Conheci Boechat nas madrugadas da redação do Jornal Bom Dia
Brasil, no Rio de Janeiro. Não sei nem se ele se lembraria disso. Apesar de ser
editor-coordenador em São Paulo, vez ou outra Renato Machado, o então
editor-chefe, promovia encontros da equipe. Boechat tinha o hábito de ligar
ainda de madrugada para o Renato e dizer: "tenho uma boa". Chegava à
redação por volta das cinco e meia da manhã (nós chegávamos às 4h!), escrevia
rapidamente seus comentários, corria para a maquiagem e, quando entrava em cena
era sempre um bate-papo bem humorado com os apresentadores.
Na entrevista que concedeu deu esta semana ao NaTelinha, do
UOL, o ex-colunista, agora à frente do Jornal da Band, conta um pouco da
carreira e de como foi ceifado da Globo em 2001, de forma bastante dolorosa. Em
jogo, a liberdade de pensamento e expressão, o que é proibido hoje ao
jornalista que trabalha no maior conglomerado de comunicação do país e um dos
maiores do mundo. E desafio algum colega em público a dizer que esta afirmação
não seja verdade. Derrubar quem não pensa da mesma forma que o patrão é o modus
operandi adotado. Outro exemplo conhecido é o de Franklin Martins, mas há
muitos que a "googlesfera" e blogosfera bem conhecem. Faço das palavras
do Boechat as minhas, mas como editor destaquei da entrevista apenas os trechos
que considerei mais importantes:
NaTelinha - Você não
fez faculdade e nem terminou o segundo grau. Principalmente por conta disso,
algum dia você imaginou chegar aonde chegou?
Ricardo Boechat - Então, eu não fiz jornalismo como um
projeto pré-elaborado. Eu fiz jornalismo como poderia ter feito outras coisas.
Tanto que eu tentei formação em atividades completamente diferentes, como ser
vendedor de material de escritório, mas isso eu estou falando de uma fase da
vida em que eu tinha 16 anos.
Por volta dos 17, meu objetivo era muito específico, muito
focado, que era independência suficiente pra poder pagar minhas continhas,
tomar meu chopp, ir ao cinema com minha namorada e tal. Essas coisas que os
jovens que não tem mesada têm que conseguir por conta própria pra poder fazer o
básico ou atender às demandas da adolescência, que apesar de serem
relativamente baratas, são muitas. É isso, mas a minha ansiedade era mesmo
trabalhar, quem sabe morar sozinho mesmo.
NT - E como o
jornalismo entrou nessa história?
RB - Foi meio que por acidente. Eu já tinha parado de
estudar, estava de saco cheio da escola, estava vendendo livros. Na verdade
minha mãe e meu pai vendiam livros e eu pegava material de propaganda de
algumas coleções mais baratas, mais simples, mais geral, e procurava pais de
amigos de escola. Então eu ia à casa deles e tentava vender uma coleção ou
outra e ganhava um trocadinho nessa atividade. Até que um dia o pai de uma
amiga minha reclamou que eu estava dedicando o meu tempo a uma atividade que
não correspondia às minhas vocações naturais, que ele enxergava, mas eu não. Eu
gostava de escrever, escrevia com relativa facilidade, e tinha algumas
características que o pai dessa minha amiga gostava muito. Ele me disse que eu
precisava trabalhar em algo que eu precisasse escrever e tal. Ele era do
departamento comercial do “Diário de Notícias” e se chamava Kleber Savoia. O
Kleber disse para eu ir à redação do jornal falar com o chefe de reportagem. Eu
já tinha feito um curso para tentar duas ou três vagas no “Jornal do Brasil”,
mas não consegui. Não só porque o JB estava a léguas de distância da minha
capacidade àquela altura, como também a própria idade não me permitiria ficar
com alguma das vagas. Enfim, ele me arrumou essa apresentação e o chefe de
reportagem do jornal disse "’fica aí então anotando essas coisas".
Fui ficando.
NT - Você não
imaginaria nunca chegar aonde chegou?
RB - Não, o máximo que me imaginei foi ganhar uma grana para
pagar as minhas coisas.
NT - Hoje, você está
na televisão, em horário nobre, também faz rádio e tem coluna em revista.
Sente-se realizado profissionalmente?
RB - Sem dúvida. Às vezes quando eu paro pra pensar, eu acho
que o destino me deu mais do que eu fiz por merecer. Eu sempre trabalhei
demais, sempre fui obcecado por trabalho, mas tenho que reconhecer que a vida
me deu bastante coisa. Não tive formação, nunca remei a favor da corrente,
tomei uma porrada no auge de minha carreira, mas estou no mercado, ganho bem.
Sou realizado sim.
NT - Você acabou de
falar de uma “porrada” que tomou da vida. Então, você saiu da Globo de uma
maneira turbulenta. Guarda mágoas das Organizações Globo?
