O humanismo é uma religião esquecida
Os recentes relatórios científicos informando sobre mudanças
climáticas praticamente irreversíveis ou de remota reversão, impõem ao homem
abstrato a necessidade de entender onde foi, afinal, que errou.
Evidentemente o vilão número um do aquecimento global é o
homo oeconomicus gestado nas usinas de carvão do princípio da Revolução
Industrial e, claro, suas subsequentes derivações tecnológicas que teimam cada
vez mais em consumir combustíveis fósseis combinado com um modelo perdulário e
predatório de produção e consumo – seja no setor primário, seja na indústria de
transformação.
Na sua obra Cinco ensaios sobre a psicanálise, Freud detectou
aquilo que chamou de feridas narcísicas do homem da modernidade. A primeira
ferida foi causada por Copérnico ao provar que o homem e seu pequeno planeta
não eram o centro do Universo. A segunda ferida foi causada por Darwin ao
mostrar que o homem é tão-somente um elo na evolução das espécies vivas, e não
uma criatura especial de Deus para dominar a Natureza. A terceira ferida foi
obra do próprio Freud ao mostrar que “o Eu não somente não é senhor na sua
própria casa, mas também está reduzido a contentar-se com informações raras e
fragmentadas daquilo que se passa fora da consciência, no restante da vida
psíquica”.
Em suma, diz Freud, arrasador, somos periféricos,
ligeiramente pós-primatas e temos uma consciência opaca, quase sonâmbula.
O homem que formulou constructos de religiões e filosofias
para adornar a própria condição, sem as quais a vida seria mais penosa, aos
poucos dá-se conta que não passa de mais um dos tantos animais da vasta fauna
terrena. Não foi Platão e Descartes que apontaram a consciência como o elemento
distintivo entre os humanos e os outros animais?
Pois hoje quem estiver com os olhos e a estreita janela da
consciência abertos para aceitar que nós humanos não devemos ter tanta
importância assim, está de fato contribuindo para a salvação do Planeta e o
início prático da biofilia - o amor endereçado a todas as coisas vivas.
Esses densos temas estão discutidos por John Gray na obra
Cachorros de Palha - Reflexões sobre humanos e outros animais (Ed. Record).
Como se vê, o britânico Gray (um liberal) abala as convicções mais arraigadas
de todos nós, atirando com pontaria em ícones humanistas, tanto à direita,
quanto à esquerda. Ora extraindo inspiração da poesia, onde vale-se até de
Fernando Pessoa, ora da literatura de Conrad, ora da filosofia de Hume, de
Schopenhauer, de Kant, e de Nietzsche, ele consegue fazer-nos pensar que, de
fato, a sombra escura do homem é bem maior do que o seu real tamanho natural.
O livro é um trabalho inspirado e muito bem escrito sobre
antropologia filosófica, mas passa longe dos jargões e da linguagem hermética
dos iniciados. Sobre John Gray se pode dizer que talvez seja um Schopenhauer
sem a ranhetice deste, sem aquela misoginia agressiva, e que nunca empurrou a
empregada do alto da escada, como o filósofo alemão.
Da biologia molecular, Gray trabalha com o que afirma Jacques
Monod, segundo o qual a vida é uma casualidade que evoluiu pela seleção natural
de mutações randômicas (aleatórias, contingentes). E que, portanto, nem a
filosofia, nem as religiões (cuja moralidade entre o certo e o errado está
informada por Deus, e que este afinal vai garantir-nos um sentido para a vida),
e muito menos o progresso tecnológico podem afastar-nos da jogada de sorte de
sermos o resultado (bem ou mal) sucedido de uma loteria cósmica.
O grande alvo de Gray é o humanismo pretensioso dos
Iluministas, segundo o qual pode-se perfeitamente substituir a religião
tradicional pela fé secular na humanidade. Gray lembra que para a hipótese
Gaia, a vida humana não tem mais sentido do que a vida dos fungos.
Gaia, aliás, está na raiz do título Cachorros de Palha.
Segundo uma antiga escrita taoísta, nos rituais chineses, cachorros de palha
eram usados como oferendas para os deuses. Durante o ritual eram tratados com
reverência e respeito. Quando tudo terminava, e não sendo mais necessários,
eram pisoteados e jogados fora: "Céu e terra não têm atributos e não
estabelecem diferenças: tratam as miríades de criaturas como cachorros de
palha" - diz a escrita do sábio Lao-Tsé.
E completa John Gray: "Se os humanos perturbarem o
equilíbrio da Terra, serão pisoteados e jogados fora".
Uma leitura que nos reconcilia com os animais e com o
Planeta, sem a chatice da conversa "verde" e nem a falsa piedade dos
consumidores de pet shop e mascotes caseiros.
Artigo de Cristóvão Feil. Publicado originalmente na revista
mensal do MST, em setembro de 2007.
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