O desprezo do liberalismo econômico pela vida começa pelas
mulheres. Surpreende que ainda se reproduza, em várias partes do mundo, a
acumulação de riqueza por meio de escravização e terceirização.
Por: Mauro Santayana
Há uma razão mais forte, hoje, para lembrar a opressão
histórica contra as mulheres, que se tornou ainda mais cruel no sistema
econômico moderno. Há reiteradas manifestações patológicas contra elas. O
estupro praticado por grupos, o assassinato com crueldade e as mutilações – sem
nenhuma possibilidade de defesa – reclamam a reflexão de todos. É urgente
recuperar, com ação coerente, o humanismo como argamassa da civilização – que
se dissolve no culto à violência e nas ilusões da técnica.
O capitalismo usa da astúcia de absorver e administrar os
movimentos de defesa dos trabalhadores. Faz isso com reconhecida competência,
na infiltração e doma dos partidos políticos de esquerda, dos sindicatos e dos
movimentos revolucionários; na orientação ideológica do sistema universitário;
na cooptação dos intelectuais; no controle dos meios de comunicação e
entretenimento. Foi assim que o Dia Internacional da Mulher, escolhido para
lembrar a resistência feminina contra o trabalho quase escravo a que foram
submetidas no liberalismo da Revolução Industrial do século 19, se tornou data
de festinhas em escritórios e pátios de fábrica, com refrescos e bolinhos, e
flores oferecidas pelos chefes às secretárias. Embora o Dia Internacional da
Mulher se celebre em 8 de março, outra data mais forte para marcar a luta pela
igualdade no trabalho e pela dignidade da condição feminina é 25 de março de
1911. Na tarde daquele dia, o incêndio irrompeu no sétimo e no oitavo andar de
um edifício de Nova York, o Asch Building (em ironia trágica, asch se assemelha
a ash, cinza), em que funcionava a Triangle Shirtwaist Factory, grande
confecção de blusas femininas.
Ali trabalhavam jovens de 15 a 22 anos, vindas, em sua
maioria, do interior, e imigrantes do Leste Europeu, muitas judias da Polônia e
filhas de trabalhadores que fugiam da miséria, impelidos pelo sonho americano.
As condições eram duras. Recrutadas por empresas terceirizadas, trabalhavam de
10 a 12 horas diárias, em ambiente com pouca circulação de ar. As portas eram
fechadas por fora, para impedir os furtos, segundo os donos.
Ao irromper o fogo, não houve quem abrisse as portas a tempo.
As moças, e alguns poucos homens que ali trabalhavam, só tinham uma saída:
saltar para a morte pelas janelas. Houve 146 mortes. Quando os bombeiros
chegaram, a escada de que dispunham só alcançava o sexto andar. As leis
protegeram os donos. Eles haviam feito um seguro de vida dos trabalhadores
contra acidentes: receberam US$ 400 por vítima e pagaram aos familiares US$ 75
– ganharam US$ 325 por pessoa morta.
O desprezo do capitalismo moderno pela vida começa em sua
relação com as mulheres. Sua inclusão no mercado de trabalho, em que,
normalmente, recebem menos que os homens, é vendida pelos seus teóricos como
parte da emancipação feminina, quando, na verdade, e da forma em que se dá, não
passa de nova servidão. É sempre conveniente lembrar a constatação de uma
grande pensadora, Hannah Arendt: o trabalhador moderno é um escravo em tempo
parcial, nas horas em que se aluga ao patrão.
É um milagre que não ocorram, frequentemente, tragédias como
a de Nova York naquele 25 de março de 1911 – dias depois da comemoração, pela
primeira vez, do Dia Internacional da Mulher, criado um ano antes, em
Copenhague, proposta da ativista alemã Clara Zetkin durante a 2ª Conferência
Internacional de Mulheres Socialistas. O novo liberalismo é o velho sistema de
acumulação acelerada de capital, com o aluguel de escravos pelas firmas
terceirizadas – na Ásia, na África, nos Estados Unidos, e mesmo no Brasil, onde
especialmente grandes marcas de confecções se viram envolvidas por desfrutar da
mão de obra de pessoas nas mesmas ou em piores condições do que as do princípio
do século 20. Nesse mercado infame, as maiores vítimas são as mulheres.
Nenhum comentário:
Postar um comentário