domingo, 3 de março de 2013

Thomas Castilho: O que realmente se esconde em Oruro


Imprensa alimenta relação ambígua com as torcidas organizadas: demoniza-as, mas, ao mesmo tempo, as utilizam para promover o espetáculo.

Thomas Castilho, especial para o Viomundo.

Poucos assuntos parecem atingir um consenso tão grande como as torcidas organizadas. O senso comum não hesita em achar que se trata de gente desqualificada, criminosos travestidos de torcedores, marginais. Os predicados variam ao gosto de quem escreve e de quem lê.
Mas é real, também, que elas contribuem bastante para que esse preconceito se dissemine, assim como a atuação medíocre do mainstream do jornalismo brasileiro que já não se dá o trabalho de apurar os fatos, e condena por antecipação.
A morte do garoto Kevin descortinou esse quadro como nunca antes, além de evidenciar uma série de incongruências no futebol latino-americano, em todas as suas instâncias.
Após viver 10 anos a realidade dos Gaviões da Fiel, entre 1992 e 2001, de maneira mais ou menos intensa, sendo apenas um associado, como diretor ou conselheiro, aprendi que as torcidas compõem um ambiente mais heterogêneo e complexo do que possa parecer.  Não há, em nossos dicionários, adjetivo capaz de qualificar universo tão vasto de seres humanos. Seus associados mais ativos, contudo, são em grande parte jovens entre 17 e 25 anos, cheios de energia e disposição, a procura de um sentido para a vida. E encontram nas torcidas um ambiente propício para manifestar seu amor latente, sua vontade de ser alguém, e também sua violência.
A pesquisadora Heloísa Reis, da Unicamp, talvez a única estudiosa sistemática da violência e das torcidas organizadas no Brasil, porém, ensina: “As raízes da violência (ou violências, grifo meu) relacionada ao futebol estão na sociedade brasileira. A formação de indivíduos apáticos ou agressivos e violentos ocorre a partir de sua sociabilidade primária, quando já podem ser percebidas manifestações agressivas ou apáticas: que serão mais explicitadas na juventude, podendo permanecer na fase adulta.”
No caso do futebol, seria ingênuo dissociar a violência do torcedor da violência do policial, da violência do organizador, da violência do poder público, da impunidade, do consumo de álcool – que tem a mídia como principal estimuladora do consumo (Reis H., Violência e Futebol).
Mas por que eu estou falando de violência? Estou falando de violência porque o episódio em Oruro foi protagonizado por torcedores organizados. E para todos, isso basta. É simples assim?
Então vejamos. Há imagens (aqui) e testemunhas, entre elas algumas que afirmam que o sinalizador quase atingiu aos próprios brasileiros, sem se esquecer do réu confesso (aqui). Ah, mas ele é Laranja.
Ainda não conheci uma mãe que se dispusesse a se colocar em frente às câmeras da Rede Globo para dizer ao Brasil que seu filho é o demônio encarnado como propagado aos quatro ventos através do rádio, da televisão, dos jornais, e das redes sociais, com objetivo de salvar a pele de um suposto responsável maior de idade (aqui).
Tem que ser bem laranja para defender a tese. Além disso, o sinalizador foi disparado logo após um gol (aqui). Geralmente, nas arquibancadas, quando acontece um gol do seu time, sua torcida comemora. Não há muito tempo para pensar em atirar sinalizadores dentro do crânio de adolescentes.
Então por que continuar a falar sobre violência? Só porque o torcedor pertencia a uma torcida organizada? Sim, a lógica parece ser exatamente essa.
Um dos pontos que mais chama a atenção é a relação ambígua que a imprensa alimenta com as torcidas organizadas. Ainda que já tenham recebido todas as adjetivações possíveis e imagináveis, são essas mesmas torcidas que são utilizadas para promover o espetáculo. Grande parte dos jornalistas e cronistas esportivos, ou não (o tema é tão consensual que até intelectuais de áreas diversas se arriscam), destilam seu preconceito e ignorância temática durante os programas de televisão.
Contudo, nos intervalos, o que não faltam são imagens de torcedores uniformizados fazendo festa nos estádios. Bandeiras, cantos, papéis picados e, pasmem, muitas vezes, sinalizadores.  O jornalista Juca Kfouri, por exemplo, ainda que acredite ser uma infâmia alguém se arriscar a “defender” (seja lá o que queira dizer isso) torcidas organizadas, recheou o seu livro Corinthians, paixão e glória de fotos dessas mesmas torcidas. Resumidamente, o lado belo das torcidas serve apenas para promover o evento e render uns trocados, sem dar a elas qualquer direito à voz, qualquer direito à defesa.
Mas, partindo do pressuposto de um ato não-intencional, na hora do gol, ao acender um sinalizador que é utilizado em estádios para justamente promover o evento e fazer a festa, por que não um pouco mais de complacência e coerência num momento triste e delicado como esse?
