domingo, 3 de março de 2013

Carteira Preta, o braço direito do delegado Fleury



Luis Nassif

Por Lair Amaro

 ‘Vou contar tudo’, diz ex-braço direito de Fleury sobre crimes da ditadura

Aguardado nas comissões que investigam os crimes da ditadura como uma das prováveis revelações do período, o delegado Carlos Alberto Augusto, ex-braço direito do chefão do Dops paulista, Sérgio Paranhos Fleury, está ansioso para falar. Quer abrir o que sabe sobre o longo período em que atuou como agente da repressão, mas faz exigências:  “Vou contar tudo e não só a verdade que a comissão deseja ouvir. Quero que a sessão seja acompanhada pela imprensa ou, se possível, transmitida ao vivo”, diz o delegado.

Instalado numa sala modesta da delegacia de Itatiba, a 80 quilômetros de São Paulo, o homem apontado pela esquerda como um dos mais ferozes agentes da repressão, passa os dias cuidando de crimes rastaqueras (briga de vizinhos, intrigas familiares, furtos famélicos etc.) e rascunhando episódios da luta armada que vão, aos poucos, sendo resgatados na memória, mas que ele ainda mantém em segredo.
Sua literatura de cabeceira é um relatório sobre as ações das organizações de esquerda reunidas no Orvil (livro ao contrário), patrocinado por remanescentes do regime na tentativa de estabelecer um contraponto às versões dos movimentos de defesa dos direitos humanos.

Aos 68 anos de idade, 43 deles como policial e, destes, pelo menos sete dedicados à repressão política, entre 1970 e 1977, Carteira Preta, como é conhecido, é dos poucos agentes ainda na ativa. Nem para ler uma notícia deixa o cacoete adquirido na polícia política: analisa cada frase que escrevem sobre ele e tem sempre um argumento contra. “Nada é o que parece”, filosofa. É um arquivo vivo do período mais duro dos anos de chumbo. As operações comandadas por Fleury foram seu “batismo de fogo” como policial.

E ele agora, para sua defesa ou desencargo de consciência, diz que quer detalhá-las. Mas só aceita falar se puder contar a história completa de cada episódio. Ou seja: ele quer abordar também as ações praticadas pela esquerda. “Se me convocarem, irei com muito prazer, chegarei antes de todos e falarei tudo o que sei sobre o que me perguntarem. Acho que eles precisariam uns quatro dias para ouvir tudo o que tenho a dizer”, repete o delegado.

Carteira Preta se tornou, desde o ano passado, um dos raros réus em processos criminais que tramitam na Justiça Federal sobre o desaparecimento de presos políticos. É acusado de sequestro do corretor de imóveis Edgar de Aquino Duarte, preso em 1971 e desaparecido desde junho de 1973. Corretor da Bolsa de Valores de São Paulo, Duarte não exercia, à época, atividade política, embora tivesse um histórico de militância como ex-marinheiro.

Para enquadrá-lo no mesmo processo em que também são réus outros dois homens fortes da repressão, o coronel da reserva Carlos Brilhante Ustra e o delegado Alcides Singillo, o Ministério Público utilizou uma decisão do Supremo Tribunal Federal num caso de extradição. O STF considerou sequestro um crime permanente, que só se extingue diante da comprovação da libertação ou da morte da vítima.

 “Em junho de 1971, ele participou da prisão de Aquino, que foi visto pela última vez em junho de 1973 nas celas do fundão do Dops”, sustenta um dos procuradores que assinam a denúncia, Sérgio Suiama, para quem o corretor teria sido morto porque sabia demais. Aquino foi preso junto com o Cabo Anselmo (José Anselmo dos Santos). Em liberdade, poderia comprometer os planos de Fleury, que organizara boa parte das operações para eliminar militantes da luta armada com base nas delações de Cabo Anselmo, militante treinado em Cuba que colaborava com a repressão, delatando companheiros.

O delegado nega o crime, afirma que nem chegou a conhecer o corretor e, mostrando Informações anotadas à mão, que diz ter retirado do próprio processo, afirma que Duarte era militante do grupo ligado ao ex-governador Leonel Brizola e teria se estabelecido em São Paulo depois de abandonar uma suposta base de treinamento de guerrilha no Mato Grosso. Diz que no processo que tramitou na Comissão de Anistia há cópia de uma certidão de óbito expedida por um cartório do Recife, o que contestaria a tese de desaparecimento.

 “Ele (Duarte) se rebelou contra Brizola e abandonou a base. Pode ser um caso de justiçamento”, diz o delegado, antecipando o que deve dizer na Comissão da Verdade sobre o desaparecimento do corretor. A tese é rechaçada pelo Ministério Público Federal.

Mas não é só este o caso em que o delegado, como investigador do Dops, participou. Ele atuou na linha de frente da repressão. Foi o autor da prisão do Cabo Anselmo e, depois, andou com o delator a tiracolo atrás de militantes com os quais eram marcados encontros que se transformavam em armadilhas mortais.

Na mais famosa delas, conhecida como o massacre da Chácara São Bento, nas proximidades de Olinda, em Pernambuco, Anselmo atraiu para morte seis militantes de esquerda, entre os quais se encontrava sua própria companheira, a paraguaia Soledad Barreto Vidma, a Sol. O detalhe escabroso é que a ativista, uma bela mulher, filha de históricos comunistas paraguaios, com quatro meses de gestação, esperava um filho de Anselmo.

Toda a operação que resultou no massacre foi coordenada por Carteira Preta, que se tornaria desde então uma espécie de anjo da guarda do Cabo Anselmo. A relação só foi rompida no ano passado, quando o ex-marinheiro decidiu, por conta própria, dar uma entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura. Os dois ainda se falam, mas o compromisso de proteção se rompeu.

Carteira Preta infiltrou-se nos sindicatos do ABC e em movimentos sociais e pastorais ligados à Igreja Católica. Nessa condição, participou de reuniões com o então bispo do Recife, Dom Helder Câmara e, quando não esteve diretamente envolvido nas ações, produziu informes que resultaram em prisões, tortura e morte de ativistas.

Na Comissão da Verdade, afirma que responderá objetivamente um a um os casos em que atuou, inclusive episódios que possam elucidar paradeiro de guerrilheiros desaparecidos. Diz que cumpriu sua função como profissional de polícia, admite que não gosta de comunistas (“se o comunismo fosse bom o capitalismo já teria comprado”), afirma que os conflitos fizeram parte da guerra entre o regime militar e a esquerda e não demonstra qualquer arrependimento.

A esquerda diz que Carteira Preta foi além de seu papel como policial, participando de tortura e assassinatos. “Durmo com a cabeça tranquila. Faria tudo de novo”, afirma o delegado.

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