RB - Hoje mais não... Cara, se eu te perguntasse se você tem
raiva daquele “meio-fio” que você arrebentou o dedão do pé, você responderia o
quê? Que ficou puto, na hora. Que você ficou doído, que você sofreu durante
algum tempo até que cicatrizasse. Claro que aquilo me machucou absurdamente, me
feriu, me ofendeu, me indignou, revoltou e conseguiu alguns anos de rancor.
Claro que sim. Era meu ambiente, minha casa, meus amigos, minha vida. Tem
certos momentos que eu paro pra dizer o seguinte: se eu não tivesse passado por
aquilo, o que eu estaria fazendo hoje na Globo? Provavelmente eu estaria
fazendo a coluna que eu sempre fiz em “O Globo” e teria uma função no “Bom Dia
Brasil”, talvez como colunista ou talvez dando uma bicada num programa qualquer
da Globo News. Certamente eu não estaria fazendo rádio, certamente eu não faria
o que mais me realiza, mais me dar prazer, que é o rádio. Muito certamente,
aliás, sou absolutamente convicto que eu não teria a liberdade que eu tenho na
Band.
NT - Aceitaria
voltar pra lá, caso fosse feita uma proposta?
RB - A troco de quê? A Globo não tem culhão pra me dar a
liberdade que a Band me dá. Eles não respeitam a liberdade de ninguém, aliás,
eles respeitam até certo nível de liberdade. Ou melhor, ninguém abusa tanto de
liberdade assim, tipo ‘vamos ver até aonde vai mesmo?’. Por isso que eu
dificilmente toleraria isso. Seria uma “encheção” de saco tremenda.
Dificilmente eu faria o que faço, lá, e ganharia o que ganho aqui.
NT - Você já sofreu
ameaças por conta do jornalismo?
RB - Veja só, o que é ameaça pra você? Porrada, tiro, faca,
coça? Eu nunca levei. Processos já aconteceram sim, hoje (ontem) mesmo levei
três. Processos tenho dezenas, talvez mais de uma centena ao longo da carreira.
Mas isso eu não vejo como ameaça. Agora é importante dizer o seguinte. O
“Jornal do Brasil” e o Grupo Bandeirantes sempre se responsabilizaram pela
defesa e por todas as consequências resultantes do exercício da liberdade na
profissão. Tenho que citar também o jornal "O Globo", pois a casa dos
Marinho, nesse aspecto (e em outros, diga-se), sempre foi impecável, comigo e com
outros jornalistas na mesma situação.
NT - O que você acha
do atual jornalismo praticado pelas emissoras de rádio e televisão atualmente
no Brasil?
RB - Acho melhor do que de outrora. Estamos enfrentando uma
concorrência mais numerosa, mais ampla, mais pulverizada, as pessoas estão cada
vez mais se tornando jornalistas...
NT - Tem mais fontes
de informação...
RB - Eu acho que elas próprias mais testemunham do que veem
notícia. Eu tenho repetido o seguinte: o que caracteriza o jornalista
predominantemente na história? Ele era apropriador da notícia testemunhada por
terceiros, ou seja, um apurador de relatos. O Repórter Esso tinha um bordão
muito legal, que era “o seu Repórter Esso, testemunha ocular da história”. Na
verdade o Repórter Esso nunca foi testemunha de coisa nenhuma, ele estava lá na
redação. É curioso isso. Repórteres e jornalistas não são testemunhas oculares.
Com exceção dos correspondentes de guerras, que evidentemente estão lá
testemunhando coisas no primeiro plano. Mas, normalmente o que somos nós no
nosso cotidiano? Nós vamos atrás das testemunhas, dos fatos. Daqueles que
viveram o fato em primeira pessoa. O jornalista não está dentro do avião que
caiu ou do tsunami que passou por ali. Ele vai de encontro às pessoas pra
capturar informações, levá-las para as redações, e, com pesquisas, coloca tudo
no ar.
NT - Então é falsa a
marca de que o jornalista é testemunha ocular da história...
RB - Completamente falsa. Nós não somos testemunhas oculares
de coisa nenhuma. O que está acontecendo é que as testemunhas que alimentavam
os jornalistas estão elas próprias trabalhando com os novos meios de
comunicação, com ajuda de celulares que têm internet, máquinas filmadoras etc.
Então essa figura de jornalista que fica na redação esperando que a testemunha
ocular da história entregue o ouro para que ele apareça na televisão
engravatado e parecendo um gênio da informação, está condenada. E é ótimo que
esteja.
NT - Por quê?
RB - Porque isso significa que 7 bilhões de pessoas serão
jornalistas e trabalharão com a informação primária, difundirão a informação.
Tem riscos? Muitos. Mas é melhor ter 7 bilhões de pessoas com informações do
que 7 ou 70 tentando manipular 7 bilhões de pessoas. Então o jornalismo hoje em
dia percebe essa concorrência, apesar de esse não ser o nome correto, por não
ter esse propósito, mas ele percebe essa avassaladora presença da informação
circulando nas mãos de todo mundo. Isso obriga o jornalista a criar os seus
diferenciais, impor-se pela qualidade, pela coerência e seriedade.
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