À Carta Maior, o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães fala
sobre as incertezas políticas no continente após a morte de Hugo Chávez. Para
ele, Brasil e Argentina desempenharão papel fundamental nesse processo. É
importante que esses países estejam vigilantes, desestimulando eventuais
movimentos golpistas. Juntas, Dilma e Cristina podem influir poderosamente. Por
Dario Pignotti. - @DarioPignotti
Brasília – Hugo Chávez citava frequentemente Samuel Pinheiro
Guimarães para defender a aliança vital com o Brasil ou repudiar as tentativas
de anexação por parte dos Estados Unidos sob o manto da Alca.
Chávez conhecia os bastidores do Itamaraty e quando citava
Samuel talvez procurasse fortalecê-lo frente aqueles que tentavam afastá-lo da
secretaria geral da Chancelaria para reestabelecer a diplomacia do Consenso de
Washington. O diplomata também foi mencionado pela embaixada dos EUA para quem
ele é um “antiamericano virulento”, segundo documento divulgado pelo Wikileaks.
A morte de Chávez, mas sobretudo a tensão estratégica entre
Venezuela e Estados Unidos, e o “muro” que Dilma e Cristina Kirchner estariam
formando para abortar tentativas golpistas contra Nicolas Maduro foram os temas
tratados pelo diplomata nesta enciclopédica entrevista à Carta Maior.
Carta Maior – Washington considerou absurda a suspeita de que
Chávez tenha morrido vítima de uma enfermidade inoculada. Certamente a hipótese
soa algo exagerada, mas você a descartaria por completo?
Samuel Pinheiro Guimarães – Não estou em condições de falar
sobre o que ocorreu concretamente, mas o presidente Maduro falou do tema,
segundo ouvi, e prometeu investigar. Ele deve saber porque disse isso e se
houver alguma desconfiança por parte do governo venezuelano este pode adotar a
decisão que lhe pareça mais conveniente. Os estados têm soberania para decidir
o que fazer. Não afirmou nada, estou especulando.
Os que colocaram em dúvida o que causou a morte de Arafat
(suposto assassinato com substâncias radioativas) foram desqualificados em
2004, quando ele morreu. Passados alguns anos, isso que parecia um absurdo hoje
não é mais e os que foram ridicularizados não estavam tão equivocados. O passar
do tempo às vezes acaba revelando algumas coisas. Que se investigue.
CM – Maduro falou de um
plano sedicioso com participação estadunidense... O jornalista Kennedy Alencar
informou que Dilma e Cristina se articulam para frear eventuais golpistas...
SPG – Não tenho informação, mas imagino que haja uma grande
preocupação por parte das presidentas para que não haja um golpe de estado.
Isso sempre pode ocorrer, como em 2002. De repente veio o golpe. Um golpe se
articula discretamente. Estão corretas em se preocupar se têm informações. Mas
creio que isso seja difícil no curto prazo. No médio ou longo prazo, aí já não
sei. É importante que Brasil e Argentina estejam vigilantes.
Desestimular eventuais movimentos golpistas é importante.
Juntas, elas podem influir poderosamente. O apoio delas ao governo democrático
é necessário. Igualmente acredito que a transição para as eleições está
assegurada. Haverá estabilidade no curto prazo, o problema é o longo prazo.
CM – Se tiveram coragem
de tentar um golpe contra Chávez, porque não tentariam de novo agora, sem ele?
SPG – Claro, isso é lógico. É preciso levar em conta que a
sociedade venezuelana está fraturada, os programas sociais levaram à
conscientização das massas e, ao mesmo tempo, provocaram uma reação das classes
altas e médias altas. As minorias sabem que pelas urnas é difícil chegar ao poder
e aparece aí a tentação permanente de fazê-lo por fora das urnas.
Não sei com certeza se há setores militares fortes com planos
golpistas, mas se há militares que não gostam do chavismo isso não me
surpreenderia. Isso ocorre com todas as elites. Por isso, considero importante
que existam milícias populares dispostas a defender o governo para compensar o
poder dos militares.
CM – O novo secretário
de Estado, John Kerry, se veste de pomba. Será ele menos hostil do que Hillary?
SPG – Parece-me quase impossível ser mais hostil que Hillary,
mas a política externa dos EUA transcende a característica pessoal de seus
funcionários. Há um princípio permanente que é castigar, ainda que muitos anos
depois, os países que não se enquadram nos desígnios de Washington. Quando
algum país não obedece a esse enquadramento, e a Venezuela fez isso, será
vítima de uma política que eu chamaria de vingativa. Lembro quando Bush invadiu
o Iraque por muitas coisas. Para ele, havia um sentimento pessoal. Bush chegou
a dizer que Saddam quis matar seu pai. O mesmo ocorre com o Irã, porque eles
invadiram a embaixada e, pior, os iranianos tiveram a audácia de dar os nomes
dos informantes iranianos que trabalhavam com a CIA. Isso, Washington nunca
perdoou. O mesmo se aplica a Venezuela. Creio que Washington nunca perdoará as
atitudes de Chávez.