Descarregar toda a responsabilidade do episódio em cima de um garoto de 17 anos que teve a infeliz ideia de acender um sinalizador para comemorar um gol irá prevenir outras mortes?
Manter 12 torcedores presos, sem que tivessem tido qualquer participação no episódio, apenas porque pertencem a torcidas organizadas, para saciar a sede de justiça da opinião publicada e daqueles que a reverberam, irá fazer com que os sinalizadores, ou parte deles, sejam proibidos?
Ah, mas dois deles tinham sinalizadores do mesmo lote. Sim, mas nesse estádio pirotécnico, os sinalizadores foram proibidos? Então por que as imagens mostram um faixa de torcida boliviana incandescente somada a dezenas de sinalizadores queimando sem qualquer tipo de incômodo (aqui)?
Por que a polícia, segundo relatos, não teria feito revista (aqui)? Será que foi porque o clima entre os torcedores era amistoso (aqui)?
Caso não fosse amistoso, será que os próprios torcedores do San José teriam ido até a prisão prestar solidariedade aos torcedores presos (aqui)? Torcedores organizados não são animais que sabem apenas se matar? Confuso isso, não?
Afinal, esse material era ou não proibido? O que diz o estatuto da Conmebol (aqui)? Caso não fosse, quem libera a entrada? Só Corinthians e corintianos merecem ser punidos, ainda que, o embaixador brasileiro e o advogado da embaixada do Brasil apontem diversas incoerências no inquérito (aqui e aqui)?  Ainda que o histórico de punições no futebol sul-americano pareça ser de escassa jurisprudência (aqui e aqui)?
Por que não uma visão um pouco mais equilibrada e imparcial, de modo a evitar que eventos como esse voltem a se repetir?
Que as punições sejam justas e responsabilizem a todos, além de torcedor e Corinthians – Conmebol, San José, policiamento, quem comprou, quem distribuiu, quem vendeu. Não apenas a parte mais fraca da estória, e da história. Assim, talvez pudéssemos acreditar que esse fato não servirá apenas para saciar sentimentos mesquinhos travestidos de luta por justiça.
Afinal, a Conmebol vai continuar a permitir jogos em pequenas cidades a quase 4.000m de altitude, sem estrutura e sem que o clube local garanta a segurança do evento (aqui)? Será capaz de tomar medidas outras que não escolher bodes expiatórios para maquiar sua própria incompetência e emitir notas de pesar (aqui)? Continuará tendo suas decisões sendo tomadas de maneira arbitrária, sem que sejam pelo menos apurados os fatos (aqui)?
Continuaremos presenciando jogadores sendo protegidos por escudos em cobranças de escanteio, sem que os mandantes sejam responsabilizados? Bandeirinhas continuarão sendo agredidos (aqui)? Quem vende sinalizadores de navio no centro da cidade? Eles são vendidos legalmente? Estavam vencidos? E os responsáveis pelo policiamento, alguém recebeu, ao menos, uma advertência? A família de Kevin será indenizada pela Conmebol, terá seus direitos de consumidor respeitado, já que a perda de uma vida não pode ser reparada? A hegemonia das emissoras de TV na condução do futebol será incomodada, ou apenas terão sua audiência ampliada com essa punição?
Tudo isso faz do episódio emblemático.
Em Oruro, se escondem as responsabilidades da própria Conmebol.
Em Oruro, se esconde uma imprensa tacanha, incapaz de interpretar com imparcialidade os poucos fatos que apura.
Em Oruro, se esconde uma sociedade hipócrita, que com nobreza ímpar se solidariza com a morte do garoto boliviano, mas que com uma conivência vergonhosa fecha os olhos para a execução de dezenas de jovens da periferia – em sua maioria negros – pelos grupos de extermínio que proliferam na PM paulistana, e finge não ver a dizimação de seus índios por pistoleiros pagos por latifundiários.
Em Oruro, esconde-se a mentira chamada Libertadores da América. No Brasil, se manifesta e grandeza do Sport Club Corinthians Paulista, nas atitudes pequeninas, incapazes de manter paixão clubística e preconceitos toscos afastados de assuntos sérios.
Mas e a violência? É mesmo, as torcidas. Segundo a pesquisadora Heloísa Reis, “os fatores geradores da violência são vários e complexos, mas pode-se afirmar que a disseminação de uma cultura em que violência e futebol sempre caminharam juntos contribuiu para a disseminação da violência nos estádios e dificulta a sua minimização. A ‘reação simbiótica’ entre esporte e violência não é exclusividade do futebol. Dunning afirma que todos os esportes competitivos conduzem ao aparecimento de agressão e violência (Elias e Dunning, 1992). Mas, por sua popularidade e seus valores masculinos, é no futebol que ela encontra um terreno fértil. É nesse conteúdo cultural que a expressão da violência física socialmente aceita e ritualizada aparece”.
Mas isso, isso é uma outra estória. O garoto Kevin não morreu devido à violência física, talvez a outras. Espero que não tenha morrido em vão. Justiça gera paz.

Thomas Castilho é professor de inglês

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