Por Emiliano José
O que se requer, sob uma democracia, são instituições sólidas
e capazes de se renovar constantemente de acordo com as demandas da sociedade.
Instituições permeáveis às influências e reivindicações do povo. Que não
dependam apenas e tão-somente das virtudes individuais desse ou daquele. O que
se reclama, também, é que se aperfeiçoem, nessa linha, os mecanismos de
participação direta da população, alguns deles já previstos na Constituição,
mas que precisam ser ampliados. Nesse período que estamos vivendo, o mais longo
percurso democrático de nossa história, esse que se iniciou em 1985 a partir da
derrota da ditadura, o Brasil está convocado a promover uma reforma do Estado,
em sentido amplo, de modo a aprofundar a nossa caminhada democrática, de modo a
garantir que a revolução democrática em andamento não tenha solução de
continuidade.
Reforma que necessariamente deve incluir mudanças
substanciais na política, na forma de eleger os nossos parlamentares, mudanças
nas estruturas do aparelho de Estado, mudanças em todas as esferas do
Judiciário. Penso que o Congresso Nacional, como me parece claro, está
convocado a promover essa reforma do Estado brasileiro. Se não ocupa esse
espaço, continuará sob o bombardeio incessante de uma campanha neoudenista,
moralista, que pode significar tudo, menos verdadeiramente uma iniciativa
destinada a dar substância à vida democrática.
Essa campanha, como sabido e consabido, é desenvolvida de
modo articulado pela mídia hegemônica que, no caso brasileiro, nas condições
concretas da vida política do País, assume as características de um partido
político. E age assim, conforme declarações de vários dos barões e baronesas de
nossa velha imprensa, porque, segundo tais barões e baronesas, os partidos de
oposição são muito fracos, e alguém teria que cumprir esse papel, mesmo que não
tenha recebido votos para tanto. Essa desfaçatez, ou sinceridade, como se
pretenda, ninguém pode lhes negar.
Quando o governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro (PT),
conclamou o Legislativo à ação, especificamente no caso da reforma política,
agiu corretamente. Não basta lamentar. É preciso altivez e ação. Não pode
prosseguir como um poder acanhado, e calado diante de tantas agressões e
desrespeitos. Que as vozes do Parlamento se alevantem em sua defesa, como uma
instituição absolutamente essencial à democracia, e que se apropriem, como deve
ser, das grandes tarefas nacionais, que elaborem as leis que o País necessita,
das menores às maiores, de preferência as últimas, entre as quais incluo a
reforma do Estado brasileiro, reforma, como já dito, voltada à maior
democratização da vida nacional. Não tenho mais o direito de me assustar diante
da obsessão com que se ataca o Parlamento brasileiro, não tenho o direito de me
assombrar com a virulência do ataque à vida política. Faz-se tabula rasa, e
nenhum político tem qualquer honradez, é sempre da moral que se trata. Todos
são ladrões.
Com essa campanha, joga-se fora o bebê junto com a água do
banho. É como se a política fosse algo descartável, um adereço, desnecessária.
Quem sabe um país de tecnocratas fosse melhor, ou de sábios, escolhidos deus
sabe por quem. Lembro-me, e provavelmente é nele que nossa velha mídia busca
inspiração, de Friedrich Von Hayek, talvez o mais sólido teórico do
neoliberalismo do pós-guerra, que escreveu, em 1944, o libelo contra o
socialismo e contra o keynesianismo, denominado O Caminho para a servidão.
Hayek era influenciado por uma espécie de nostalgia do mundo
perdido: a época do liberalismo constitucional da última metade do século XIX.
Ele propunha que o Estado devia proteger a ordem espontânea das coisas – no
caso, a espontaneidade do mercado. Alguém aí não se lembrou do governo do
tucanato? A mim, veio logo à mente o mundo impressionante das privatizações e
de como o mercado e seus patrocinadores ganharam dinheiro com aquilo.
E não por acaso, na sua louca nostalgia, Hayek propunha todo
um arcabouço político de corte nitidamente conservador, avesso à política. Para
governar, existiria um órgão superior, composto, atenção, de cidadãos do sexo
masculino, de preferência homens com mais de 40 anos, que salvaguardassem
religiosamente os princípios de proteção do livre mercado. E, como concessão,
admitia-se eleições de 15 em 15 anos, e isso para que esses nobres senhores não
se submetessem às pressões políticas tão amiúde, como ocorre nas democracias
representativas.
Não por acaso, Hayek e seus seguidores irão apoiar ditaduras
militares, como a do Chile de Pinochet, primeiro laboratório do neoliberalismo,
antes mesmo daquele conduzido por Margareth Thatcher. Uma junta militar ou um
governo parlamentar sólido e conservador seria o que mais se aproximava do
ideal político dos neoliberais, à falta do conselho superior masculino acima de
40 anos.
