Organização que une empresários,
imprensa e oposição ao governo lembra cenário do golpe de 1964. Seu poder de
propagar intrigas e más notícias, porém, não tem sido capaz de superar a
solidez e os resultados do projeto político em vigor.
Por: Lalo Leal
Kamel, da Globo, e Serra durante
debate eleitoral: mídia conservadora perdeu no campo democrático (Foto: Marlene
Bergamo/Folhapress)
O economista Cristiano Costa foi
recebido em fevereiro pelo pessoal do grupo A Tarde, em Salvador. A companhia
de comunicação, que tem provedor e portal na internet, agência de notícias,
jornal impresso, emissora de FM, gráfica, reuniu seus profissionais para
servirem-se de uma palestra da série Millenium nas Redações. Blogueiro e
professor de uma universidade capixaba chamada Fucape Business School, Costa é
também colaborador cativo do Instituto Millenium, articulador desses eventos
destinados a “aprimorar a qualidade da imprensa no Brasil”.
A base de sua explanação são seus
artigos reproduzidos no site do instituto, em que critica duramente a política
econômica do governo e ataca sem rodeios o ministro da Fazenda, Guido Mantega.
Em um deles, cita o programa Minha Casa, Minha Vida como um dos responsáveis
por inflacionar o setor imobiliário. Isso num ambiente em que até os preços de
imóveis de alto padrão dispararam. As pessoas estão mais seguras no emprego e
foram comprar, a queda dos juros levou mais gente a ter acesso a crédito, ou
mais gente a tirar dinheiro de aplicações financeiras para investir em imóveis.
Há muitos fatores em jogo, mas lá vai o programa federal destinado a famílias
de baixa renda pagar o pato da especulação.
Outras redações de jornais e
revistas foram brindadas pelo Millenium com palestras sobre assuntos variados,
da reforma do Judiciário à assustadora “crise econômica”. O currículo dos
palestrantes, colaboradores do instituto, explica o objetivo real das
palestras: consolidar no meio jornalístico o papel oposicionista da mídia
brasileira.
Há algum tempo os ambientes de
redação eram conhecidos por ter profissionais críticos, independentes, e o
direcionamento da informação era resultado da sintonia dos editores com os
donos dos veículos. Não era incomum a conclusão do jornal ou da revista acabar
em atrito entre repórter e superiores. Agora, os donos dos veículos preferem
formar “focas” que já cheguem às redações comprometidos com suas crenças.
Essas crenças, recheadas de
interesses políticos e econômicos, vêm sendo difundidas de maneira afinada
pelos meios de comunicação reunidos no Millenium. Resultado concreto desse
trabalho pôde ser visto neste início de ano. Três assuntos, alardeados como
ameaças ao país, ocuparam as manchetes dos grandes jornais e foram amplificados
pelo rádio e pela TV: apagão, inflação e crise na Petrobras.
Além do noticiário parcial,
analistas emitiam previsões catastróficas. Como elas não se confirmavam, o
assunto era esquecido e logo substituído por outro. No dia 8 de janeiro, o
jornal O Estado de S. Paulo estampou na capa: “Governo já vê risco de racionamento
de energia”. Um dia antes a colunista da Folha de S.Paulo Eliane Cantanhêde
chamava uma reunião ordinária, agendada desde dezembro, de “reunião de
emergência” do Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico convocada às pressas
por Dilma para tratar do risco de racionamento. Diante da constatação de que a
reunião nada tinha de extraordinária, a Folha publicou uma acanhada correção.
Como de costume, o tema foi sendo lentamente deixado de lado. O risco do
“racionamento” desapareceu.
Pularam para o “descontrole” da
política econômica e a ameaça de um novo surto inflacionário. “Especialistas”
tentavam, a partir dos índices de janeiro, projetar uma inflação futura capaz
de desestabilizar a economia. Aproveitavam para crucificar o ministro Mantega,
artífice de uma política que contraria interesses dos rentistas nacionais e
internacionais: a redução dos juros bancários está na raiz da gritaria.
Não satisfeitos, colocaram a
Petrobras na roda, responsabilizando a “incapacidade administrativa” dos
dirigentes da empresa pela redução dos dividendos pagos aos acionistas. Sem
considerar que, dentro da estratégia atual de ação da Petrobras, os recursos de
parte dos dividendos retidos passaram a contribuir para o desenvolvimento do
país na forma de novos investimentos.
