Josie Jeronimo
Um dos protagonistas do julgamento do mensalão, o
procurador-geral da República, Roberto Gurgel, enfrenta um ambiente diverso
dentro da própria instituição comandada por ele. A voz dissonante é
personificada pelo professor de direito Luiz Moreira. No dia 6 de março,
Moreira confirmou sua condição de representante da Câmara dos Deputados no
Conselho Nacional do Ministério Público, órgão encarregado de controlar e
fiscalizar a atividade do MP. Desde então, Gurgel, cujo mandato termina em
agosto, anda inquieto. Embora Moreira pretenda ficar longe da disputa entre os
candidatos, dependendo do barulho que ele fizer, Gurgel pode ter seus planos de
emplacar o sucessor no comando do MP Federal dificultados. A principal crítica
de Moreira refere-se ao excesso de gastos promovidos pela atual gestão. A mais
recente acusação é de que o procurador-geral estaria preparando um aumento de
30% em subsídios, com a criação de auxílios-moradia e alimentação de R$ 900 por
mês. “Esses benefícios irão aumentar em R$ 5 mil os vencimentos dos membros do
Ministério Público, que assim passarão do teto constitucional de R$ 28.059”,
critica o conselheiro.
Moreira atua na contracorrente do movimento de políticos,
juristas e cidadãos que, a partir das denúncias de corrupção contra o governo
Fernando Collor, levou à transformação do Ministério Público num organismo cada
vez mais autônomo e poderoso. Para o professor especialista em teoria do estado
e filosofia do direito, o crescimento do Ministério Público, acompanhado pela
ampliação de poderes acumulados pelo Supremo Tribunal Federal, coloca em
questão os fundamentos da Constituição-cidadã de 1988. “A base da nossa
Constituição é o voto popular e por isso ela privilegia os representantes
eleitos pelo povo. A judicialização leva a uma República aristocrática, que
privilegia decisões e concentra poderes entre os integrantes de um poder não
eleito, o Judiciário”, afirma Moreira. Como exemplo, ele recorda as
intervenções recentes do Supremo no debate sobre royalties do petróleo,
questionando decisão do Congresso. “A Constituição define que a deliberação se
faça pelo Congresso”, diz. Em outro exemplo, aponta a votação sobre a perda de
mandatos dos parlamentares condenados no mensalão, decisão que, na opinião de
vários juristas importantes, contraria o que dispõe o artigo 55 da
Constituição.
Concorde-se ou não com a tese defendida por Moreira, o
portentoso crescimento da instituição dirigida por Roberto Gurgel está amparado
em fatos. Como conselheiro do MP, ele questiona com veemência esses números.
Por exemplo, o orçamento do Ministério Público da União, que incluiu as
representações nos Estados, custa R$ 4,1 bilhões, e já é maior do que o do
Senado Federal, de R$ 3,5 bilhões. Em dez anos, as despesas com pessoal
cresceram 193%. Avançando no sempre delicado terreno das garantias individuais,
os procuradores federais, sob Gurgel, também adquiriram o Guardião, sistema de
escuta telefônica privativo da Polícia Federal, que só pode utilizá-lo com
autorização judicial. Foi preciso uma decisão do Supremo para que abrissem mão
do equipamento. Em alguns Estados, no entanto, o Ministério Público local ainda
mantém a posse do Guardião.
A desavença de Moreira com Gurgel tornou-se irremediável em
2010, quando ele denunciou que, em campanha pela recondução, o procurador-geral
liberou uma espécie de presente aos seus subordinados entre R$ 60 mil e R$ 90
mil a título de benefícios atrasados. Gurgel argumenta que a liberação tinha
base legal. O detalhe é que os pagamentos saíram em duas parcelas, quando
poderiam ter obedecido a prazos mais longos. Em 2011, uma nova parcela de
atrasados custou R$ 150 milhões.
