Luis Nassif
Por Lair Amaro
‘Vou contar tudo’, diz
ex-braço direito de Fleury sobre crimes da ditadura
Aguardado nas comissões que investigam os crimes da ditadura
como uma das prováveis revelações do período, o delegado Carlos Alberto
Augusto, ex-braço direito do chefão do Dops paulista, Sérgio Paranhos Fleury,
está ansioso para falar. Quer abrir o que sabe sobre o longo período em que
atuou como agente da repressão, mas faz exigências: “Vou contar tudo e não
só a verdade que a comissão deseja ouvir. Quero que a sessão seja acompanhada
pela imprensa ou, se possível, transmitida ao vivo”, diz o delegado.
Instalado numa sala modesta da delegacia de Itatiba, a 80
quilômetros de São Paulo, o homem apontado pela esquerda como um dos mais
ferozes agentes da repressão, passa os dias cuidando de crimes rastaqueras
(briga de vizinhos, intrigas familiares, furtos famélicos etc.) e rascunhando
episódios da luta armada que vão, aos poucos, sendo resgatados na memória, mas
que ele ainda mantém em segredo.
Sua literatura de cabeceira é um relatório sobre as ações das
organizações de esquerda reunidas no Orvil (livro ao contrário), patrocinado
por remanescentes do regime na tentativa de estabelecer um contraponto às
versões dos movimentos de defesa dos direitos humanos.
Aos 68 anos de idade, 43 deles como policial e, destes, pelo
menos sete dedicados à repressão política, entre 1970 e 1977, Carteira Preta,
como é conhecido, é dos poucos agentes ainda na ativa. Nem para ler uma notícia
deixa o cacoete adquirido na polícia política: analisa cada frase que escrevem
sobre ele e tem sempre um argumento contra. “Nada é o que parece”, filosofa. É
um arquivo vivo do período mais duro dos anos de chumbo. As operações
comandadas por Fleury foram seu “batismo de fogo” como policial.
E ele agora, para sua defesa ou desencargo de consciência,
diz que quer detalhá-las. Mas só aceita falar se puder contar a história
completa de cada episódio. Ou seja: ele quer abordar também as ações praticadas
pela esquerda. “Se me convocarem, irei com muito prazer, chegarei antes de
todos e falarei tudo o que sei sobre o que me perguntarem. Acho que eles
precisariam uns quatro dias para ouvir tudo o que tenho a dizer”, repete o
delegado.
Carteira Preta se tornou, desde o ano passado, um dos raros
réus em processos criminais que tramitam na Justiça Federal sobre o
desaparecimento de presos políticos. É acusado de sequestro do corretor de
imóveis Edgar de Aquino Duarte, preso em 1971 e desaparecido desde junho de
1973. Corretor da Bolsa de Valores de São Paulo, Duarte não exercia, à época,
atividade política, embora tivesse um histórico de militância como
ex-marinheiro.
Para enquadrá-lo no mesmo processo em que também são réus
outros dois homens fortes da repressão, o coronel da reserva Carlos Brilhante
Ustra e o delegado Alcides Singillo, o Ministério Público utilizou uma decisão
do Supremo Tribunal Federal num caso de extradição. O STF considerou sequestro
um crime permanente, que só se extingue diante da comprovação da libertação ou
da morte da vítima.
“Em junho de 1971, ele
participou da prisão de Aquino, que foi visto pela última vez em junho de 1973
nas celas do fundão do Dops”, sustenta um dos procuradores que assinam a
denúncia, Sérgio Suiama, para quem o corretor teria sido morto porque sabia
demais. Aquino foi preso junto com o Cabo Anselmo (José Anselmo dos Santos). Em
liberdade, poderia comprometer os planos de Fleury, que organizara boa parte
das operações para eliminar militantes da luta armada com base nas delações de
Cabo Anselmo, militante treinado em Cuba que colaborava com a repressão,
delatando companheiros.
O delegado nega o crime, afirma que nem chegou a conhecer o
corretor e, mostrando Informações anotadas à mão, que diz ter retirado do próprio
processo, afirma que Duarte era militante do grupo ligado ao ex-governador
Leonel Brizola e teria se estabelecido em São Paulo depois de abandonar uma
suposta base de treinamento de guerrilha no Mato Grosso. Diz que no processo
que tramitou na Comissão de Anistia há cópia de uma certidão de óbito expedida
por um cartório do Recife, o que contestaria a tese de desaparecimento.
“Ele (Duarte) se
rebelou contra Brizola e abandonou a base. Pode ser um caso de justiçamento”,
diz o delegado, antecipando o que deve dizer na Comissão da Verdade sobre o
desaparecimento do corretor. A tese é rechaçada pelo Ministério Público
Federal.
Mas não é só este o caso em que o delegado, como investigador
do Dops, participou. Ele atuou na linha de frente da repressão. Foi o autor da
prisão do Cabo Anselmo e, depois, andou com o delator a tiracolo atrás de
militantes com os quais eram marcados encontros que se transformavam em
armadilhas mortais.
Na mais famosa delas, conhecida como o massacre da Chácara
São Bento, nas proximidades de Olinda, em Pernambuco, Anselmo atraiu para morte
seis militantes de esquerda, entre os quais se encontrava sua própria
companheira, a paraguaia Soledad Barreto Vidma, a Sol. O detalhe escabroso é
que a ativista, uma bela mulher, filha de históricos comunistas paraguaios, com
quatro meses de gestação, esperava um filho de Anselmo.
Toda a operação que resultou no massacre foi coordenada por
Carteira Preta, que se tornaria desde então uma espécie de anjo da guarda do
Cabo Anselmo. A relação só foi rompida no ano passado, quando o ex-marinheiro
decidiu, por conta própria, dar uma entrevista ao programa Roda Viva, da TV
Cultura. Os dois ainda se falam, mas o compromisso de proteção se rompeu.
Carteira Preta infiltrou-se nos sindicatos do ABC e em movimentos
sociais e pastorais ligados à Igreja Católica. Nessa condição, participou de
reuniões com o então bispo do Recife, Dom Helder Câmara e, quando não esteve
diretamente envolvido nas ações, produziu informes que resultaram em prisões,
tortura e morte de ativistas.
Na Comissão da Verdade, afirma que responderá objetivamente
um a um os casos em que atuou, inclusive episódios que possam elucidar
paradeiro de guerrilheiros desaparecidos. Diz que cumpriu sua função como
profissional de polícia, admite que não gosta de comunistas (“se o comunismo
fosse bom o capitalismo já teria comprado”), afirma que os conflitos fizeram
parte da guerra entre o regime militar e a esquerda e não demonstra qualquer
arrependimento.
A esquerda diz que Carteira Preta foi além de seu papel como
policial, participando de tortura e assassinatos. “Durmo com a cabeça
tranquila. Faria tudo de novo”, afirma o delegado.
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