Variações de uma nota só
Aparentemente isoladas, essas
versões jornalísticas são, na verdade, articuladas a partir de ideias comuns
que permeiam as pautas dos principais veículos. No site do Instituto Millenium
elas estão organizadas e publicadas de maneira clara. O Millenium diz ter como
valores “liberdade individual, propriedade privada, meritocracia, Estado de
direito, economia de mercado, democracia representativa, responsabilidade
individual, eficiência e transparência”. Faz lembrar a ex-primeira-ministra britânica
Margaret Thatcher, que chegou a dizer que só o indivíduo existe, a sociedade é
ficção.
Fundado em 2005, o Millenium foi
oficialmente lançado em abril de 2006 com o apoio de grandes empresas e
entidades patronais lideradas pela Editora Abril e pelo grupo Gerdau. Trata-se
de uma liderança significativa, pois reúne uma empresa propagadora de ideias e
valores e outra produtora de aços, base de grande parte da economia material do
país. A elas juntam-se a locadora de veículos Localiza, a petroleira norueguesa
Statoil, a companhia de papel Suzano, o Grupo Estado e a RBS, conglomerado de
mídia que opera no sul do Brasil. A Rede Globo, como pessoa jurídica, não
aparece na lista, mas um dos seus donos, João Roberto Marinho, colabora.
Essa integração entre empresas de
mídia e empresários faz do Millenium uma organização capaz de formular e
difundir programas de ação política em larga escala, com maior capacidade de
convencimento do que muitos partidos políticos. Com a oposição partidária ao
governo enfraquecida, ocupa esse espaço com desenvoltura.
Apesar do apego declarado à
democracia, alguns dos colaboradores não escondem o desejo de combater o
governo de qualquer forma. É o que está explícito na fala de outro de seus
colaboradores, o articulista Arnaldo Jabor, quando num dos eventos promovidos
pelo instituto disse: “A questão é: como impedir politicamente o pensamento de
uma velha esquerda que não deveria mais existir no mundo?”
Essa articulação faz lembrar a de
organismos privados como o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad),
fundado em 1959, e o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), nascido
em 1961. Ambos uniram empresários e mídia conservadora na formulação e
divulgação de ideias que impulsionaram o golpe de 1964.
“Ipes e Ibad não eram apenas instituições que
organizaram uma grande conspiração para depor um governo legítimo. Elaboraram
um projeto de classe. O golpe foi seguido por uma série de reformas no Estado
para favorecer o grande capital”, lembra o pesquisador Damian Bezerra de Melo,
da Universidade Federal Fluminense (UFF).
No cenário atual, de decadência
do modelo neoliberal e de consolidação de políticas desenvolvimentistas no
Brasil, o Millenium seria um instrumento ideológico para dar combate a esse
processo transformador. “Nos anos 1990 ocorreu a disseminação da ideologia do
pensamento único, de que o capitalismo triunfou, o socialismo deixou de existir
como projeto político”, lembra a historiadora Carla Luciana da Silva, da
Universidade do Oeste do Paraná. “Quando surgem experiências concretas que
podem desafiar essas ideias, aparece em sua defesa uma organização como o
Millenium para manter vivo o ideal do pensamento único.”
A difusão dessas ideias não é
feita por meio de manifestos ou programas partidários, como observa a pesquisadora.
“É muito difícil pegar uma revista como a Veja ou um jornal como a Folha de
S.Paulo e conseguir visualizar os sujeitos que estão produzindo as ideias
defendidas ali. Cria- se uma imagem do tipo ‘a’ Folha, ‘a’ Veja, como se fossem
sujeitos com vida própria. É uma forma de não deixar claro em nome de que
projeto falam, como se falassem em nome de todos.”
Memórias de um golpista: Lincoln
Gordon com o general Castelo branco: a Cia patrocinou a ação de 1964
Contra as versões, fatos
Conhecendo as ações do instituto
e seus personagens fica mais fácil compreender como certos assuntos tornam-se
destaque de uma hora para outra. A presença nos quadros do instituto de
jornalistas e “especialistas” com acesso fácil aos grandes meios de comunicação
leva suas “notícias” rapidamente ao centro do debate nacional. E fica difícil
contra-argumentar com colaboradores do Millenium, não pela qualidade de seus
argumentos, mas pela força de persuasão dos veículos pelos quais difundem suas
ideias.
