é muito mais aberto e menos duro do que Chávez para
negociar com outras forças políticas. Como ele tem background sindical, ele
está muito mais aberto a negociar do que um político com origem militar, que
tem outro tipo de raciocínio para a tomada de decisão. Isso tudo, no entanto, é
muito abstrato. Dada a realidade política venezuelana, dificilmente vai haver
uma despolarização. Até porque para a oposição esse pode ser entendido como um
grande momento para possivelmente conquistar a presidência, que na Venezuela é
muito mais importante do que no Brasil. Na Venezuela, os governos estaduais e
municipais têm muito menos poder, dado que é uma estrutura que historicamente
sempre foi muito mais centralista. A presidência faz quase tudo na política
venezuelana, então dificilmente haverá uma mitigação dessa polarização que se
tornou característica da política venezuelana nos últimos anos.
CC: O que esperar da
oposição após a morte de Chávez?
LFSP: Em princípio os opositores não devem refazer seu discurso,
mas um elemento que a morte da Chávez traz, e está sendo discutido nos últimos
meses na Venezuela é o seguinte: ao mesmo tempo em que Chávez garantia a
unidade do chavismo, ele também garantia unidade dentro do campo opositor. Sem
a figura do Chávez, a possibilidade de fragmentação da oposição fica muito
maior. Provavelmente a oposição mais forte e com mais viabilidade eleitoral,
que acabou se expressando na figura do [Henrique] Capriles, vai manter o mesmo
discurso das eleições do ano passado. Parte da oposição, entretanto, pode
radicalizar o discurso, achando que esse é o momento de derrotar o chavismo
eleitoralmente ou em qualquer tipo de crise institucional que possa haver neste
período de comoção dos próximos dias. Isso certamente vai mostrar que elementos
da oposição têm estratégias diferentes e lideranças com projetos de curto e
médio prazo diferentes.
CC: Chávez era visto
como um líder por políticos como os presidentes do Equador, Rafael Correa, e da
Bolívia, Evo Morales. Esses governos serão afetados pela morte de Chávez?
LFSP: A tendência é que a relação com a Venezuela continue a
mesma. O Maduro foi muito tempo chanceler da Venezuela e de certo modo
coordenava boa parte dos projetos de cooperação. Se a oposição chegasse ao
poder certamente haveria uma mudança importante na política externa, mas,
prosseguindo o chavismo, haverá continuidade. O perfil, no entanto, será muito
mais discreto, pois a liderança venezuelana chavista com certeza não terá o
mesmo carisma de Chávez.
CC: Segundo muitos analistas
uma das bases da sobrevivência do regime cubano é a cooperação econômica com a
Venezuela. A relação com Cuba vai mudar?
LFSP: Caso o Maduro ganhe as eleições, provavelmente as
relações com Cuba vão permanecer iguais. Caso a oposição ganhe, certamente vão
ser bastante alteradas. Provavelmente não seriam rompidos todos os acordos, até
porque isso teria uma repercussão política interna muito forte. Mas, com o
chavismo, não mudaria. O próprio Chávez trabalhou bastante para garantir que os
acordos de cooperação com Cuba sejam uma das características do chavismo como
um todo. Alguns dos projetos de cooperação internacional são elementos
integrantes da política de legitimação interna do regime. Os acordos com Cuba,
por exemplo, são fundamentais para as políticas na área de saúde. Hoje há 30
mil médicos cubanos morando na Venezuela, em favelas, atendendo a população
mais pobre. Existe um custo da manutenção da política externa, que deve ser
sempre considerado.
CC: A presidenta
Dilma Rousseff mencionou que nem sempre seu governo concordou com Caracas.
Houve algum tipo de diferença entre Brasil e Venezuela recentemente?
LFSP: Discussões públicas certamente não houve. O que há é
uma diferença de abordagem com relação aos temas internacionais de forma geral.
Embora em termos de conteúdo não haja essa diferença toda – as votações na ONU
e em outras instâncias internacionais convergem – do ponto de vista da forma há
uma diferença bem grande. O governo venezuelano tem um discurso muito mais
radical e revisionista da ordem internacional, bem diferente do discurso
brasileiro, reformista. Em certos momentos o discurso divergiu, mas isso jamais
se expressou nas relações bilaterais, até porque o perfil da política externa
brasileira não é de realizar esse tipo de discussão publicamente.
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