CM – Soberania equivale
e irreverência...
SPG – A Venezuela foi uma província petroleira dos EUA
durante décadas. Na II Guerra foi maior fornecedora de petróleo dos aliados.
Tudo isso deu origem a uma classe dominante muito ligada ao negócio petroleiro
e a Washington. Colômbia e Venezuela são fundamentais para o sistema
norteamericano, no Mediterrâneo americano. Chávez acabou com tudo isso. Deu às
costas aos Estados Unidos e se voltou ao Brasil, ingressou no Mercosul e
rechaçou a ALCA. Isso, para os EUA, é imperdoável.
CM – Para a direita, o
chavismo morrerá com ele.
SPG – A dimensão de Chávez foi imensa, mas não considero
adequado dizer que tudo era fruto do carisma dele. Um autor alemão que viveu
nos EUA dizia que as pessoas não chegavam ao poder porque tem carisma, o poder
é que lhes dá carisma. Quando Chávez chegou ao poder em 1999, não tinha a
grande dimensão internacional que chegou a ter, na medida em que foi
desenvolvendo seu projeto. Agora, é preciso ver com Maduro amadurece (risos).
CM – O cesarismo,
talvez inevitável, do modelo bolivariano agrava o vazio causado pela morte do
líder?
SPG – Os meios de comunicação dão muito valor à atuação do
presidente ou do primeiro ministro, supervalorizam a pessoa, como se ela fosse
imprescindível. É falso, Ninguém governa sozinho, governa-se porque se
representa um conjunto de setores. Isso ocorre nas democracias liberais e nas
ditaduras. Por tanto, é um equívoco achar que o chavismo é só a presença de
Chávez e não ver que esse fenômeno teve um respaldo enorme dos setores
populares.
Dizer que Chávez era tudo foi mentira desses meios, que
também inventaram que a revolução não é democrática. Na Venezuela de Chávez
houve mais eleições que aqui no Brasil, como Lula observou. Não há notícias de
jornalistas ou opositores presos. Se houvesse, seria notícia permanente. Essa
imprensa criou a fantasia de que a revolução é um sistema baseado numa pessoa e
isso é falso.
CM – A longa agonia de
Chávez permitiu que Maduro se afiançasse como seu sucessor?
SPG – Espero que sim. Não é fácil saber qual será sua
habilidade para manter dentro do projeto os setores populares, partidos e
forças armadas.
CM – Sendo Alto
Representante do Mercosul (até julho de 2012), você pode conversar em
profundidade com Chávez?
SPG – Com Chávez falei poucas vezes. Ele citava
constantemente um livro meu que ele considerava muito importante.
CM – Parece estar em
marcha um ataque preventivo contra Maduro quando os conservadores anunciam que
deverá haver um “inevitável” ajuste do gasto público.
SPG – A mídia internacional e os organismos financeiros
internacionais repetem em coro que é preciso fazer um ajuste, controlar a
inflação ou então virá uma catástrofe. Tudo isso é falso. Basta olhar para os
EUA onde nunca se fala disso e onde há déficits comerciais e fiscais absurdos.
Lá não se pede isso, aqui sim. É uma religião disfarçada de discurso econômico
global onde toda a política social é chamada de populismo. No Brasil falam do
lulopetismo.
CM – As políticas
sociais destes 14 anos de Chávez são conquistas irreversíveis?
SPG – Não creio. No Chile havia um processo avançado e, com o
golpe de73, se retrocedeu até na reforma agrária. Na Argentina ocorreu o mesmo
com o golpe de 1976. Se a direita volta é para retomar o poder e terminar com
as políticas públicas, com a redistribuição de renda. Tudo começa com as
campanhas nos meios de comunicação, dizendo que chegou a modernidade, que está
tudo melhor, que o populismo está dizendo adeus.
Na Venezuela esse discurso pode começar a ser utilizado com a
volta das classes abastadas, para desqualificar os programas de saúde, os
gastos do Estado com alfabetização, para retirar recursos da Universidade das
Forças Armadas, das missões (programas sociais do governo).
Capriles (principal opositor nas eleições de outubro de 2012)
teve mais de 40% dos votos. Esses votos não são só das elites. Há pessoas
pobres beneficiadas pelos programas sociais que são ideologicamente
conservadoras. Eu creio que essas conquistas não possam ser entendidas como
irreversíveis. Por isso as classes dominantes querem voltar ao governo, para
reverter esses avanços.
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
POSTADO POR DANIEL PEARL DO BLOG DESABAFO BRASIL.
POSTADO POR SARAIVA13
Nenhum comentário:
Postar um comentário