Essa breve digressão é apenas para demonstrar que não há nada
de novo sob o sol nessa campanha, que há bases teóricas anteriores bastante
consistentes. No caso brasileiro, ela se ancora também no udenismo antigo, no
falso moralismo, nos fariseus e hipócritas que se arvoram os grandes defensores
da ética e que cedo, cedo, à Demóstenes, revelam a segunda pele, toda ela
manchada pela corrupção que denunciam. A velha mídia, é verdade, ganhou um
aliado de peso nos últimos meses: vários membros da Suprema Corte.
Para além da AP 470, o Judiciário brasileiro tem se arvorado
a ser aquele conselho superior à Hayek, como se não devesse satisfações a
ninguém, como se pudesse interpretar a Constituição a seu talante, como se
pudesse admoestar constantemente o Legislativo, como se pudesse afrontar, como
tem afrontado, a casa de leis do País, que está amparada pelo voto popular, que
tem em mãos a soberania do voto do povo, diferentemente do STF, por exemplo,
cuja investidura ou destituição depende das autoridades políticas, do poder político,
daqueles que, diferentemente do Judiciário, obtiveram mandato diretamente dos
cidadãos.
Qual o caminho que teríamos se não fosse o da eleição de
representantes pelo voto? É ou não o voto a fonte originária de todo poder?
Está ou não estabelecido isso na nossa Constituição? Que deuses tem poder para
modificar essa fonte originária? Que poderes imperiais podem pretender dar
ordens ao Congresso Nacional? Que se saiba, vivemos numa República, com a
pretensa, ao menos pretensa, separação de poderes. Que se saiba, vivemos numa
democracia.
Cotidianamente, no entanto, com essa nefasta judicialização
da política, o presidente do STF e alguns de seus membros se arvoram no direito
de falar sobre o Legislativo com profundo desrespeito e de, também, criticar o
governo federal, este governo, criticar o voto dos cidadãos por permitir que
fique todo esse tempo no poder, como se não fosse o povo a decidir isso, e não
o conselho de sábios.
E qual seria o caminho não fosse o da política, tão execrada
pela mídia e pelo próprio STF? Esse período democrático possibilitou a eleição
de Lula e de Dilma, e assegurou uma década virtuosa que, pela política, e sob a
liderança dos dois, especialmente de Lula, está realizando a maior façanha de
nossa história, que é o fim da miséria absoluta, que, como diz o governo, é
apenas o primeiro passo para fazer desse País uma nação de iguais.
A política é para isso: melhorar a vida das populações, e
isso inegavelmente os governos de Lula e de Dilma tem feito como ninguém o fez
até aqui, e o duro foi fazê-lo depois do desastre do neoliberalismo conduzido
por FHC nos seus dramáticos oito anos de governo. Outra política, outro
programa político, foi escolhida pelo povo brasileiro desde 2002, e isso está
mudando o Brasil numa velocidade inesperada. É o milagre da política, à Hannah
Arendt. É contra este milagre que se bate a campanha neoudenista, dirigida
pelos que tem saudades do Corvo, como era chamado Carlos Lacerda, campeão das
arengas moralistas da UDN.
Que haja problemas em nossa estrutura política, que ninguém
duvide, embora os problemas ético-morais não sejam exclusividade do
Legislativo. Que se enfrentem todos esses problemas a sério. Que se faça uma
reforma política profunda, que nos livre do câncer do financiamento privado,
que fortaleça os partidos. Não, isso não se quer discutir. Discutem-se
personalidades, distribuem-se acusações a torto e a direito, sem que, no mais
das vezes, se necessite de muitas comprovações. Não há outro caminho senão o da
política, e o da política realizada sob a democracia, com todos seus
inevitáveis conflitos e divergências, sempre solucionados pelo diálogo que só a
política é capaz de propiciar.
Quero lembrar, para finalizar, breve ensaio de Jorge
Caldeira, da revista Brasileiros, de fevereiro deste ano, onde se informa que o
Parlamento brasileiro completa agora 190 anos de funcionamento regular. Em
quase todo esse período, fez as leis da Nação. Quando esteve sob ataque e foi
fechado, o Brasil enfrentou as noites tenebrosas das ditaduras. O Congresso
brasileiro é o terceiro em tempo de funcionamento em todo o Ocidente. Tem sido
uma instituição fundamental à democracia. Torná-lo melhor é responsabilidade do
próprio Congresso, que deve enfrentar os desafios enormes que tem pela frente,
alguns dos quais apontei logo no início desse texto. Como a casa política, como
a casa das leis, como um poder que tem origem no voto do povo, o Congresso pode
e deve alevantar-se diante da Nação, assumir seu papel histórico, não se deixar
intimidar pelas vozes sem voto, e fazer as reformas que o País precisa.
*Emiliano José é jornalista e escritor
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