Amigo pessoal do deputado petista José Genoino, um dos
condenados pela Ação Penal 470, Moreira é dono de uma visão política que lhe
garante a simpatia compulsória da maioria dos políticos sob investigação do
Ministério Público e ajuda a explicar a facilidade com que seu nome foi
aprovado nas duas Casas do Congresso. Mas o debate promovido por Moreira não
gira em torno de interesses menores. A questão é doutrinária e envolve um
entendimento político real.
Em posição contrária, o procurador Claudionor Mendonça dos
Santos, de São Paulo, acredita que o Ministério Público e o Judiciário cumprem
uma função política necessária, que consiste na punição de políticos numa
sociedade que, conforme suas palavras, “está aquém do conceito amplo de
cidadão.” Tocando em pontos delicados empregados por cada eleitor para escolher
seus candidatos, Mendonça dos Santos critica as escolhas de determinados
eleitores: “Muitos ainda votam pela cesta básica, pela a camisa do time.” Para
o procurador de São Paulo, “a sociedade tem todo o direito de saber se errou ao
escolher aquele cidadão. É possível apontar o erro do voto.” Questionado se
essa visão não encobre uma interferência externa na luta democrática entre
partidos políticos, Mendonça dos Santos afirma que não vê “paternalismo” em sua
postura.
Toda essa discussão sobre gastos, poderes e limites dos
procuradores será inevitavelmente travada no Ministério Público quando a
disputa pela sucessão de Gurgel começar para valer. Hoje, existiriam quatro
candidatos. Quem baterá o martelo sobre o próximo comandante do Ministério
Público Federal é a presidenta Dilma Rousseff. Interessado em emplacar um nome ligado
a ele, o procurador-geral já esteve em situação mais confortável. Hoje, além
dos questionamentos internos, a Mesa do Senado examina dois pedidos de
impeachment para afastá-lo do cargo antes do fim do mandato. Num deles, o
procurador é acusado de dirigir uma licitação para a compra de computadores com
valor acima do mercado. Em outro, é acusado de, em parceria com o ex-presidente
José Sarney, oferecer favores em troca de apoio político diante da denúncia de
que deixara de investigar as ligações de Demóstenes Torres (DEM-GO) com
Carlinhos Cachoeira.
Durante a campanha para escolha do sucessor do
procurador-geral haverá outra questão relevante a ser debatida. É a PEC 37,
emenda constitucional que retira do Ministério Público qualquer poder de
investigação policial, devolvendo essas atribuições à polícia, como acontecia
antes de 1988. Apoiada pelos eficientes lobistas das diversas polícias em
atividade no Congresso, a PEC 37 ganha força toda vez que os parlamentares se
sentem desprestigiados pelos procuradores. Eles têm apoio de grande parte dos
prefeitos dos maiores municípios do País, que acusam o Ministério Público de
criar entraves a sua gestão a partir de medidas judiciais que apenas escondem
divergências políticas. Embora seja um crítico duro dos procuradores, Luiz
Moreira acha que é preciso encontrar uma solução intermediária. “Não é
recomendável que uma só instituição tenha todo poder de investigar um crime. O
mais saudável é que haja uma colaboração entre procuradores e policiais, com
cada área preservando sua competência específica. Se não é certo dar todo poder
ao Ministério Público, também não se pode deixar tudo nas mãos da polícia. A
experiência mostra que isso não funciona”, avalia.
Ao menos um tema parece ser consenso entre candidatos que
disputam o posto de Gurgel. Nenhum deles propõe diminuir os atuais benefícios
dos procuradores, nem mesmo as férias de 60 dias, herança do Judiciário. Quando
a Lei de Transparência obrigou o Executivo e o Legislativo a abrir os
vencimentos de todos os seus integrantes, o MP entrou na Justiça para deixar os
procuradores fora da obrigação. Foi atendido. “O Ministério Público não oferece
à sociedade a transparência que cobra de outros setores,” critica Moreira. IstoE
Postado por O TERROR DO NORDESTE
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