Por Paulo Moreira Leite, na Isto
A morte de Hugo Chávez cumpriu a indispensável função de
revelar a imensa dificuldade de seus adversários em fazer uma crítica política
a seu governo.
O esforço para construir um retrato faccioso e negativo de
sua passagem pelo governo de um dos países mais pobres do continente, que
deixou em situação social muito melhor do que recebeu, explica-se por essa
razão.
Apenas cidadãos que sempre dormiram em casas com comida na
mesa e roupa lavada podem não perceber a importância de determinadas conquistas
obtidas na última década e meia.
Quem lembra que a melhoria básica das condições de existência
“não é suficiente” deveria explicar por que, antes, nem o “insuficiente” era
possível.
Não custa lembrar a regra de que fome no estômago dos outros
é estatística, concorda?
Há muito tempo a oposição interna e externa a Chávez deixara
de vir acompanhada de uma alternativa concreta de política econômica e
distribuição de renda.
Ele sempre era condenado com definições terminais — como
“populista” e “autoritário” — sem que elas essas fossem devidamente submetidas
a um exame das condições concretas da política venezuelana.
Algo mais profundo sempre me incomodou na postura recente dos
adversários de Chávez – uma certa impaciência com o câncer. Sem aquela
hipocrisia que os bons costumes ensinam e a boa educação recomenda, nem fingiam
torcer por sua recuperação. Numa demonstração mórbida de impotência, a cada
viagem a Cuba, a cada nova cirurgia, a cada visita de parentes e amigos,
deixavam claro que apenas se perguntavam quando o tumor iria completar um serviço que não eram capazes de realizar
pelo instrumentos mais nobre vida pública
– o voto.
A desumanização dos adversários é a forma mais selvagem de
luta política, nós sabemos. Ela permite o rebaixamento de escrúpulos mais
convencionais e dispensa lealdades que se reservam mesmo para os adversários.
Os adversários de Chávez costumam criticá-lo a partir de dois
adjetivos. Um deles, “populista”, é um chavão que deveria ser reservado para
crianças que ainda não completaram o processo de alfabetização. Como explica o professor Jorge Ferreira,
autor de uma biografia indispensável sobre Goulart:
- Populista é o adversário que tem mais voto.
Com isso, Ferreira quer dizer o óbvio: na incapacidade de
derrotar um rival, o mais fácil é dizer que não passa de um demagogo. Já vimos
este filme tantas vezes, não é mesmo?
Mas o professor argentino Ernesto Laclau, um dos mais
importantes intelectuais latino-americanos, tem outra contribuição a este
debate. No livro “A Razão Populista”, Laclau rompe com uma tradição de
pensamento elitista, que envolveu até diversos intelectuais de esquerda nos
anos 60 e 70, que denunciavam Goulart e Getúlio como “aliados da burguesia”
para mostrar que aquilo que se costuma
chamar de populismo nada mais é do que
uma política que procura combinar a defesa dos interesses nacionais com a melhoria das
condições de vida do povo.
Concordo com quem observa que Chávez poderia ter avançado
mais na reconstrução da economia venezuelana, diminuindo a dependência em
relação ao petróleo. Mas a honestidade intelectual obriga a lembrar que isso é
muito mais fácil de falar do que fazer. Implica em deixar de elevar os salários
e cortar gastos que geram bem-estar imediato da população em nome de
investimentos futuros.
Não há almoço grátis em economia. Num país com um dos piores
índices de desigualdade da já desigual América do Sul, seria complicado
distribuir renda, guardar um bom pedaço do excedente para investimentos – e
ainda garantir apoio da maioria da população nas urnas, num governo sob pressão
intensa e permanente de adversários internos e externos. É mais fácil, como
mostra a experiência de tantos países, arrochar os salários e reprimir o povo.
Chávez teve o mérito de experimentar uma opção diversa. Você pode dizer que
isso era o melhor para sua sobrevivência política. Concordo.
Mas seus aliados poderiam argumentar que a alternativa era
sacrificar a vida do povo – em nome de um futuro melhor que, sabemos muito bem,
raras vezes se alcança, não é?
Outra palavra frequente é o “autoritarismo” de Chávez. A
repetição desse chavão procura fazer esquecer que Chávez promoveu 15 eleições
ou referendos em 14 anos de governo – ganhou 14. Como a maioria dessas disputas
foi acompanhada de perto por observadores internacionais, que jamais apontaram
para fraudes ou coisa parecida, até por uma questão de humildade seria
conveniente admitir que essas vitórias expressavam a vontade do povo – aquele
que vota com o estômago, com o cérebro, com o coração, com a vida de todo dia,
e não com as estatísticas.
Lembrando que a democracia não é obra do governo, mas envolve
o funcionamento do Estado e também a atuação de todas as instituições,
inclusive ligadas à oposição, eu gostaria de perguntar como é que se podem
definir os adversários de Chávez. Não custa lembrar que em 2002, apenas, Chávez
foi vítima de duas tentativas de golpe de Estado, com apoio do empresariado
local, da embaixada dos Estados Unidos – e de quem mais você quiser.
Na primeira tentativa, Chávez foi preso por 72 horas, até que
uma reação popular garantiu sua volta ao cargo. Na segunda, o país foi colocado
à beira do colapso pela alta burocracia da PDVSA, que cortou o abastecimento de
todos os combustíveis num país onde o petróleo acende lâmpadas em casa, move a
indústria e o comércio, além de fazer andar carros e ônibus. Com apoio
internacional, os golpistas conseguiram até impedir que aliados tradicionais de
Chávez vendessem petróleo ao país.
Eu me pergunto – eu acho que é um debate real – qual o tipo
de tratamento democrático é possível garantir num ambiente golpista, de
confronto e ruptura institucional permanente. (Não custa lembrar que, nos anos
seguintes, a oposição criou o costume de boicotar eleições, com a única
finalidade de produzir impasses e tentar questionar a legitimidade das vitórias
inevitáveis de Chávez. De uma forma ou de outra, nunca deixou de investir em
rupturas com a ordem democrática.)
A principal reação de Chávez aos golpistas não incluiu
prisões em massa nem outras medidas drásticas, tão comuns e muitas vezes
justificáveis em horas traumáticas, em qualquer parte do mundo quando se
derrota um golpe de Estado. Limitou-se a não renovar a concessão de um canal de
televisão, a RCTV, quando ela venceu. Vamos combinar: para quem sofreu dois
golpes de Estado num único ano, até que não foi uma opção sangrenta. Os
chavistas fizeram tudo dentro da lei para punir uma empresa que havia se valido
de uma concessão pública para sabotar a democracia. Não gosto de nenhuma medida
que reduz o grau de liberdade num país. Mas na vida concreta, os primeiros a
ameaçar os direitos dos golpistas foram eles mesmos, vamos combinar.
Eu estava em Caracas quando a RCTV perdeu a concessão. Não é
preciso justificar a medida, mas é bom entender o quadro político. Só havia
reação indignada na imprensa internacional. A população reagiu com indiferença,
como se quisesse lembrar que nem sempre é fácil defender a liberdade de
inimigos da democracia. Estive em comícios em defesa da RCTV. Reuniam
funcionários preocupados com o fim de seus empregos e políticos de oposição.
Só.
O câncer de Chavez abriu a seus adversários uma oportunidade
que eles não foram capazes de conquistar pela luta política. Resta saber como
se portarão daqui para frente, diante da provável vitória de Nicolás Maduro nas
eleições presidenciais. A grande pergunta é saber se serão capazes de curar-se
de falta de apego à democracia.
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