Como retrucar, com igual alcance,
comentários de Carlos Alberto Sardenberg, na CBN, de Ricardo Amorim, na IstoÉ,
na rádio Eldorado e no programa Manhattan Connection, da GloboNews, de José
Nêumanne Pinto, no Estadão e no Jornal do SBT, de Ali Kamel, diretor de
jornalismo da TV Globo, entre tantos outros?
Não é mera coincidência a
preferência dos integrantes do Millenium pela subordinação do Brasil aos
grandes centros financeiros internacionais e sua ojeriza diante das relações
harmônicas entre governos latino-americanos. Trata-se de uma tentativa de
ressuscitar um projeto político implementado durante a ditadura que só passou a
ser confrontado, ainda que parcialmente, a partir de 2003, com a posse do
governo Lula.
Mas parece não haver espaço para
uma hipótese golpista, apesar do já citado dilema de Jabor. Para a professora
Tânia Almeida, da Unisinos de São Leopoldo (RS) e diretora de relações públicas
da Secretaria de Comunicação do Rio Grande do Sul, um dos ganhos da crise
política de 2005, com a questão do chamado “mensalão”, foi ter forçado análises
e estudos em busca de explicações de como o então presidente Lula conseguiu
suportar tanta notícia negativa e manter elevados índices de aprovação.
“Não era só carisma. Desde 2003, havia uma
gestão de governo em funcionamento. Não existia somente aquilo de que os
jornais e revistas tratavam, não era só escândalo. Outra proposta política
estava acontecendo”, observa Tânia. Para a professora, os avanços sociais
alcançados não permitem crer em crise que leve a uma ruptura institucional. “O Millenium
é um agente articulador, social, político, que pode fomentar e aquecer debates,
mas não teria potencial para causar uma crise nos moldes de 1964. O poder de
influência da mídia ficou relativizado desde 2006 em função dessa política que
chega lá na ponta e inclui quem estava fora.” Damian Melo, da UFF, tem visão
semelhante, mas com um pé atrás: “O Millenium não possui hoje estratégia
golpista. Quer emplacar seu projeto, e isso pode ser pela via eleitoral mesmo.
Muito embora nossa experiência nos diga que é melhor ficarmos atentos”.
Colaborou Rodrigo Gomes
O Ibad como modelo
Por Mauro Santayana
O Ibad foi a mais descarada forma
de intervenção norte-americana no processo político brasileiro, mas não a
primeira. No governo Dutra (1946-1951), o grande desembarque econômico
norte-americano no Brasil, os ianques agiam com desenvoltura na vida
brasileira. Nessa fase, denominada pelo historiador Gerald K. Haines como
“americanização do Brasil”, editoriais dos grandes matutinos cariocas chegaram
a ser redigidos na Embaixada dos Estados Unidos.
O Ibad nasceu da esperteza de um
negocista, Ivan Hasslocher. Ele criou a agência de publicidade Incrementadora
de Vendas Promotion para servir como operadora do sistema e levantou milhões de
dólares da CIA e de empresas norte-americanas, a fim de eleger parlamentares de
direita – já no fim do governo Juscelino, em 1959. Após a renúncia de Jânio
Quadros, em 1961, passou a atuar descaradamente.
Clandestinamente, o instituto
financiou, com a cumplicidade do deputado de extrema direita João Mendes, a
formação de sua própria bancada de parlamentares comprometidos com sua
orientação ideológica. O embaixador norte-americano no Brasil naquele período,
Lincoln Gordon, confessou, depois, que a CIA fora a principal fonte pagadora de
Hasslocher.
Uma CPI foi instalada em 1963
para investigar o instituto, mas não pôde ir adiante. Seus membros mais ativos
– Eloy Dutra, José Aparecido de Oliveira, João Dória, Benedito Cerqueira,
Bocaiúva Cunha – foram cassados em 1964. Outro membro ativo, Rubens Paiva,
seria assassinado pelo DOI-Codi em 1971.
Jango foi corajoso ao suspender
as atividades do Ibad duas vezes, por 90 dias, até que a Justiça mandou fechar
a instituição. Mas já era tarde. Hasslocher e seus assalariados continuaram a
atuar clandestinamente, em associação com o Ipes. O Ibad tinha também em sua
folha de pagamentos a jornalistas, sem falar na adesão “gratuita” dos donos dos
grandes jornais – com exceção do Última Hora.
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